Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

Campeonatos estaduais. Até quando?

Jan-Niklas Kö/Pixabay

Campeonatos estaduais. Até quando?

  • Sylvio Maestrelli

Era uma vez os campeonatos estaduais. Programa obrigatório dos domingos e boa opção para as noites das quartas-feiras. Pacaembu, Morumbi, Maracanã, Mineirão, Beira-Rio, Olímpico, Orlando Scarpelli, Couto Pereira, Fonte Nova, Arruda, Ilha do Retiro, Aflitos, Rei Pelé, Castelão, Alberto Silva, João Castelo, José Fragelli, Mangueirão, Vivaldo Lima… Lotavam para os clássicos e mesmo quando o jogo era entre um time grande e um pequeno, líder contra lanterna. Eram tempos em que o futebol encantava as torcidas locais de forma indiscutível, a ponto de, em 1987, Moto Club 3×1 Sampaio Corrêa ter levado ao estádio João Castelo nada menos do que 95 mil torcedores. Era apenas um jogo do Estadual maranhense.

Com preços de ingressos acessíveis, as diversas classes sociais se uniam e as torcidas – na maioria desorganizadas – se misturavam, espremidas, rindo e chorando com as vitórias e as derrotas diante de seus rivais tradicionais. Desfraldando e enrolando bandeiras multicores. Aplaudindo e xingando adversários, juiz, bandeirinhas e não raras vezes seu próprio time. Bons tempos aqueles, onde os radinhos de pilha colados no ouvido ampliavam a emoção que corria no gramado e serviam de VT imaginário na voz de locutores, comentaristas e repórteres de campo nos lances duvidosos. “Errrroooouuuu!”, “Goool legaaaal!”, “Banheeeeiraaaa”, “La mano! Cadê o eco? La mano!” bradava Mário Vianna no poderoso microfone da Rádio Globo, bordões eternizados e que valiam para todos.

Os Estaduais são um produto tipicamente brasileiro, durante anos catalisaram as paixões dos torcedores. Afinal, dentre os principais campeonatos nacionais do mundo inteiro, o Brasileirão é um dos mais tardios, pois começou apenas em 1959 e passou sucessivamente por várias fórmulas de disputa: Taça Brasil (1959 a 1968), Robertão, (1967 a 1970) e Nacional (a partir de 1971), após nosso tricampeonato mundial no México. Em termos comparativos, o primeiro campeonato argentino é de 1891, o inglês, de 1892, o italiano, de 1898, o uruguaio, de 1906, o espanhol, de 1928, o francês, de 1932, e o alemão, que teve durante anos somente torneios de ligas regionais, de 1962.

Nossos Estaduais remontam ao início do século 20. O mais antigo deles, o Paulista, nasceu amador em 1901. Os outros mais significativos também tiveram sua primeira edição ainda na época do amadorismo: Baiano (1905), Carioca (1906), Mineiro, Paranaense, Pernambucano e Cearense (1915) e Gaúcho (1919).

Como curiosidade, os maiores campeões estaduais do país são o ABC (Natal, Rio Grande do Norte), com 57 conquistas, o Bahia (Salvador, Bahia) e o Paysandu (Belém, Pará), ambos com 49 títulos. No caso potiguar, o América RN (maior rival do ABC, com 36 títulos) requereu licença da federação e se retirou da disputa de 1959 a 1966, para destinar todos os recursos à construção da sede social – que existe até hoje. Nesse ranking de Estaduais existem dois decacampeões, algo inédito no mundo. O América Mineiro (1916-1925) e o ABC (1932-1941) ganharam dez campeonatos seguidos em seus estados.

Em contextos em que a meritocracia predominava, os Campeonatos Estaduais foram extremamente importantes. Até 1950, quando inexistiam competições regionais ou nacionais regulares, ocorriam disputas extraoficiais para apontar “o melhor time do país”. Quem se enfrentava eram os campeões estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro, os grandes centros futebolísticos da época, cujas principais equipes atraíam os craques das demais regiões do Brasil. Entre 1950 e 1958, o Torneio Rio-São Paulo funcionava como o autêntico Campeonato Nacional da época, embora só participassem os cinco principais clubes paulistas e os cinco cariocas, indicados por suas respectivas federações e com a inclusão obrigatória do campeão estadual de cada uma.

Quando foi realizada a primeira Taça Brasil, em 1959, o torneio ganhou perfil realmente nacional porque participaram os campeões de todos os Estaduais do ano anterior. Essa competição só foi criada porque o Brasil precisava indicar seu representante para a Libertadores da América, criada pela CONMEBOL para definir o melhor time sul-americano, que enfrentaria na decisão do Mundial de Clubes (também chamada Copa Intercontinental) o campeão europeu.

