Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HORÁCIO PAIVA Uma herdade à beira-mar

FASerra/Pixabay

Uma herdade à beira-mar

  • Horácio Paiva

A realidade é a opção do provável. A consciência tem muitos caminhos, mas apenas um, de fato, nos é dado viver em nosso mundo. Os demais pertencem à definição dos universos paralelos, traçada pela magia lógica da física quântica.

A realidade

é a opção do provável –

o real é Deus.

Porém não é a filosofia agora o que nos importa, mas a poesia, com o seu aglomerado infinito de sonhos, à disposição do imaginário de cada um. Afinal,

Todo homem

traz

uma mensagem.

Todo homem

é mensageiro

dos deuses.

Quanto a mim, cumpro meu papel contemplativo, ou missão: sou um sonhador nato, isto é, sonho muito – o que não significa, necessariamente, originalidade. Desses sonhos, inúmeras vezes, nasceram ações e realidades que foram úteis não apenas a mim, mas também ao meu próximo. Apraz-me, por exemplo, haver participado intensamente, e em momentos decisivos, de lutas sociais.

A par disto, sou igualmente um sonhador individual, e, neste caso, nem sempre a contemplação leva à ação, contentando-me no campo prazeroso e desafiador das divagações espirituais, devocionais ou mesmo sensoriais. Quanto a estas últimas, e não obstante por vezes fazer residência numa fazenda, no interior do mato, o meu amor à natureza tem duas almas, levando-me a um sítio à beira-mar, acolhedor ao encontro com a poesia que, como Vênus, parece haver nascido do mar, espelho de uma beleza absoluta onde, desprendidos, nos deixamos ficar – como no encanto desses versos de Fernando Pessoa:

“Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar”.

Ou no embalo dramático desses outros, também do grande poeta, que lembram a saga dos antigos navegadores portugueses, desbravadores do Mar Oceano:

“Ó mar salgado,

Quanto desse sal

São lágrimas de Portugal.”

Ah, Vênus!… Ah, o diálogo amoroso com a amada no alvorecer da clara manhã!… Não é o mesmo que sugere o anjo Amadeus, no andante pausado e quase sacro de seu Concerto 21 para piano?

Disse-me certa vez o meu saudoso amigo Luiz Evangelista de Oliveira, cearense nascido no vale do Jaguaribe e médico dos marítimos de Macau (RN), num tempo que jamais se perderá, preferir sítios que reunissem o sertão e o mar. Havia nele – e certamente ainda há, onde estiver – essas duas almas.

Corria o ano de 1916, no fragor da Primeira Grande Guerra, quando o poeta norte-americano Alan Seeger, com 28 anos de idade, lutava nas fileiras das tropas aliadas. Às vésperas de morrer em combate, escreveu um poema intitulado Tenho um Encontro com a Morte (I Have a Rendez-vous with Death), cujos versos profeticamente anunciavam o seu fim trágico:

“Eu tenho um encontro com a morte,

E jamais a esse encontro eu faltarei.”

O amor, a vida e a morte sempre foram o universo da grande poesia… Miguel Hernández:

“Llegó con três heridas:

La del amor,

La de la muerte,

La de la vida.”

O meu encontro com a poesia numa herdade à beira-mar, mesclado de serenidade, sonho e prazer, terá o tempo completo de um dia – mas não de precisas vinte e quatro horas –, observadas, porém, essas quatro estações: manhã, meio-dia, tarde e noite. Divirto-me a imaginar o que estaria recordando, lendo ou ouvindo…

E não se surpreendam se encontrarem a manhã repleta de música, já que não poderei esquecer o primeiro movimento da Nona Sinfonia de Beethoven – música absoluta, como diria Carpeaux – e o encanto da Ode à Alegria, com os belos, sonoros e românticos versos de Schiller, ao final.

O lugar e a hora me farão mais uma vez recordar essa estranha e diáfana Annabel Lee, em seu reino à beira-mar, e cujo amor fora invejado pelos próprios serafins, tema de memorável poema de Edgar Allan Poe.

“Eu era criança, ela era uma criança

no reino à beira-mar,

mas nosso amor chegava, ó Annabel Lee,

o amor a ultrapassar,

amor que os próprios serafins celestes

vieram a invejar.”

O meio-dia tropical, porém, requer um poema forte, de crença de força na vida, e lembro o nosso Gonçalves Dias:

“Se a vida é combate

Que aos fracos abate,

Aos fortes, aos bravos

Só pode exaltar.”

Ainda ao meio-dia, nordestino, pleno de sol e luz, vejo e escuto a natureza do semiárido, onde os raios de sol, além dos passarinhos, cantam:

Os raios de sol gorjeiam

na límpida claridade

do meio-dia.

À tarde, na hora frágil que antecede o pôr do sol, estarei nostálgico e pensativo. Recordarei a infância e a casa de meu pai, e buscarei viver esse mundo aparentemente perdido, refugiando-me à sombra do limoeiro que encontro em Antonio Machado:

“Estou sozinho no pátio silencioso

buscando uma ilusão cândida e velha.

Esse aroma evocativo dos fantasmas

das fragrâncias virginais e já desfeitas.”

Mas a noite é a hora do recolhimento em Deus e na esperança – la fuente que mana y corre (a fonte que brota e corre) – e entrego-me à leitura de San Juan de la Cruz e de sua obra-prima, quiçá de toda a poesia escrita em língua espanhola, Noche Obscura. Ouvindo Bach, naturalmente, e acompanhando Jesus no Horto das Oliveiras, como também o faz o inspirado compositor em sua sublime Ária na Corda Sol

“Sin outra luz y guia

sino la que en el corazón ardia.”

*HORÁCIO PAIVA, advogado e escritor

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