Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

A Deus, Bituca

Bar de Ferreirinha/Roberto Fontes

A Deus, Bituca

  • Heraldo Palmeira

Para Sérgio Amaral, jornalista mineiro e próximo do Clube da Esquina, um presente que a vida me deu em forma de amizade – a matéria prima do que vale a pena

O Brasil, no costumeiro descaso, nem sempre lembra de uma de suas vozes mais perfeitas, que saía da garganta de Elis Regina. Foi ela quem, absolutamente precisa, um dia falou definitiva “Se Deus cantasse, teria a voz de Milton Nascimento”.

Como entre eles havia simbiose – algo muito além da amizade profunda –, a voz de Bituca soou divina para dizer “Todo mundo sabe que Elis Regina foi o grande amor da minha vida. E todas as músicas que fiz na vida depois que eu a conheci foram feitas pensando na voz dela. E até hoje é assim”. Uma história de amor que começou quando a Pimentinha gravou Canção do Sal dele, criando um marco definitivo para a carreira do tímido carioca-mineiro e para a história da música brasileira.

Outro grande marco veio pelo convite do músico Wayne Shorter para gravarem juntos o álbum Native Dancer, nos EUA, que abriu as portas do mundo para o garoto tímido de Três Pontas, Minas Gerais.

Aos 80 anos de vida e 60 de carreira, 43 álbuns gravados, 5 Grammy na estante e o título de Doutor Honoris Causa em Música da Universidade de Berklee (Boston, EUA) na sala, Milton Bituca Nascimento despediu-se dos palcos no domingo (13) diante do Estádio Mineirão lotado por pessoas do mundo inteiro. Sua Belo Horizonte foi palco do epílogo da turnê A Última Sessão de Música, que percorreu Brasil, Estados Unidos e Europa e cujo repertório foi uma colagem de uma carreira plural e magnífica.

O garoto que começou como crooner de bailes aos 13 anos e a compor em 1962, em parceria com Márcio Borges, depois de assistir ao filme Jules et Jim, (Uma Mulher para Dois, no Brasil) de François Truffaut, reconhece que a travessia pela arte teve um ponto fundamental no Festival Internacional da Canção (FIC) de 1967. “Não ganhei o festival, mas minha vida mudou pra sempre depois que cantei Travessia aquela noite no Maracanãzinho. Foi como se fosse um outro começo”.

Eram tempos muito férteis na criação artística brasileira, onde as relações tinham um modelo essencialmente colaborativo costurado pela amizade. Tanto que Milton foi parar naquele FIC porque o saudoso cantor Agostinho dos Santos inscreveu-o na disputa sem avisar nada. No fim, as músicas Travessia, Morro Velho e Maria Minha Fé do “novato” foram classificadas.

Como se tudo que aconteceu naqueles primeiros anos fosse pouco, o crooner abriu seu próprio clube numa esquina de Belo Horizonte, onde se reunia com os amigos para tratar de música, sempre com Beatles na vitrola. Ali estavam Márcio e Lô Borges, os velhos companheiros do edifício Levy, e outros tantos que surgiram pelo caminho – Wagner Tiso, Fernando Brant, Beto Guedes, Toninho Horta, Nivaldo Ornelas e Paulo Braga.

O clube não tinha sede, era na calçada que juntava as ruas Divinópolis e Paraisópolis, no bairro de Santa Tereza. E nesse trem doido de um abstrato tão concreto ganhou o mundo num pedaço de vinil embrulhado em papel cartão. Sim, o álbum duplo Clube da Esquina, lançado em 1972, foi a sede itinerante de um sonho, presente em tudo quanto é canto e conquistando sócios de todo tipo. Não é à toa que hoje é considerado um dos melhores discos brasileiros de todos os tempos. Foi “o lugar” dos encontros de vida inteira com gerações e gerações. E a explicação parece simples: “O amor, a amizade, a música, e as artes de forma geral, tudo isso é essencial pra nossa vida. E o Clube da Esquina é um disco de amizade, é um disco feito entre grandes amigos. Se não fosse por isso, não teríamos feito nada. Pra mim, se não tem amizade, não tem jeito”, explica Bituca.

Tanto é verdade que o álbum duplo Clube da Esquina 2 (1978) estava em fase final de produção, mas a capa encrencou. A ideia original de Milton era que ela contivesse fotos dos tempos de infância de todos os inúmeros participantes. Até que veio a notícia de que a mãe de Lô Borges não encontrou foto dele pequenininho. A amizade era mais importante do que a capa, Lô não podia faltar, e o projeto gráfico, quase pronto e lindo, foi abortado. A salvação veio com Stern Reality (dura realidade), uma foto de 1892 feita pelo inglês Francis Sutcliffe, fotógrafo pioneiro que registrava o cotidiano da classe operária durante a Revolução Industrial. Um bando de garotos mostrados de costas e amontoados sobre um muro tornou-se uma das capas de disco das mais emblemáticas já produzidas no Brasil.

Depois de passar a vida promovendo encontros, Milton decidiu botar o pé na estrada para as despedidas. Sim, a gente sabe, nada será como antes. Estamos fazendo o jogo das compensações porque a glória da contemporaneidade também nos legou a dor de assistir a despedida desse grande encontro que tivemos com ele pela vida.

Ao se retirar dos palcos Milton cumpre um passo que vinha sendo amadurecido, inclusive em razão da saúde frágil, mas libera o primeiro sopro de futuro ao garantir que não vai parar de compor e cantar. Tanto que começa a tomar forma um álbum de inéditas – já compôs três melodias, uma delas recebeu letra de Ronaldo Bastos. Que Deus cante. A Deus, a voz de Bituca.

Como se fosse um retrato da infância para a carteirinha do Clube da Esquina 2, a fábrica de brinquedos Estrela criou um jeito lúdico de seguir viagem pelos trens, trilhos e estações da obra de Milton Nascimento. Como grande maquinista, ele assinou a edição limitada de relançamento do Ferrorama – o trem de brinquedo do Brasil – como mimo especial da turnê A Última Sessão de Música.

Ô trem doido, sô!

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