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Corações indomáveis
- Hayton Rocha
Quando menino, tinha medo de almas. Não de “anjinhos”, como se dizia no sertão paraibano, onde todo ano centenas de crianças eram enterradas antes dos sete anos de idade. A diarreia e a subnutrição deixavam-nas só ossos, olhos e orelhas.
Não corria esse risco. Filho de bancário, dispunha o suficiente para viver sem assombrações. Medo, mesmo, só de almas penadas de adultos.
Fui daqueles que viviam com o nariz escorrendo pelas calçadas das ruas onde morei, nu cintura acima, procurando o que aprontar enquanto não estava comendo, dormindo ou na escola. Ser um de nove irmãos de uma família remediada me deu o bônus (e o ônus) da quase invisibilidade perante uma mãe espremida por afazeres domésticos.
Não sei de onde vinha o medo. Sei que, toda noite, antes de pegar no sono, tremia debaixo do lençol numa rede. No quarto iluminado apenas pelo luar, implorava aos céus que não me aparecessem com seus inconfessáveis propósitos.
Mas nunca esbarrei em almas nas madrugadas em que muriçocas sedentas brigavam contra a espiral Sentinela (sem falar dos resmungos, entre provocantes e desafiadores, de gatas no cio, no telhado), dando o tom da sinfonia noturna até os meus 10 anos.
Um dia, passei a desconfiar de que almas, na verdade, nunca existiram. De que todos os seres vivos, inclusive os pés de algaroba, as moscas e os calangos, ao morrerem, retornariam ao mesmo lugar incerto de onde vieram. A exceção, talvez, foi a cachorra Baleia, da obra Vidas Secas (Graciliano Ramos), que, ferida de morte, desejou dormir. “Acordaria feliz, num mundo cheio de preás”.
Acabei criando uma linha direta com o dono do tempo, a fonte primária de tudo (mesmo sem saber ao certo do que se tratava). Sem intermediários. Nem mesmo a beata que me preparava para a primeira comunhão, ou a professorinha que me ensinou o bê-á-bá e que, do nada, um dia sumiu sem adeus em sua primeira e única gravidez.
O desinteresse em intermediários aumentou quando conheci o vigário da paróquia de Santo Antônio, na cidade de Patos (PB). Ele, para mim, tinha um hábito incompatível com a batina: abater arribaçãs – ave migratória, maior que uma rolinha, que durante o inverno voa para lugares mais quentes –, a tiros de espingarda, em caçadas nas manhãs de sábado.
De berço nobre, elegante, extrovertido, na minha enxerida opinião o padre tinha também um olhar aceso para toda mulher bonita que aparecia nas missas aos domingos. Só mais tarde, já taludo e longe dali, descobri que aquilo era o que os escritores (e os felinos no telhado, imagino) traduzem como lascívia e sedução. Mas teria sido apenas coisa da cabeça de menino curioso, atento aos rumores paroquiais envolvendo o exterminador de arribaçãs.
Depois da mudança com minha família para Alagoas – fora, portanto, do alcance da mira do pároco –, soube que ele transitou com desembaraço na cena política, chegando a ocupar a prefeitura municipal de uma cidadezinha próxima, além de exercer mandato de deputado estadual por quatro anos. Tinha um potencial que não poderia ser desperdiçado, via-se desde o começo.
Soube ainda que, por causa de um bingo para levantar fundos em favor da paróquia – autorizado, nos tempos da Redentora, pelo poderoso Ministério da Justiça –, o vigário, que escondia sob a batina um revólver para defesa pessoal, comprometeu a liturgia do cargo: ao receber voz de prisão por seguir cantando as pedras do jogo, cobriu de murros e tapas o juiz de direito que determinara a suspensão do evento.
Mas o governador do Estado, reconhecendo o peso sociopolítico do representante divino na área e o abuso de autoridade do juiz, resolveu o conflito rapidinho: afastou o magistrado de suas atividades.
Rezavam pelo mesmo rosário. Política e religião, religião e política, mistura explosiva com que se captura em proveito próprio as paixões alheias.
*Hayton Rocha, escritor
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