Lionel Messi/Lance (Arquivo)/Reprodução
A taça do mundo é deles
- Heraldo Palmeira
Poucos dias antes da grande final da Copa do Catar, já com adversários definidos, participamos de uma brincadeira digital em que a foto de uma deliciosa guloseima da panificação circulou acompanhada pela mais fina ironia: “Domingo vamos finalmente saber se isso é um croissant ou uma medialuna”. Em poucos minutos, uma enxurrada de amigos respondeu, sempre fazendo opção por escolher um dos nomes, que obviamente traduzia a torcida particular para o jogo Argentina x França.
Um jogo épico, quem teve o privilégio de assistir vai lembrar sempre. Um primeiro tempo da Argentina que sempre estará traduzido como um banho de bola nos franceses, ainda mais com o confortável 2×0 no placar. O tino do técnico Lionel Scaloni de anunciar Di Maria de ponta-direita e fazê-lo jogar na esquerda desmontou uma grande arma ofensiva francesa. Dembélé foi completamente anulado e ficou em campo sem qualquer função tática relevante, apenas completando o time.
Outra bela artimanha foi criar um sistema de marcação para Griezmann, que “inutilizou” em campo o ótimo jogador – o melhor francês no torneio – e impediu uma jogada bastante eficiente em todos os demais jogos da França: os lançamentos longos dele para fazer Mbappé disparar sobre os marcadores.
No retorno para o segundo tempo, parecia haver no ar uma pitada de soberba dos hermanos em campo, o excesso de confiança, o maldito “já ganhou” inclusive com a torcida gritando “olé” muito mais cedo do que deveria. Não demoraram a pagar pela ousadia de despertar um Kilyan Mbappé mordido e amparado pelas alterações precisas do técnico Didier Deschamps, um cara que conseguiu fazer milagre com seu elenco esfacelado pelo corte de quatro ou cinco titulares, por contusão, pouco antes de a Copa começar.
A virada da chave francesa foi a substituição precipitada de Di Maria por Acuña, um jogador defensivo e sem qualquer lampejo de brilho. Mbappé fez dois gols num intervalo de menos de dois minutos e a partir dali o jogo ganhou um novo desenho, a Argentina ficou completamente abalada emocionalmente e passou um sufoco de gente grande. Também escapou de um perigo imenso com a ajuda do juiz, que não deu uma claríssima lei da vantagem aos franceses nos minutos finais, marcando a falta e interrompendo um contra-ataque onde ficariam dois franceses, um deles, Mbappé, contra um defensor argentino e o goleiro. E a partida foi para a prorrogação.
Os argentinos voltaram um pouco melhores que os franceses e Messi (foto) abriu nova vantagem, até que Mbappé empatou de novo. A seleção albiceleste foi salva no minuto final da prorrogação pelo goleiro Emiliano Martínez, que fez “a defesa da Copa” ao evitar um gol certo de Kolo Muani. E a decisão foi para os pênaltis.
No mundo da loteria das disputas de pênaltis, tivemos de cara uma grande lição: os principais jogadores de cada lado, Messi e Mbappé, que lideraram suas equipes em todo o torneio sem qualquer sombra de dúvida, foram os primeiros cobradores e converteram. Depois, brilhou a estrela do goleiro argentino, que pegou uma cobrança e viu outra ir para fora. Argentina campeã com brilho e toda uma extraordinária história ao redor da conquista, que mistura superação, senso de equipe, garra e uma rara simbiose entre o país e a seleção. Sem contar um merecido altar de louvor a Lionel Messi. Deu medialuna na cabeça!
Do lado francês a decepção ficou sintetizada em Mbappé, um garoto de 23 anos que carregou seu time para uma reação mágica e marcou quatro gols numa final de Copa do Mundo. Três deles, em pênaltis batidos contra um goleiro estupendo e famoso por defender esse tipo de cobrança. O francês não tomou conhecimento do adversário e balançou suas redes em todas as ocasiões, sem qualquer chance de defesa.
