Por Heraldo Palmeira
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22 de novembro de 2024

Boeing 747 – A despedida da lenda

Boeing/Divulgação

Boeing 747 – A despedida da lenda

  • Heraldo Palmeira

O último exemplar da “Rainha dos Céus” a ser entregue saiu da oficina de pintura da Boeing no aeroporto de Portland para um voo curto até a fábrica em Everett, nos arredores de Seattle. O jumbo Boeing 747-8F matrícula N863GT colocou o ponto final na produção de uma lenda da aviação.

O avião é um modelo cargueiro e será entregue à Atlas Air, empresa norte-americana de transportes de cargas e que atualmente é a maior operadora mundial de Boeing 747 – comprou as quatro últimas unidades produzidas pela Boeing e tem agora 57 na frota. O próximo passo será a realização dos testes de aceitação pela proprietária da aeronave, etapa técnica que antecede a entrega oficial. A solenidade deverá ocorrer em fevereiro.

O último 747 da história foi batizado Empower (empoderar), recebeu na fuselagem a pintura tradicional da Atlas Air na cauda e no lado direito e da Apex Logisticis (subsidiária da gigante suíça de logística Kuehne + Nagel) no esquerdo. Além disso, terá um adesivo aplicado embaixo das janelas do cockpit (cabine dos pilotos) com desenho composto pelo rosto de Joe Sutter (ex-engenheiro-chefe da Boeing e considerado o “pai” do 747) acima do primeiro modelo fabricado e a frase Joe Sutter-Forever Incredible (Joe Sutter-Incrível para Sempre).

Essa derradeira geração 747-8F transporta até 137,7 toneladas de carga, 20% mais do que o antecessor 747-400F, com redução de 16% no consumo de combustível. Alcança distâncias de até 14,3 mil km sem reabastecer. Foi a aposta final da Boeing para dar continuidade à produção, com previsão de venda de 300 aeronaves. A realidade falou mais alto, foram apenas 150 unidades comercializadas e a empresa decidiu descontinuar o modelo. Entretanto, a quantidade de Boeing 747 em operação manterá a “Rainha dos Céus” voando por muitos anos, para alegria dos apaixonados pela aviação e de quem testemunhou uma época romântica das viagens aéreas.

História Em 1963, a Boeing perdera uma concorrência para fornecer uma aeronave de grandes dimensões para a Força Aérea dos EUA. Entretanto, estavam prontas as bases de um novo produto que terminou revolucionando o mercado. Tudo porque a companhia aérea Pan Am, então a maior do mundo, enfrentava a saturação dos aeroportos e demanda crescente por assentos, num momento favorável em que o crescimento da aviação comercial tinha permitido o barateamento dos custos dos bilhetes. Ter um avião maior equacionava alguns problemas: um mesmo aparelho transportaria muito mais passageiros (o equivalente à capacidade de dois aviões comerciais normais) e empregaria uma só equipe de terra e uma tripulação para atender cada voo.

Aquele projeto da Boeing provocou um diálogo curto que modificou definitivamente o segmento e estabeleceu o modelo de negócio como conhecemos hoje:

– Se você construir o avião, eu compro.

– Se você comprar o avião, eu construo.

Era o desfecho de meses de sondagens e tensões entre dois nomes fundamentais da aviação moderna, Juan Terry Trippe, presidente da Pan Am, e William “Bill” Allen, presidente da Boeing.

A aposta alta da companhia aérea ao fazer uma encomenda inicial de 25 unidades tirou das pranchetas dos projetistas da Boeing e jogou nos ares, em apenas 16 meses de desenvolvimento, o inédito modelo 747-100, uma aeronave que nasceu sem semelhanças com qualquer outra até ali conhecida. Tornou realidade o avião que muitos consideram o mais icônico de todos os tempos, que levantou voo pela primeira vez em 9 de fevereiro de 1969 para realização de testes técnicos.

