Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Só um cafezinho, vai…

Dedé Dwight

Só um cafezinho, vai…

  • Hayton Rocha

Não sei de você, mas, para mim, um cafezinho após o almoço tem o atributo mágico de arrumar as gavetas internas onde guardo minhas conquistas e frustrações. Põe cada pedaço no seu devido lugar, separando frios e quentes, doces e amargos, rígidos e flexíveis antes do cochilo dos desocupados.

Outro dia me apareceram uma tontura e um zumbido nos ouvidos. O médico me tranquilizou dizendo que possivelmente se tratava de “um transtorno vestibular”. Achei que estivesse de gozação, dado que o último concurso do tipo em que me meti tem quase meio século. Mas ficou claro, logo depois, que falava de um conjunto de pequenos órgãos dentro do ouvido interno (sistema vestibular), responsável inclusive pela manutenção do equilíbrio do corpo. Da mente, nem se atreve!

Confirmado o diagnóstico com exames complementares, o médico me encaminha a uma fisioterapeuta para fazer “reabilitação vestibular”. Ela, então, de primeira pontua que seria muito importante para mim evitar café. E seu argumento me deixa pensativo: tudo o que se come ou se bebe todo dia, a vida toda, um dia o corpo cobra. Caro, às vezes.

Penso, mas nada digo: tirando água, canja e chá de hortelã, ela pode ter razão. No entanto, nem deve ter ouvido falar do lendário boêmio Zé do Cavaquinho, que alertava aos frequentadores de seu estabelecimento (O Trovador Berrante, em Viçosa, no interior alagoano) de que “em excesso, até água de pote faz mal”.

Resolvo perguntar sobre possível substituto descafeinado, mas ela, de novo, me deixa reflexivo ao indagar se sou daqueles que acreditam que a indústria consegue, de fato, extrair 100% da cafeína, substância estimulante encontrada no café.

Nem me encorajei a contar o que um dia ouvi minha mãe dizer com indisfarçável orgulho: antes de andar ou falar algo inteligível, meus olhos inocentes e semicerrados cintilavam de gozo e prazer diante de café com cuscuz e tapioca, entre uma mamadeira e outra de mingau de maisena.

Com o correr dos anos, já me fizeram abrir mão, a contragosto, de um alfabeto de cheiros e sabores que me remetem a lugares em que fui feliz e sabia disso: acarajé, bolacha de sete capas, bolo souza leão, broa de goma, buchada, caldo de cana, canjica, cerveja, chocolate, cocada, doce de leite, goiabada cascão, pamonha, pão doce, pastel de rua, pé de moleque, picolé de coco, quebra-queixo, rabada, rabanada, rapadura, sarapatel, sonho, suspiro, tapioca, umbuzada…

Estou convencido de que uma pessoa só é totalmente livre quando pode beber e comer à vontade. Pior: até hoje, ninguém me pediu moderação no consumo de verduras e hortaliças, como se mastigar cebola crua não fizesse qualquer pecador ter uma visão prévia do inferno. Vá lá bem picadinha, no vinagrete, se o pernil de cordeiro estiver suculento e com pouco sal.

Tem quem diga que café é rico em antioxidantes, minerais, vitaminas e flavonoides (mesma substância encontrada no vinho, que, há mais de dois milênios, animou a Santa Ceia). Falam até que a ingestão desse néctar poderoso ajuda o cérebro a liberar estimulantes naturais como a dopamina (o hormônio da felicidade, da motivação) e a adrenalina, associada à disposição e a euforia.

Não boto tanta fé no que circula pela internet porque, quase sempre, existem fabricantes por trás investindo horrores em publicidade. Ou porque as descobertas científicas matutinas nem sempre batem com as vespertinas. Oscilam mais que humor de vascaíno em véspera de jogo decisivo.

Creio, no caso, em coisas mais práticas, intuitivas. Por exemplo, nunca vi ninguém cometendo um crime, uma maldade, uma grosseria sequer enquanto segura pela asa uma xícara de café, lentamente inalando o vapor e admirando os desenhos que se formam sobre a espuma antes do derradeiro gole.

Já não sinto qualquer tontura ou zumbido nos ouvidos, mas estou pensando seriamente em firmar declaração, de papel passado, em cartório e com firma reconhecida (para o caso de, um dia, nem com os olhos poder expressar minha vontade), assim: nos próximos 50 anos, se alguém quiser me obrigar a largar essa infusão dos deuses da mãe natureza, não serei responsável pelos meus atos. Posso, inclusive, recorrer a um canivete que escondo desde criança em minhas bugigangas.

Antes de consumada a desgraça, quem sabe a gente se senta, entra em acordo e toma um cafezinho (com pão de queijo, vai!) para celebrar a paz e a harmonia entre viventes inacabados e imperfeitos que somos, predestinados à inescapável hora de cada um.

*Hayton Rocha, escritor e blogueiro

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