Arquivo Nacional (1904)
Como odiar um bruxo
- Márcia Lígia Guidin
“O cortejo está saindo. Não serei hipócrita em prestar uma homenagem no enterro daquele canalha”. (p.12)
Mais um narrador que conta sua história lá da virada do século XX. Idoso e impulsionado pela vingança contra Machado de Assis, neste romance delicioso e quase picaresco, José Almeida Jr., com alguma biografia e muita invenção, oferece um texto inteligente em diálogo com a obra machadiana (em cenas e personagens). Ou seja, o autor homenageia o grande Machado, enquanto seu narrador o destrói, a cada página.
Pedro Junqueira, o narrador, acompanha o enterro de Machado (1908), – porque o odeia, claro, sem conseguir esquecê-lo. Narra em retrospectiva, a própria infância, vida e amores sempre entrelaçados à vida do escritor, grande rival e inimigo. Temos assim a ficção na ficção, manipulada com cuidado pelo autor. Até Silvio Romero (que realmente odiou Machado) é invocado para compactuar com o ódio de Pedro:
– Chegou mais cedo para acompanhar o enterro? – perguntou Romero.
– Vim só para denunciar Machado de Assis. Você foi vítima dele tanto quanto eu. (…) [Pedro].
– (…) Ninguém vai acreditar em você. [Romero].
– Não posso ficar calado, enquanto canonizam aquele patife (…) [Pedro].
– (…) Se dependesse de mim, aquele mulato não teria lugar na história da literatura brasileira (…). Já pensou em escrever suas memórias contando tudo o que ele fez? [Romero] (p. 11-12).
À sua maneira, com o propósito declarado de vingar-se do “mulato”, que no enterro “nem merecia tão grande comitiva”, Pedro nos impele a também odiarmos Machado de Assis.
O pai de Pedro, rico cafeicultor recém-viúvo, “com mais de mil escravos”, leva-o, aos 6 anos para morar com a tia Maria José – aquela –, a madrinha de Machado no morro do Livramento. Lá crescerá ao lado de Joaquim (nosso escritor) e Joana (astuta como Capitu), filha de “pai desconhecido” (um padre), que lhes dá aulas.
Joaquim Maria mostra-se um “menino diabo” (como era Brás Cubas no Memórias Póstumas). Por espírito precoce de antagonismo social e racial, o mestiço tortura o pobre menino rico (como era o Bentinho); egresso do luxo rural onde nascera, Pedro choca-se com a libertinagem dos agregados da casa da tia na capital. E, pobre menino rico, vítima de pesada perseguição das crianças, cai em muitas emboscadas – uma delas escatológica e inesquecível. “Corri e Joaquim foi atrás de mim. Entre os negros, a minha alvura se destacava o que facilitava ser identificado por Joana.” (p.20).
Provavelmente este romance seja ainda mais agradável para leitores de Machado: a intertextualidade é invocada a cada página. Mas se o leitor leu pouco nosso bruxo, também se divertirá: muitas cenas, sobretudo no início da obra, criam leitura prazerosa. Porque, com ou sem leitura acadêmica, a sombra do mito machadiano se esfacela e causa um interessante arrepio de leitura. Isso porque se reconstrói por dentro da narrativa uma “nova” biografia – antípoda de tudo o que a escola nos ensinou sobre o escritor, seu temperamento e sua genialidade.
Enquanto crescem, Joaquim e Joana trocam beijos lúbricos pelos cantos, para ciúme de Pedro. Este, com a morte da tia, irá para o colégio interno, de lá para Coimbra, onde, (como aconteceu com Brás Cubas) se bacharela em direito. Porém, não antes de seduzir Carolina Novaes, moça do Porto (sim, a própria futura esposa de Machado!), que vai abandonar grávida, e da qual se escondendo até a formatura.
Mulheres
Ponto interessante da obra, esta Carolina também destrói a figura serena, culta e discreta da conhecida biografia da portuguesa, fiel cônjuge do escritor até a morte. Esta nova Carolina, inventada, apaixona-se por Pedro e sabe envolvê-lo em franca luxúria – como, aliás, o rapaz nota. (Aliás, o mesmo que fizera a menina Joana na adolescência). Ou seja, a sombra carnal e explícita da prostituição, discreta nos romances machadianos, aqui se torna lasciva e recorrente. Tal Carolina fazendo sexo heterodoxo nos traz susto e alguma surpresa. É uma devassa, tão improvável quando lembramos das fotos da Carolina de Machado, a seu lado, elegante e silenciosa.
Quando Pedro assume os negócios do pai e volta ao Brasil, descobre – chocado – que sua Carolina, agora no Brasil, está casada. Com quem?… com Machado de Assis. Novo triângulo amoroso: começa um caso tórrido entre ambos, quando redescobrem seu amor lá do passado. Machadinho, já famoso e adulado por todos, desconfia do adultério e prenderá Carolina em casa. Nada mais divertido e implausível frente ao casal do Cosme Velho que conhecemos. Delicioso contraste.
Como acontecia em Memórias Póstumas, ou no conto A cartomante, o marido e o amante (em suprema vingança de Pedro) convivem socialmente, a despeito do ódio mútuo. Pedro, deita-se com Carolina, transformando-se em comborço (amante) da mulher do outro – como afirmava Bentinho em Dom Casmurro sobre sua Capitu. E nova vingança de Pedro: empresta dinheiro ao escritor (que vive em penúria) subjugando-o, mais uma vez. O alimento do ódio de Pedro sempre será a vingança possível.