O voo comercial inaugural deu-se em 22 de janeiro de 1970 entre Nova York e Londres com lotação completa de 362 passageiros, que entraram para a história como os primeiros da era wide-body (fuselagem larga), aeronaves com sete ou mais assentos por fileira e mais de um corredor interno. O 747 ganhou o apelido carinhoso de “Rainha dos Céus” e segue em operação mantendo o charme, apesar da concorrência trazida pelo Airbus A380, outro gigante dos ares que começou a voar em 25 de outubro de 2007 na frota da Singapore Airlines. Produzido a partir de 2005, o grandalhão europeu foi descontinuado em 2021 sem qualquer solenidade de despedida. Embora também adorado pelos passageiros como o 747, nunca foi viável economicamente e sempre esteve em desacordo com as questões ambientais, algo que os próprios fabricantes e operadores não escondem.

Ao longo de 54 anos de produção saíram da linha de montagem da Boeing 1.574 unidades, fazendo do 747 o segundo wide-body mais popular, atrás apenas do Boeing 777. O projeto inicial previa que ele tivesse dois andares completos – atributo que acabou copiado pelo A380 décadas depois –, mas dificuldades (da época) para a evacuação de passageiros em casos de emergências determinou a redução do segundo piso. Com isso, o jumbo chegou ao mercado com uma corcova superior na parte dianteira que virou um ícone do design e marca registrada do modelo, onde estão abrigados o cockpit e mais uma cabine de passageiros.

Outro achado dos projetistas, que garantiu volume de vendas e enorme sobrevida ao modelo, foi criar o 747 já considerando uma versão exclusiva para transporte de cargas intercontinentais. Por isso surgiu a ideia pioneira do segundo piso, com o cockpit na parte de cima e uma enorme porta no bico do avião para facilitar o carregamento dos porões. Desde a estreia, seis gerações foram produzidas (747-100, 747-200,747-SP, 747-300, 747-400 e 747-8).

Projetos especiais Em razão da sua qualidade e versatilidade, o Boeing 747 teve diversas utilizações além da aviação comercial.

Casa Branca voadora O nome correto dos dois Boeings 747 que servem à Presidência dos EUA é VC-25. Entretanto, o mundo aprendeu a chamá-los de Air Force One (Força Aérea Um), quando, na verdade, esse é apenas o código utilizado para designar e garantir plena segurança a qualquer aeronave da Força Aérea no momento em que estiver transportando o presidente norte-americano. Os dois jumbos que fazem parte da frota presidencial são uma espécie de Casa Branca voadora. Adaptados para fins militares e dotados de tecnologias que beiram a ficção científica, sempre voam acompanhados de perto por caças para sua proteção contra qualquer aproximação indevida. Blindados, são capazes de resistir a pulsos eletromagnéticos e explosões nucleares. Com autonomia para 13 mil km, dispõem de sistemas avançados de autodefesa e comunicação, podem ser reabastecidos em pleno voo e permanecer no ar durante dias. Baseados no 747-200, estão em operação desde 1990 e serão ser substituídos por modelos 747-8 devidamente adaptados.

Avião do Juízo Final Com capacidade para até 112 passageiros, o 747 Nightwatch está adaptado para, no caso de grandes emergências desencadeadas por catástrofes e guerras, abrigar o que no jargão militar é denominado Posto Aéreo de Comando Avançado. Numa situação que ninguém gostaria de testemunhar – principalmente um conflito nuclear –, o avião está preparado para que o presidente dos EUA e os principais comandantes militares do país sejam imediatamente embarcados e sigam desempenhando suas funções no ar. Os estoques de comida e água a bordo garantem autonomia para permanecer voando ininterruptamente até uma semana, já que pode receber reabastecimento de combustível em pleno voo. Possui blindagem térmica e resiste a pulsos eletromagnéticos e explosões nucleares. Seu sistema de comunicação via satélite garante que os ocupantes tenham conexão com os principais líderes mundiais – o conjunto de antenas é tão volumoso, que exigiu a instalação de uma secunda corcova superior na fuselagem. O governo dos EUA dispõe de quatro unidades do modelo.

Caçador de mísseis O 747 Airborne Laser YAL-1 carregava no nariz um canhão de laser projetado para interceptar mísseis balísticos em fase de aceleração, momento em que ainda é possível anular a ação do artefato. A arma do avião disparava um feixe de alta capacidade, capaz de derreter o míssil. Permaneceu em testes de 2002 a 2014, obteve pleno sucesso nas missões experimentais, mas seus altíssimos custos de operação e manutenção levaram ao cancelamento do projeto. Sua principal deficiência era gerada pela questão da autonomia de voo, obrigando-o a atuar sempre nas proximidades das linhas inimigas para desempenhar sua função, algo hoje realizado com total eficiência pelos drones. O avião foi desmontado em 2014.