Logo depois do retorno a Paris – onde os bleus foram recebidos com merecida festa – começou a circular que seu grau de tristeza é tamanho que cogita deixar o PSG ainda em 2022. Imediatamente, as especulações apontam para o “eterno destino” Real Madrid na janela de transferências que se abre em janeiro/2023. Talvez fique apenas na especulação, uma reação de primeira hora e passageira provocada pela dor da derrota inesperada.
Além disso, Karim Benzema anunciou que se aposentou da seleção francesa. Talvez nem fosse necessário, pois não faltaram rumores de que ele já havia sido aposentado pelos colegas, era presença indesejada no vestiário. Nesse processo do corte para a Copa ele ficou tão amuado que recusou o convite do presidente francês Emmanuel Macron para assistirem juntos a partida final.
Nas bandas da Argentina, fora o vexame do goleiro tirar da cartola uma cena obscena para apresentar ao mundo o merecido troféu de melhor goleiro da Copa – sempre aparece algum vampeta para avacalhar o que não consegue alcançar –, ainda bem que também existe Lionel Messi, o craque do Mundial e um gênio da bola.
Durante muitos anos, em razão de suas atuações sem grande brilho pela seleção, Messi foi acusado de não ter empatia com a Argentina, de ser “espanhol”. Parece que a chave finalmente virou a partir da conquista da Copa América 2021, disputada no Brasil, encerrando longo jejum de títulos dos hermanos.
O maior craque do século 21 se despediu em grande estilo das Copas, reforçando ao mundo que é possível construir uma carreira única com disciplina, determinação, humildade, senso coletivo, liderança indiscutível e muita, muita discrição. Talvez esse seja o motivo de a palavra “gênio” cada vez mais lhe caber com naturalidade, quase sinônima.
Há uma cena do jogo Argentina 2×2 Holanda totalmente emblemática a respeito de liderança. Ao fim da disputa de pênaltis todos correram para cumprimentar Lautaro Martínez, que acabara de converter a cobrança que colocou a Argentina nas semifinais. Discretamente, Messi escolheu ir para o outro lado da festa cumprimentar seu goleiro, estatelado no gramado ao lado da grande área onde havia se consagrado. Sim, fora ele o grande responsável ao defender duas cobranças holandesas.
Doravante, os argentinos, apaixonados por tragédias e dilemas existenciais têm uma grande tarefa pela frente: aceitar que Lionel já é maior do que Diego. A começar pelo tempo de carreira em alto nível, o resto dos números é acachapante em favor do agora tricampeão mundial. E não adianta estrebuchar, o tempo de atuação como jogadores profissionais é muito similar: Messi (19 anos), Maradona (21 aos). Ou seja, a distância tende a aumentar, já que La Pulga ainda não anunciou a aposentadoria do esporte, apenas da seleção, e dá sinais de que continuará jogando mais algumas temporadas.
Messi jogou mais Copas (5 a 4), vestiu mais vezes a camisa da seleção (172 a 91), marcou mais gols na carreira (804 a 495 – algumas estatísticas reduzem a marca de El Pibe para 345), na seleção (97 a 34) e em Copas (13 a 8). Tem mais jogos oficiais na carreira (1.058 a 706) e em Copas (26 a 21). A disputa de Bola de Ouro é devastadora (7 a 0). O novo herói argentino só perde para Maradona em número de clubes em que atuou (6 a 2) e no componente de tragédia que marcou o também extraordinário Don Diego. Lionel também nunca foi dado a milongas como o tal gol “La Mano de Dios” e é difícil imaginá-lo contando vantagem de coisas assim.
