Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

O Pacheco revoltado

StockSnap/Pixabay

O Pacheco revoltado

  • Sylvio Maestrelli

Fazia tempo que eu não via o Cido. Pra ser mais preciso, desde a Copa de 2014, a primeira que assisti já moranado aqui, na interiorana Araras. Você não conhece o Cido, mas duvido que exista alguém mais pachequista do que ele, quando se trata da Seleção Brasileira de Futebol. Aliás, quando nos apresentaram, já me pediram para que não estanhasse: ele gostava de ser chamado de Cido não porque seu nome fosse Aparecido, mas porque o pai o batizara de Alcides. E ele não admitia que o “xingassem” com seu verdadeiro nome, já que Alcides é também o primeiro nome de Ghiggia, nosso carrasco do Maracanazzo de 1950!

Na verdade, eu trombei com o Cido no calçadão. Ou, pra ser mais preciso, ele trombou em mim, cambaleante, depois de tomar todas no bar do Gino. Por pouco não me reconheceu, de tão tró-ló-ló que estava. “Pudera”, me disse, “vendo a França e a Argentina na final, me lembro do Zidane e do Maradona, véio!” E completou, já se apoiando no meu ombro pra se manter de pé: “Mas, fazer o que, né? Essa seleçãozinha do Tite é pior que a dos 7×1 do Felipão!”.

Embora eu estivesse bastante puto com o que o Brasil fez no Catar, pedi calma ao bebum. Sugeri também que sentasse um pouco pra gente conversar, pois percebi que o Cido estava completamente “fora de esquadro”. Lembrei a ele que a goleada sofrida diante dos alemães tinha sido nossa maior vergonha futebolística, que nunca um país campeão tinha sido humilhado daquela maneira em sua casa, que se os germânicos não tivessem “tirado o pé” o placar teria sido maior etc. Ou seja, arrolei todos os argumentos razoáveis, mas recebi a resposta mais pachequista possível: “Acontece!” Fiquei pasmo! – cachaçado ou não, o Cido jogou muito bem de zagueiro e manja de futebol.

Tentei, então, mudar de assunto. Mas ele insistia, me provocando: “Eu provo que aquela Seleção do Felipão e do Parreira era melhor que essa”. Insistiu, insistiu, insistiu. Repetia a afirmação, como um mantra. Não houve como: pedi então a ele que justificasse porque estava dizendo uma asneira daquelas, persistindo, imutável, no absurdo.

O rosto do Cido se iluminou. Como num passe de mágica, a língua desenrolou e ele desancou a elencar seus argumentos. “Pra começar, o Júlio César tomou 10 gols na semifinal e no jogo do terceiro lugar. Mas ele catou penais contra o Chile e nos classificou. O Alisson pulava pros lados e os chutes dos croácios (reproduzo fielmente sua fala) entraram no meio do gol. Verdade ou mentira?” Fiquei quieto.

Ele continuou: “Naquela época, a gente tinha o Fred, aquele do Flu, que todo mundo chamava de poste e ninguém gostava porque ficava paradão lá na frente. Mas era artilheiro. E ele jogou duas Copas. Fez gols nas duas. Agora, a gente teve esse outro Fred, que devia ficar paradão que nem um poste lá atrás. Só que, como é ruim de bola e teimoso, correu que nem um louco lá pra frente e nos ferrou. Quem era melhor?” Nem deu tempo pra que eu argumentasse nada e já veio com a próxima, afirmando que em 2014 o Daniel Alves era novo e ficava na reserva do Maicon, e que, no Catar, já vovô, queria ser titular!

Percebendo que sua fisionomia estava mais vermelha que na hora da trombada, decidi interrompê-lo, ponderando que hoje nosso ataque e nossa defesa são melhores. Ideia que ele rechaçou de pronto. “Como é que é? Então esse tal Danilo, que vive machucado, é melhor que o Maicon? E os dois Alex – Telles e Sandro – você pode juntar que não dá a categoria de meio Marcelo!”

Engoli seco e parti pro ataque, explicando que Tite tinha bem mais opções que Felipão. Até aí ele discordou: “Sabe por quê? Porque o Parreira, com aquela mania de quem foi militar, não queria nem o Robinho, nem o Ronaldinho Gaúcho no time, ele só admitia jogador bonzinho, bem comportado”! Com os dois no time e o Hulk na frente, duvido que os alemães partissem pra atacar.” E emendou: “Sabe, amigão, e no meio de campo tínhamos muita gente boa, hoje só sobra o Casemiro e os reservas, o Fabinho e o Éverton, que o Tite não escalou. Em 2014, nós tinha (sic) o Oscar (único que foi eleito entre os 11 melhores do Mundial), o Paulinho, o Hernanes, o Fernandinho, todos melhores que esses mimizentos de hoje, que nem lembro do nome agora… E não quiseram chamar o Felipe Melo. Imagine se o tal de Kroos e aquele outro de nome comprido (“Schweinsteiger”, acrescentei) iam entrar tabelando…Era bola ou bolim!” – ele já misturou com a bocha.

O tempo passava, eu ainda tinha que passar no mercadinho pra comprar umas verduras e frutas. Mas resolvi dar mais trela ao Cido. Pedi que continuasse, falei que talvez ele pudesse me convencer. E ele não se fez de rogado. Continuou soltando o verbo, me causando até uma certa estranheza pois estava acostumado ao seu pachequismo. Comparou: “Quanto foi Brasil x Croácia em 2014? Ganhamos de 3×1! Quanto foi Brasil contra Camarões? Ganhamos de 4×1! E no Catar?”. Me deixando no vácuo, completou, suando: “E tem mais, véio: desde 2006, quando o Roberto Carlos tava amarrando a chuteira ou ajeitando a meia – sei lá! –, só em 2014 ficamos entre os quatro primeiros. Tomamos de 7 dos alemães e, depois, de 3 dos holandeses, mas pegamos quarto lugar. E agora, hein, o que me diz?”

Olhei pro relógio, lembrei das compras. Mas não resisti e mandei a última pergunta: “E o Neymar?”. Cido parou. Mesmo ainda fedendo a pinga, parecia estar raciocinando profundamente, puxando algo da memória. Deu um sorriso amarelo, igual ao do Tite na entrevista pós Camarões. Acho que pela sua cabeça passaram a joelhada do Zuniga no Brasil, o cai-cai na Rússia, a contusão no Catar e até mesmo – ele leu, com certeza – a depressão e o profundo estresse psicológico sofrido e curado em tempo recorde com divertidíssima balada. Me encarou e perguntou: “Tem certeza que Neymar jogou?”.

Despedi-me com um longo abraço. Passei no mercado e ao chegar em casa descrevi o encontro pra Lourdes, que torce pelo Brasil, mas admite não entender nadica de futebol, só assiste a Copas do Mundo. E para minha surpresa, ela me sugeriu: “Reflete bem, bem… ele não está tão errado, não…”. Fiquei com a estranha sensação de quem toma uma “caneta” num estádio lotado. Sei lá…

*Sylvio Maestrelli, educador e apaixonado por futebol

Acompanhe aqui a nossa série sobre a participação do Brasil em todas as Copas

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