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Uma estante mágica
- Kalunga Mello Neves
Sento-me em minha já familiar cadeira de balanço e me entrego ao suave embalar dos meus pensamentos. Tilinto uma taça de vinho tinto que proponho brindar com a vida a me espionar sorrateira diante da janela do meu escritório. Fecho os olhos a celebrar um dolce far niente. É fim de tarde de um dia qualquer.
Estou a me deliciar com o que meus olhos contemplam à minha frente. Uma longa história me é contada e sou convidado a participar como protagonista e coadjuvante, como atento expectador ou simplesmente um curioso a recordar o que aquela multidão silenciosa de palavras e parágrafos me quer dizer.
Começo pela prateleira de cima, a quarta delas. Livros lado a lado, se de mãos dadas ou não, não sei. Avisto Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche, a me dizer que há sempre uma loucura no amor, mas há sempre uma razão para a loucura. Ao seu lado, tão imponente quanto, Barry Stevens nos aconselha a não apressar o rio (ele corre sozinho). E mais distante, a esquerda, Fernando Pessoa sempre a nos surpreender com sua poesia a mandar lembranças para os nossos Vinícius, Quintana e Drummond.
Chego à terceira prateleira. Num bom papo, sem rancores ou diversidades modernas, Jorge Amado e Érico Veríssimo observam O Tempo e o Vento a acompanhar o caminhar cadenciado e sensual de Gabriela, Cravo e Canela. Jose Condé faz parte desta fileira com Vento do Amanhecer em Macambira, assim como Moacyr Scliar e seu O Centauro no Jardim.
Mais abaixo, o orgulho me cutuca com vara curta. Priorizei neste recanto livros de autores que conheci e tive o prazer de participar com eles de encontros literários e feiras de livros. Não posso citar todos, pois os admiro e reverencio de igual maneira. Fica este segredinho entre nós…
Chegamos à primeira prateleira, repleta de livros infantis para todas as idades. O Pequeno Príncipe, O Meu Pé de Laranja Lima, Chapeuzinho Vermelho, Fábulas de Esopo, O Menino do Dedo Verde, O Menino Maluquinho, Seu Zé, Bambi e tantos outros. Mas num lugar todo especial, nesta estante e no meu coração, está O General Dourakine, escrito pela Condessa de Ségur. Editora do Brasil, capa dura, páginas já amareladas pelo passar do tempo. Foi o primeiro livro que ganhei da minha mãe. Deve ter custado muito caro para uma costureira que, desajeitada, me contava histórias de vez em quando. Todos os anos eu releio o meu livrinho e lembro da minha mãe me entregando um pacote de presente enfeitado com papel celofane. Todos os anos…
*KALUNGA MELLO NEVES, escritor