Até ali, não tínhamos um campeão brasileiro oficial. E para chegar a um título mundial de clubes, um time do Brasil teria que ser campeão estadual, nacional e continental. Meritocracia pura. Ou, no mínimo, a partir de 1960 (quando o campeão da Taça Brasil do ano anterior se classificava automaticamente para a próxima), ter sido campeão da edição anterior daquela Taça e vencer alguns campeões estaduais. Era notável a importância que as equipes davam aos campeonatos de seus respectivos estados porque, sem ele, não havia participação na Taça Brasil.

Por isso, naquele período áureo do nosso futebol, conquistar campeonatos estaduais se constituía autêntica façanha, vitória em uma competição repleta de estrelas. Em São Paulo, o Santos de Pelé tinha que superar o Palmeiras de Ademir da Guia, o Corinthians de Luizinho, o São Paulo de Roberto Dias. No Rio de Janeiro, o Botafogo de Garrincha tinha que ficar à frente do Flamengo de Dida, do Fluminense de Valdo, do Vasco de Belini. Grêmio ou Internacional, Atlético Mineiro ou Cruzeiro, Santa Cruz ou Náutico, Ceará ou Fortaleza, Coritiba ou Athletico Paranaense, um dos dois sempre estaria fora.

Não bastassem as equipes grandes serem poderosas, já que os nossos craques atuavam por aqui – ainda não havia esse êxodo para outros países –, os chamados “pequenos” montavam esquadrões marcantes, que disputavam os campeonatos encarando os mais poderosos. Quem não se lembra, por exemplo, da outrora letal Portuguesa de Desportos, e dos fortíssimos esquadrões campineiros de Guarani e Ponte Preta, além dos ótimos times que tiveram Ferroviária (Araraquara), Botafogo (Ribeirão Preto), XV de Novembro (Piracicaba) e muitos outros do interior, fazendo história nos Paulistas? Ou dos brilhantes Bangu e América – e até o Olaria, de Afonsinho – derrubando grandes nos Cariocas? E o surpreendente Renner gaúcho? Ou os mineiros do América e Vila Nova, e do Siderúrgica, de Sabará?

Os Estaduais eram autênticas vitrines de atletas, revelavam novas estrelas todos os anos. Serviam para que futebolistas de equipes pequenas mostrassem sua técnica, recém-contratados demostrassem seu valor, e ainda como meio de fixação de promessas da base nos times principais dos chamados “grandes”.

O fantástico Santos de Pelé, maior do mundo nos anos 1960, é um exemplo na identificação de craques em times pequenos. Dorval foi descoberto no Força e Luz (RS). Mengálvio, no Aymoré de São Leopoldo (RS). Coutinho, no XV de Piracicaba. Toninho Guerreiro, no Noroeste de Bauru. Zito, no Taubaté. Lima, no Juventus. E o próprio Pelé, trazido do Bauru Atlético Clube.

O esquadrão palmeirense do início dos anos 1970, que se tornou conhecido como Academia, não ficava atrás. Leão veio do Comercial de Ribeirão Preto. Eurico, do Botafogo de Ribeirão Preto. Luís Pereira, do São Bento de Sorocaba. Dudu e Nei, da Ferroviária de Araraquara.

Como exemplo da fixação de ex-juvenis talentosos, foi no Campeonato Carioca que explodiriam Zico, Júnior, Leandro, Tita, Adílio, Geraldo, Andrade, Mozer e outros craques da máquina flamenguista da década de 1980. E foi no Mineiro que se formou o timaço do Cruzeiro de Tostão, Dirceu Lopes e Wilson Piazza, antes de se consagrar na Taça Brasil de 1966. No Gaúcho, Carpegiani, Falcão, Batista e Caçapava brilharam juntos inicialmente.

Só que o tempo passou. O futebol mudou muito. Fatores econômicos se impuseram sobre a meritocracia, sobrepujando as questões puramente técnicas. Os calendários – nacional e internacional – se ampliaram, com muitas competições disputadas simultaneamente. No mundo todo, investidores poderosos conseguiram transformar, com injeção de capital e a consequente contratação de astros, times outrora medianos em potências (Chelsea, PSG), enquanto equipes tradicionais despencaram (Hamburgo, Torino). E nesse contexto de transformações se questiona também, no Brasil atual, a importância de se manter ou não os Estaduais, que, segundo alguns, são anacrônicas e não fazem mais sentido.

