Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

Cervantes e Conde Sandwich

Peperrompe/Pixabay

Cervantes e Conde Sandwich

  • Heraldo Palmeira

O Rio de Janeiro está em festa com a reabertura (sábado, 27/11) de um restaurante premiado, que também ostenta orgulhoso o título de Patrimônio Cultural Carioca.

O Cervantes, tradicional reduto gastronômico na esquina da avenida Prado Júnior com a rua Barata Ribeiro, em Copacabana, ficou quase 20 meses fechado em decorrência da pandemia. Seu retorno foi marcado por filas à porta e distribuição gratuita de rodadas de chope, sanduíches e batatas.

A reabertura se deu pelo esforço do empresário Antônio Rodrigues, proprietário do Belmonte – endereço de sucesso na cidade –, também responsável pela revitalização do Amarelinho (Cinelândia) e Nova Capela (Lapa), outros ícones da melhor boemia carioca.

A história da esquina agora famosa começou em 30 de julho de 1955 como uma simples mercearia fundada por Hamuss Zalman. Mas havia um negócio diferente no lugar: sanduíches “no capricho!”. O sabor, a qualidade, a fartura e as inesperadas rodelas de abacaxi como complemento dentro do pão fizeram a fama do estabelecimento.

Em 1965, dois espanhóis compraram a mercearia, transformaram o local em restaurante e mudaram o nome para Cervantes, homenagem ao escritor espanhol Miguel de Cervantes, autor de Dom Quixote. Tiveram o cuidado de manter no cardápio os já famosos sanduíches e esticaram o expediente noite adentro, virando referência nas madrugadas da Zona Sul.

O prato mais famoso do cardápio é o sanduíche de pernil com rodelas de abacaxi. No começo, feito com pêssego, não deu certo. A troca da fruta transformou o item num sucesso que deu fama ao lugar.

A maravilha gastronômica

Antes de Cristo os judeus já associavam pão com alguns alimentos. Também consta que egípcios, gregos, romanos, os povos nórdicos e a Europa da Idade Média adotavam o pão com recheio em seus hábitos alimentares. Na Roma antiga o bairro onde estavam os prostíbulos era cortado pela Via Panisperna (pão e presunto, em latim). Por isso, há quase um consenso de que diversos povos inventaram, ao mesmo tempo, um alimento democrático e acessível, que avançou pelo tempo ganhando novos ingredientes e múltipla personalidade.

Sandwich é uma cidadezinha medieval histórica e charmosa no interior da Inglaterra, considerada uma das mais bem preservadas do país. No século 18, fazia parte dos domínios de Lorde John Montagu (1718-1792), o 4º Conde de Sandwich.

Ele era membro da elite do governo britânico. Ocupou a Secretaria de Estado e comandou o almirantado da Marinha Real, posto em que cometeu um erro e mudou a história. Certo de que haveria um ataque da França, determinou que a armada permanecesse nas bases. Enquanto isso, do outro lado do mundo, George Washington e suas tropas proclamaram a independência dos EUA do domínio inglês.

O destino de correr mundo parecia reservado ao nome do conde. Dentre os seus parceiros habituais estava James Cook, famoso explorador britânico que terminou batizando de ilhas Sandwich algumas ilhas e ilhéus do oceano Pacífico, que hoje conhecemos como Havaí, e de ilhas Sandwich do Sul o que agora forma território ultramarino britânico no Atlântico Sul.

O conde era viciado em uíste, jogo de cartas para duas duplas, ancestral do bridge. Numa ocasião em 1762, o nobre estava jogando em Londres com amigos e não costumava abandonar o carteado para comer. Naquela noite em especial, consta que estava perdendo 50 libras, grana bem alta para a época, e decidido a recuperar o prejuízo. Noite alta, ele chamou seu serviçal e pediu que fizesse “algo de se comer que não lambuzasse os dedos”.

O rapaz foi até a cozinha e encontrou apenas pão e rosbife frio. O patrão determinou que o rapaz abrisse o pão ao meio e jogasse dentro algumas fatias da carne. Comeu sem tirar o olho das cartas, recuperou o dinheiro e abandonou a jogatina ao amanhecer. A novidade se espalhou pelos ambientes de carteado, que passou a ser pedida pelo nome do parceiro Sandwich.

No mesmo ano, o historiador Edward Gibbon registrou em seus escritos pessoais “Jantei no Cocoa Tree, onde vi vinte ou trinta dos principais homens de negócios do reino comendo um pedaço de carne fria ou um sanduíche”.

No século 19, a Revolução Industrial tirou as pessoas de casa para trabalhar fora e criou a necessidade de refeições rápidas. Em pouco tempo, o sanduíche tornou-se ainda mais popular na Inglaterra e foi conquistando Alemanha, Holanda, Itália e Estados Unidos, ganhando novos ingredientes em cada local.

Os ingleses não demoraram a incluir o sanduíche em diversas atividades da vida cotidiana e o novo costume se espalhou pelo resto do mundo, facilitando a vida das pessoas em viagens, eventos e quando não era possível usar talheres ou ter muito tempo para comer.