Entra em cena aqui, apesar de discreta, uma análise da dicotomia social da época, em que o proprietário rural (escravista), se opõe ao intelectual urbano classe média (liberal e abolicionista), que mal se mantém, pendurado em seu emprego público. Era o caso de Machado de Assis, claudicando na classe média, e de outros escritores brasileiros pós-romantismo (os românticos, de modo geral, advieram das classes abastadas, como Alencar e outros).
A mídia tem seu preço
É ótimo perceber que ninguém é bom ou correto nesta obra. Não há aqui – como também não há em Machado de Assis – gratuidade nas ações humanas; isto parece fazer do autor deste romance, creio, um lúcido analista da obra machadiana.
A mídia da época, por exemplo, no raiar do século XX, já era (bem antes da força digital) destruidora de reputações. “Todo homem tem seu preço, especialmente os jornalistas”, diz Pedro (p. 59), que manda publicar notícia sobre um suposto adultério do personagem Machado – com graves consequências sociais e conjugais. Como é que os jornais toparam a notícia? Machado revida, e publica sob pseudônimo, uma dura crítica a Pedro um rico “abolicionista incoerente”, herdeiro de mais de mil escravos nas suas fazendas de café. Um golpe baixo, que a mídia aceitou publicar. A incipiente carreira de Pedro é dilacerada e o personagem Joaquim Nabuco expulsará Pedro da “Sociedade contra a Escravidão” – melhor porta de entrada para a Câmara dos Deputados e suas regalias, entre fanfarrões e interesseiros. Ou seja, a mídia prestava-se desde sempre a quaisquer interesses, pessoais ou ideológicos.
Quem escreveu Brás Cubas?
Um evento traz grande criatividade a este romance: o ladino Machado de Assis, (mesmo subjugado pelo favor financeiro de Pedro) o obriga a esperar horas para ser atendido em seu gabinete; e aceita, sabe-se lá por quê, ler um tal manuscrito que Pedro rascunhara:
“O protagonista de meu romance tinha que ser alguém que não tivesse nenhum pudor em escrever o que desejasse (…) [mas] eu não conseguia entrar na cabeça de um bandido. (…) Tive a ideia de substituir esse narrador por um morto. Quem melhor do que um autor defunto para contar tudo que sabe sem temer a reprovação pública?” (p. 139).
Machado de Assis, como o leitor suspeita, devolverá a obra com críticas mortais e contundentes e muita perversidade:
“Não sei se consigo chamar isso de romance. São apenas escritos amargurados de alguém que tem raiva de ter vindo ao mundo”. (…) Seu narrador é um pária. Não gera empatia nenhuma. O texto é imaturo e cheio de vícios. Até o português é ruim (p. 140) (…) “O enredo é péssimo (…) um texto (…) natimorto”, (p. 141).
Pedro, fragilizado, desiste da literatura e acaba queimando os originais. Pouco explorado narrativamente, o trecho renderia mais à narrativa e à história das ideias literárias no Brasil.
O fato é que, tempos depois, não é que – para horror de Pedro Junqueira – Machadinho publica na Revista Brasileira, em 1881, o folhetim Memórias póstumas de Brás Cubas? Quando lê, descobre o plágio incontestável, e se lembra da garrucha vingadora, para exigir que Machado confesse em público a cópia desleal. “Propositalmente, ele me desestimulara a burilar o livro para que pudesse copiá-lo (…) Mas como provaria que ele usurpara minha ideia? Eu havia destruído meus originais (…)”. (p. 156).
Quer dizer, nosso grande Machado de Assis roubou de Pedro, na ficção, o primeiro e genial romance realista brasileiro. O famoso romance, que divide a literatura brasileira em períodos distintos, é nada mais que um plágio. E mais interessante: o autor Almeida Jr. pôs na boca do Machadinho personagem, para desestimular Pedro, algumas das críticas que ele próprio, o autor, recebera a respeito das Memórias na época.
Pari passu com esta deliciosa embrulhada entre ficção de um, ficção de outro e história da recepção literária no Brasil, o autor leva adiante os amores ilegítimos de Pedro, a vida de herdeiro playboy (ou “exoneração moral de fazer algo útil na vida”, p. 171), a derrocada financeira (um tanto longa) e a volta a Portugal sem Carolina como amante. Das tabernas parte para a união com Joana, aquela menina que crescera com ambos e se transformara em cortesã no Brasil. Em Lisboa, por ser “mulata e brasileira” sabia-se profissional “com grande competência”, como afirma seu narrador.
Remediado, Pedro viverá em Portugal com Joana e um filho gabando-se nestas memórias de ter sido mais amado por Carolina que Machadinho – o escritor traído.
Ora, a execração pública contra o rival Machado de Assis está pronta, afinal. Pedro, ao escrever este livro, não cumprira o que Silvio Romero (o personagem) sugerira como revanche, quando ambos conversavam no dia do enterro do velho Machado?
Este romance – que não é só a autobiografia de Pedro, mas uma biografia fake e divertida de Machado – é didático, criativo, exalta nosso escritor, cujas biografias a sério já têm tanta ficção, até fotos mais escuras do que a própria pele do escritor. Exceto por alguns exageros (como atribuir a Pedro um brutal alcoolismo com conhaque, ou um charuto atrás do outro – o que é inverossímil e quase gratuito), o romance presta bom serviço à ficção.
Até um desavisado leitor descobrirá que “o homem que odiava Machado de Assis” só existe porque existe aquele a quem se odeia. Sem Machadinho, morto logo no início da obra, Pedro ficaria no limbo da história.
*MÁRCIA LÍGIA GUIDIN, editora e crítica literária
(Texto publicado no Rascunho)