Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

O dono da camisa 10

Arquivo/Reprodução

O dono da camisa 10

  • Heraldo Palmeira e Sylvio Maestrelli

Parte de nossa mídia esportiva, desesperada em ver o Brasil mais uma vez eliminado de uma Copa do Mundo, decidiu “mudar o foco” para preservar nosso “diferenciado” Neymar das diversas críticas que ele vem recebendo. Ao invés de propor uma reflexão sobre as causas ou os fatores que levaram nosso camisa 10 a atuar aquém da expectativa em todos os Mundiais, opta pelo mais cômodo: endeusá-lo por um belíssimo – mas mísero gol – diante dos croatas (quando fomos derrotados de forma revoltante pelo nosso amadorismo) ou, principalmente, glorificá-lo por ter igualado, segundo as estatísticas da FIFA, o número de gols do Rei Pelé com o manto sagrado da Seleção Canarinho em partidas oficiais.

Pelé e Neymar anotaram 77 gols cada um. Mas o Rei em apenas 81 jogos (média de 0,84 gol por partida), enquanto Neymar em 124 (média de 0,62). Aliás, para quem mitifica o feito, vale lembrar que o “piscineiro” – como o chamam os europeus depois do cai-cai na Copa 2018 – tem média de gols abaixo de Romário (0,79), Zico (0,68) e Ronaldo Fenômeno (0,63) pelo Brasil (dados da FIFA), o que é significativo. E desses gols do “menino”, marcados em 43 jogos a mais do que o Rei, 19 foram de pênaltis, 24,67% do total.

Talvez seja justo para essa matemática também levar em conta a estatística da CBF sobre Pelé: 113 jogos e 95 gols (mantém-se a média de 0,84 gol por partida). E que Neymar se valeu bem mais de pênaltis para estabelecer essa contagem, inclusive na carreira toda.

Os mais afoitos e desinformados chegam a estabelecer comparações – insanas – entre os dois jogadores, argumentando dentre outras sandices, que “o futebol do passado era lento, apenas meia dúzia de seleções sabia jogar bola, o Rei era favorecido por atuar sempre cercado de outros craques etc. Provavelmente não viram ingleses como Bobby Moore, Bobby Charlton e Gordon Banks. Alemães como Franz Beckenbauer, Gerd Müller e Wolfgang Overath. Italianos como Gianni Rivera, Sandro Mazzola e Giacinto Fachetti. Uruguaios como Pedro Rocha, Montero Castillo e Ladislao Mazurkiewicz. Argentinos como Rattin, Sivori e Bochini.

Não lembram que, antes dos 30 anos, Pelé era tricampeão mundial. Talvez esqueçam que enquanto o menino Pelé era campeão na Suécia em 1958 – e protagonista, com 5 gols marcados apenas na semifinal e na final –, na mesma idade Neymar sequer era titular do Santos. E não levam em consideração que, principalmente defendendo a Seleção Brasileira, as diferenças entre os dois são brutais, abissais. Da técnica à postura.

A propósito, antes mesmo de tentar traçar qualquer paralelo entre as façanhas dos dois pelo Brasil, vale a pena levantar alguns dados que nos mostram que, além de ficar atrás do Rei na média de gols por partida, Neymar se encontra atrás de outros craques que tivemos. São as estatísticas, tão valorizadas hoje em dia, que revelam.

Pelé foi o único a ganhar 3 Copas do Mundo (1958, 1962 e 1970) em 4 disputadas. Foi o craque revelação (melhor jogador jovem) do Mundial de 1958. Craque da Copa de 1970. Eleito 7 vezes o melhor do mundo (1958, 1959, 1960, 1961, 1963, 1964 e 1970), o cobiçado Ballon d’Or – em 2016, após a revisão da revista France Football, que até o início da década de 1990 só considerava “Melhor do Mundo” alguém que jogasse na Europa, essa injustiça histórica foi corrigida. Ressalte-se que, também por essa mudança, os monstros sagrados Garrincha (em 1962), Kempes (em 1978), Maradona (em 1986 e 1990) e Romário (em 1994) receberam seus prêmios.

Ronaldo Fenômeno ganhou 2 Copas do Mundo (1994 e 2002) e foi vice em uma (1998), em 4 disputadas, artilheiro da Copa em 2002, eleito o melhor do mundo em 1997 e 2002. Romário ganhou uma Copa do Mundo (1994), em 2 disputadas, eleito melhor do mundo naquele mesmo ano. Garrincha ganhou 2 Copas do Mundo (1958 e 1962) em 3 disputadas. Escolhido o melhor da Copa do Mundo e melhor jogador do planeta em 1962, artilheiro da Copa do Chile no mesmo ano. Ronaldinho Gaúcho ganhou uma Copa do Mundo (2002) em 2 disputadas. Antes, foi campeão mundial Sub-20. Eleito melhor jogador do mundo em 2005. Rivaldo ganhou uma Copa do Mundo (2002), foi vice em outra (1998) em 2 disputadas. Foi melhor do mundo em 1999. Até mesmo Kaká – ótimo atacante, mas inferior a Zico, Tostão, Reinaldo e Sócrates – ganhou uma Copa do Mundo (2002) em 3 disputadas. E foi escolhido melhor do mundo em 2007.

E agora, Neymar, o rei… das redes sociais! Nenhuma conquista de Copa do Mundo, em 3 oportunidades (2014, 2018, 2022). Nenhum prêmio de melhor jogador do mundo. Nenhum Mundial em categorias de base. Nenhuma artilharia em mundiais. Nenhum prêmio de craque da Copa. Sua “grande façanha”? Vencer as Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro, contra seleções desfiguradas, já que só é permitida a participação de 3 atletas com mais de 23 anos nas equipes. E, convenhamos, ninguém no mundo da bola dá relevância ao futebol olímpico, que parece ter morrido como competição importante em 1928, última edição em que tinha status de Copa do Mundo de futebol – a FIFA estabeleceu o torneio específico a partir de 1930.