Seus defensores argumentam que a tradição, as rivalidades locais e a presença dos times grandes jogando no interior dão alento a vocações e fortalecem a conquista de novos torcedores. Citam até que “clássicos interioranos” como Guarani x Ponte Preta (Derby Campineiro), Caxias x Juventude (Ca-Ju), Treze x Campinense (Campina Grande) ou mesmo alguns clássicos históricos de capitais (Remo x Paysandu, Goiás x Vila Nova, Ceará x Fortaleza (Clássico Vovô), ABC x América (Clássico Rei), Bahia x Vitória (Ba-Vi), Avaí x Figueirense, Sport x Santa Cruz, Náutico x Santa Cruz dificilmente aconteceriam em Nacionais, já que nem os times estariam nas mesmas séries. Seguem o raciocínio dos presidentes das federações de cada Estado, que nos mesmos pontos surrados: os Estaduais fazem parte da história do futebol brasileiro, não há país no mundo que tenha Estaduais, sem eles o futebol brasileiro ficaria restrito aos grandes centros, perdendo sua essência. Em defesa dos seus pontos de vista enfatizam até alguns títulos estaduais esporádicos, como os do Ituano, Bragantino, São Caetano, Internacional de Limeira, Juventude, Caxias, Londrina, Caldense e o título nacional obtido pelo inesquecível Guarani, em 1978.

Pensando de forma oposta, os dirigentes das principais equipes consideram tais competições longas, deficitárias e desorganizadas. Também alegam que no mesmo período poderiam fazer uma produtiva pré-temporada, participando de torneios e mesmo se exibindo em amistosos (com boas cotas) no exterior – algo que o Santos fazia com maestria nos tempos de Pelé.

Por discordarem desse posicionamento, os presidentes das federações, “donos” dos Estaduais, fazem valer seus poderes (como o de desfiliação, por exemplo, que impediria aos clubes “rebeldes” a participação em torneios promovidos pela CBF). Dessa forma, coagem para que os grandes atuem “completos” (não com times mistos) em suas competições, para não “esvaziá-las”. Além de aumentarem algumas premiações.

Críticos que analisam a questão de forma mais racional e menos passional se perguntam para que servem os Estaduais hoje. Eles mesmos respondem: para nada. Talvez tenham razão, porque os Estaduais são pouco valiosos para os clubes que não o conquistam, a média de pagantes é baixa, a maioria dos jogos entre os pequenos não tem público e renda, os estádios do interior, via de regra, não se modernizaram, são muito ruins e há jogos em cidades muito distantes das capitais e sem infraestrutura adequada. Também não garantem vaga nem para o Nacional, via Série D, nem para a Copa do Brasil, já que os critérios mudam anualmente. Perderam o privilégio de revelar jovens promissores, que desde as categorias de base já são conhecidos e têm seu desempenho monitorado pelos gigantes europeus – nesse aspecto, torneios nacionais de juniores como a Copinha São Paulo, a mineiríssima Copa Itatiaia, carinhosamente chamada de A Copa do Mundo do Amador/Várzea, são bem mais relevantes como celeiros de talentos.

Os Estaduais não empolgam mais os torcedores, pela disparidade técnica entre os grandes e os pequenos, em sua maioria times bancados por empresários. Não chamam a atenção do público jovem, que prefere ver pela televisão as disputas nacionais mais relevantes e os campeonatos europeus. E, por último, atrapalham o calendário nacional e internacional, tornando-se, em suma, uma excrescência que clama por solução.

Na verdade, as críticas não se limitam aos Estaduais tidos como mais importantes, mas a todos, indistintamente. E a realidade vai demonstrando que uma competição regional bem-organizada, como a Copa do Nordeste, a já famosa Lampions League, é muito mais instigante, produtiva e proveitosa – técnica e economicamente – do que os Estaduais nordestinos. Deveria ser uma ótima experiência o país ter, todos os anos, suas copas regionais, inclusive com uma disputa final entre os cinco vencedores.

Claro que o assunto não é simples e mexe com paixões e grandes rivalidades. Mas não custa se colocar no lugar de um presidente de clube grande, cujas despesas são gigantescas. Se seu time ganha um Estadual, aquele título pouco vai contribuir financeiramente. Além de gerar obrigações de premiações ao elenco e equipe técnica, ocupará a agenda e impedirá que o time participe de outras competições mais lucrativas, de mais visibilidade e com nível técnico mais elevado, capaz de garantir melhor preparação do elenco para a temporada. Também evitaria crises internas geradas pelos vândalos das torcidas organizadas e torcedores fanáticos que consideram “obrigação” estar sempre à frente do ranking em relação aos rivais locais históricos.

Cada vez mais cabe a pergunta “Para que servem os Estaduais?”. Insistir em mantê-los seria um tiro no próprio pé? Ainda bem que a maioria de nós apenas torce pelo time do coração. Não somos pagos para resolver pela CBF e federações estaduais esse quiproquó futebolístico que, no modelo atual, serve somente para tornar ainda mais insano o calendário do futebol brasileiro, prejudicar os clubes e colocar uma sobrecarga física desumana sobre os jogadores.

Na arquibancada ou diante da TV a galera apaixonada só está preocupada em gritar gol e festejar títulos. Vestindo a camisa de devoção. Desfraldando e enrolando bandeiras multicoloridas. Aplaudindo e xingando adversários, juízes, bandeirinhas e até seu próprio time. Que venham melhores tempos!

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