Messi agora é o jogador que mais entrou em campo (26 partidas) em Copas na história, ao ultrapassar o alemão Lottar Matthäus (25). Também está na galeria dos oito únicos jogadores que participaram de cinco Copas, numa lista que inclui próprio Matthäus, o português Cristiano Ronaldo, o italiano Gianluigi Buffon e os mexicanos Andrés Guardado, Antonio Carbajal, Guillermo Ochoa e Rafa Márquez.
Muitos cronistas já concordam que, depois do Catar, Messi fica abaixo apenas de Pelé no panteão do futebol, já superando e abrindo distância sobre Maradona. Afinal, está há 15 anos jogando em alto nível e entre os melhores do mundo – algo que Maradona sequer chegou perto, incluída sua passagem problemática e melancólica pelo Barcelona.
Diante de tamanho espetáculo em campo dos quatro finalistas e do merecido triunfo argentino, qualquer torcedor brasileiro minimamente interessado em algo além da farra tradicional de uma Copa do Mundo percebeu o oceano que separa a Seleção Brasileira do futebol competitivo que está sendo praticado em muitos lugares do mundo.
Mais do que nunca, esses técnicos brasileiros ultrapassados e enfadonhos precisam aprender a lição com seus colegas estrangeiros de alto nível que brilharam na vitrine da Copa. A distância é tamanha que os portugueses Jorge Jesus, Abel Ferreira e Vitor Pereira, mesmo sem jamais terem pisado perto das principais prateleiras internacionais, “revolucionaram” o jogo da bola no Brasil.
Os pobres mortais como nós nem precisam coçar a cabeça para compreender tática futebolística, basta ouvir Rivelino – aquele mesmo, “A Patada Atômica” do Corinthians, Fluminense e do Escrete Tricampeão, aquele a quem ninguém menos que Maradona tratava como ídolo e inspirador. O velho Riva acha que o técnico seria o principal responsável do decepcionante futebol da Seleção. E não deixou por menos no programa Resenha ESPN: “O Tite engessa a nossa Seleção. Taticamente é engessada, não tem nada. É um na direita, um na esquerda, e um no centro. Não tem nada. Ninguém se mexe”. Já Zé Elias, ex-jogador agora ocupando microfones da mesma ESPN, foi taxativo: “Tite subestimou o conhecimento do jogo do Brasil pelos adversários […] Tite diz que ‘o campo fala’, mas isso não serve para ele’’, completou balançando as redes.
Copa do Mundo é mais do que futebol, costuma servir de laboratório para o futuro. É preciso entender o mecanismo da disputa, decidir rápido e se impor já na fase de grupos. Cada jogo é único e a partir das oitavas vira uma espécie de final porque tudo é mata-mata. Como bem diz meu querido amigo e parceiro musical Nando Gross, experimentado cronista esportivo, “É preciso ousadia […] Em uma Copa são 7 jogos para chegar ao título, não há tempo para dúvidas e técnicos conservadores”.
Também não há lugar para aquele “Carnaval” constante na delegação, figurinhas irremovíveis independentemente de jogarem bem ou mal, o entra e sai de ex-jogadores opinando até sobre escolha do futuro técnico e, last but not least, infestar tudo com um bando de jogadores mimados, familiares atrapalhando treino e cabelereiros “oficiais” para inventar cortes horrorosos e pintar tudo de dourado. Por isso e muito mais o ouro foi parar em Buenos Aires, poderia ter terminado em Paris, Zagreb ou Rabat sem qualquer favor, mas continua longe de nós desde o ainda exclusivo e cada vez mais longínquo pentacampeonato de 2002.
A velha fórmula de resumir tudo à crendice de que somos os melhores e tudo dará certo no final não cola mais. Até a música de 1958 que celebrou nosso primeiro campeonato – “A taça do mundo é nossa / Com brasileiro não há quem possa” – parece soar com o primeiro verso trocado para “A taça do mundo é deles”. Leite derramado, só resta limpar a bagunça e renascer para 2026.
Acompanhe aqui a nossa série sobre a participação do Brasil em todas as Copas