Inúmeros jogadores extraordinários estão na história do jogo da bola, nenhum deles passa perto do que foi Pelé em campo. Como concordam muitos analistas, ele mudou o patamar desse feitiço chamado futebol, foi um dos obreiros da “contaminação” do mundo.

Ele também modificou a importância da camisa 10 (à época destinada ao meia-esquerda, sua posição), que já usava no Santos e na Seleção Brasileira. A mítica começou a nascer na Copa da Suécia (1958), porque a CBD esqueceu de enviar a numeração dos jogadores, a FIFA fez um sorteio e o 10 coube a quem de direito. Depois do que ele fez em campo, muitos dos principais craques do mundo adotaram a 10 por razões óbvias.

Não há como explicar o fenômeno de pessoas em qualquer lugar do planeta se juntarem ao redor de uma bola com o mesmo objetivo, mesmo que cada uma delas fale um idioma diferente. É cinismo tentar negar ou minimizar o papel decisivo de Pelé nessa realidade, algo que Neymar não deverá conseguir compreender até o fim da vida.

Nos anos 1960 o Santos de Pelé era uma máquina de futebol, um dos times mais famosos do mundo e aproveitava as folgas de um calendário muito mais razoável para faturar em jogos pelo mundo.

No longínquo 18 de junho de 1968 o Santos enfrentou a Seleção Olímpica da Colômbia. Depois de uma falta marcada de Pelé sobre um zagueiro adversário, o juiz Guillermo Velasquez, alegando ter sido ofendido pelo Rei, expulsou-o de campo. Diante dos protestos da multidão, o árbitro foi instruído (segundo ele mesmo confessou em entrevista concedida em 2010) a entregar o apito para um dos bandeirinhas e sair de campo. E o camisa 10 mais famoso do mundo voltou ao gramado para o jogo continuar.

Em 4 de fevereiro de 1969 o jogo foi contra um time local em Benin (Nigéria), que enfrentava sangrenta guerra civil entre suas etnias. Corre história que os jogadores brasileiros, obviamente temerosos, foram informados de que teria sido negociado um cessar-fogo entre as partes em conflito, pois todos queriam ver Pelé em campo. Diante das controvérsias a respeito, o Rei mostrou sua habilidade no drible em Pelé – A Autobiografia (2006): “Bem, não tenho certeza se isso é totalmente verdade, mas os nigerianos certamente garantiram que os biafrenses não invadissem quando estivéssemos lá”, escreveu.

No Caribe, mais um clima de guerra. Era 5 de setembro de 1972, o Santos estava em Trinidad e Tobago e ocorriam sérios distúrbios sociais com tanques nas ruas. A ideia da delegação era sair do estádio Port of Spain direto para o avião. O problema é que Pelé fez um gol aos 43 minutos do segundo tempo, os torcedores enlouqueceram de alegria, invadiram o gramado, colocaram o jogador nos ombros e fizeram um desfile pelas ruas da cidade. Depois de intermináveis minutos de tensão, o Rei foi finalmente resgatado e o Santos levantou mais um voo.

Alguns ranzinzas profissionais alegam que ele não jogou em clubes europeus. Pura verdade. Foi literalmente impedido de mudar para o exterior na sua fase áurea. Não bastasse o Santos recusar propostas do Milan e Real Madrid, em 1961 o amalucado presidente da República Jânio Quadros assinou decreto transformando Pelé (que nem havia completado 21 anos) em “tesouro nacional” que não podia ser “exportado”. Durante o governo militar, os generais mantiveram o “interesse” em vê-lo por aqui – o tricampeonato foi uma ótima peça de propaganda para o regime em seu momento mais agudo.

Como se não bastasse tudo que fez na linha e o rosário de gols marcados, na época em que era permitido realizar apenas uma substituição durante o jogo ele era o jogador designado para ocupar a posição de goleiro do Santos e da Seleção Brasileira em qualquer emergência – no clube, jogou 4 vezes, inclusive numa semifinal da Taça Brasil contra o Grêmio; foram 4 vitórias e nenhum gol sofrido.

Sempre considerado um dos maiores atletas de todos os tempos, em 2000 Pelé foi escolhido Atleta do Século pelo Comitê Olímpico Internacional, Jogador de Século pela Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol (IFFHS) e Melhor Jogador do Século pela FIFA – esta escolha foi dividida com Diego Maradona e deve ter vindo daí o delírio “Maradona é melhor do que Pelé” dos argentinos.

Protagonista de uma carreira estelar onde marcou 1.281 gols em 1.363 jogos, Pelé é um dos atletas mais famosos de todos os tempos. Não é por menos que muitos especialistas consideram Pelé uma entidade sobrenatural do futebol. Afinal, fez seu primeiro gol profissional aos 15 anos, foi o jogador mais novo a marcar gol em Copa do Mundo e ser campeão mundial, aos 17 anos, e já naquele seu primeiro Mundial fez 6 gols e recebeu dos franceses o título de Rei do Futebol.

Quanto a Neymar, bem… Falta simplesmente história e feitos duradouros. O início instigante no mesmo Santos e os dias de glória no Barcelona passaram rápido demais e terminaram eclipsados pelo excesso de problemas no PSG e o eterno “quase” na Seleção Brasileira. Pelo visto, percorrer a longa distância até os pés de Pelé vai ficar para outra encarnação. É do jogo!

*Heraldo Palmeira, escritor e produtor cultural | Sylvio Maestrelli, educador e apaixonado por futebol

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