O sanduíche também alimentou a explosão desenvolvimentista dos EUA, onde as pessoas aprenderam a não voltar para almoçar em casa e a comer rapidamente, muitas vezes no próprio ambiente de trabalho – costume ainda muito atual por lá. Nesse embalo, surgiu o club sandwich, o mais famoso sanduíche de dois andares do mundo e ancestral do Big Mac. A origem dele é disputada por dois clubes nova-iorquinos, o Union Club (em 1889) e o Saratoga Club House (em 1894) – ao Saratoga também é creditada a invenção da batata frita clássica.

Em favor do Union há uma publicação do jornal The Evening World de 18 de novembro de 1889, onde a receita estava acompanhada da pergunta “Você já experimentou um sanduíche Union Club?”. Pelo fato de o Union ser muito fechado e o Saratoga, embora exclusivo, um resort, este pode ter popularizado mais o produto e capitalizado a criação.

Em 1904, os EUA caminhavam vertiginosamente para a posição de maior potência industrial do planeta e os americanos deram o empurrão final para a globalização do sanduíche. A cidade de St. Louis recebeu a Exposição Universal, realizada de 30 de abril a 1º de dezembro com a participação de 62 países e quase 20 milhões de visitantes. Paralelamente, aconteceu a III Olimpíada, ampliando ainda mais o impacto do evento.

Foi ali que multidões tiveram o primeiro contato com novidades gastronômicas que jamais sairiam de moda: algodão-doce, chá gelado, cone de wafer para sorvete, hot dog, hambúrguer, manteiga de amendoim e refrigerante Dr. Pepper.

Estava lá um conhecido vendedor de salsichas da cidade que sempre entregava luvas para os clientes manusearem o produto e esperava recebê-las de volta para lavar e reutilizar. Como o índice de devolução mostrou-se baixo e gerava custos, o comerciante teve a ideia de colocar a salsicha dentro de um pão. Sim, isso mesmo, estava pronto o cachorro-quente. E sua associação ao beisebol foi o estopim comercial, quando o dono do time St. Louis Browns resolveu vender a novidade nos locais dos jogos.

A criação do hambúrguer é atribuída a americanos de diversos pontos do país, em várias datas. A mais antiga versão vem de Athens, Texas, numa pequena lanchonete cujo dono Uncle Fletcher Davis afirmava vender o sanduíche desde os anos 1880. Foi ele quem levou a iguaria para a feira em St. Louis e batizou-a em homenagem à receita trazida por imigrantes alemães oriundos de Hamburgo. Em 1921 foi criada a White Castle, primeira cadeia de lanchonetes americana focada na venda de hambúrgueres, que oferecia a carne cozida no vapor e cheia de cebola – a rede opera até hoje, com quase 400 lojas em 13 estados.

Até o Brasil deu sua contribuição, a partir de São Paulo. Casimiro Pinto Neto era um bauruense, radialista e aluno da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Por conta da origem, era conhecido como Bauru e frequentava a lanchonete Ponto Chic, no Largo do Paissandu, onde costumava jogar sinuca. Numa noite de 1936, atrasado para uma partida, pediu ao chapeiro Carlos que abrisse um pão francês, tirasse o miolo, colocasse umas fatias de rosbife, queijo e tomate. O cara fez dois e quando Casimiro estava comendo chegou o amigo Quico (Antônio Boccini Júnior), provou um pedaço e gritou “Me vê um desses do Bauru”. A senha estava dada.

Em 1951, o imigrante libanês Fares Sader recebeu o pedido de um bauru na sua lanchonete Bambi, na alameda Santos. Como o pão francês havia acabado, teve a ideia de fazer o sanduíche utilizando pão sírio. Acrescentou uma mistura de especiarias árabe chamada zatar e estava criado o beirute, para homenagear a capital do seu país de origem.

Os historiadores que se dedicam à gastronomia confirmam que o Conde Sandwich não inventou o sanduíche, mas ficou impossível retirar o nome de batismo do pão recehado. Já dizia Benedito Valadares, velha raposa política mineira, “O importante não é o fato, mas a versão”. Com o aval do romancista francês Georges Duhamel, “Como toda pessoa séria, não acredito na verdade histórica, mas na verdade da lenda”.

Com o passar do tempo, o cachorro-quente e o hambúrguer, muito mais que sanduíches, viraram peças definitivas do “American Way of Life” metodicamente inserido no mundo pelo cinema, e agora estão presentes em todo o planeta. A frase lapidar do filme O Homem que Matou o Facínora (John Ford, 1962) saboreia a história do sanduíche: “Quando a lenda se torna realidade, publica-se a lenda”.

É claro que a alimentação saudável não morre de amores pelo sanduíche, mas o que seria de nós sem direito aos pecados? Bom apetite!

Até Woody Allen

Em 1971, enquanto rodava seu filme Bananas, o cineasta Woody Allen escreveu o conto A História de uma Grande Invenção, para homenagear o Conde Sandwich. O texto foi montado numa linha de tempo para contar fatos da vida do nobre inglês e do seu interesse por comida, com ênfase na delícia que eternizou seu nome. Na parte final, para enaltecer o nobre inglês que só queria comer sem lambuzar os dedos, Allen inventa palavras para o poeta alemão Hoelderlin: “Nossa dívida com ele é eterna. Ele livrou a humanidade da refeição quente”.

Saiba mais

http://outros300.blogspot.com/2013/03/conto-historia-de-uma-grande-invencao.html

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