Transporte aeroespacial São icônicas as imagens dos 747 Shuttle Carrier Aircraft da NASA, transportando em suportes instalados na parte superior da fuselagem os ônibus espaciais entre as bases de operações da agência. Para realizar suas missões, de 1977 a 2012, os dois jumbos tiveram os interiores completamente removidos e as traseiras modificadas para melhorar as condições de voo com a carga de enorme peso acima da fuselagem.

Observatório espacial Outro 747 da NASA foi batizado de SOFIA, adaptado como observatório espacial. Um dos aviões mais especiais do mundo, é uma das versões mais tecnológicas do quadrimotor da Boeing. Uma enorme porta lateral permite a exposição de um telescópio infravermelho com um espelho de 2,5 m de diâmetro. Dentre suas descobertas mais relevantes, estão a detecção de átomos de oxigênio na atmosfera de Marte e diversos dados sobre a atmosfera de Plutão, frutos do relevante trabalho científico desenvolvido em parceria com a DLR, agência espacial da Alemanha. Fabricado em 1977 como aeronave de passageiros, pertenceu às frotas da Pan Am e da United. Lançado em 1996, o projeto SOFIA-Stratosferic Observatory for Infrared Astronomy (Observatório Estratosférico para Astronomia Infravermelha) tinha como objetivo construir e operar um telescópio espacial aerotransportado e adquiriu o avião em 1997, dando início a um longo processo de adaptação para as operações científicas e cujo primeiro voo só ocorreu em 2010. Em 13 de dezembro de 2022 ele saiu de operação e voou para o Pima Air & Space Museum, em Tucson, Arizona, onde permanecerá aberto à visitação pública.

Supertanker Alguns 747 receberam esse nome depois que deixaram as operações originais de transporte e foram adaptados para combater incêndios florestais. Com capacidade para despejar de uma vez até 74 mil litros de água ou agentes retardantes de fogo sobre áreas em chamas, pode ser reabastecido com rapidez e voltar à operação em cerca de meia hora. A dispersão dos líquidos liberados de seus reservatórios pode se estender por 4,8 km de comprimento x 46 m de largura, uma área equivalente a 40 campos de futebol enfileirados.

Cargueiro especial A Boeing criou o 747 Dreamlifter, um projeto especial composto por quatro aeronaves modificadas para transportar (entre suas fábricas nos EUA) componentes de grande porte utilizados na produção do moderníssimo “irmão” 787 Dreamliner. O cargueiro peculiar é ainda maior que o Beluga, montado pela concorrente Airbus para o mesmo fim, deslocar peças gigantescas como asas e seções de fuselagem de outros aviões entre suas linhas de montagem. Além da reconhecida eficiência, o Boeing Dreamlifter e o Airbus Beluga têm outro ponto em comum que salta aos olhos: a esquisitice das formas.

Aviação executiva Embora seja um mercado fechadíssimo, onde quase nada é revelado a respeito dos projetos e seus proprietários, os maiores aviões executivos do mundo são 747 modificados. A versão mais utilizada para esse tipo de conversão foi o 747 SP – apelidado Baby Jumbo, criado por demanda da Pan Am e Iran Air, um pouco menor que o tradicional e com grande autonomia. Esses aviões adaptados seguem voando até hoje transportando reis, chefes de Estado e multimilionários, principalmente no Oriente Médio. Em 2012, o nível subiu ainda mais quando a família real do Catar encomendou seu “jatinho” utilizando como base o então novíssimo 747-8 (lançado em 2010). O projeto resultou no que é considerado o maior e mais luxuoso avião executivo já produzido, cujo interior parece um palácio das mil e uma noites e comporta 78 passageiros – a versão comercial pode transportar até 585 viajantes. Talvez porque nem os mais exagerados suportem tanto exagero, o mimo está à venda com pouco uso e preço a combinar.

Tragédia O maior acidente aéreo da história envolveu dois 747, um da Pan Am e outro da KLM, que se chocaram no solo no aeroporto da ilha de Tenerife, Espanha. A tragédia ocorreu em 27 de março de 1977 e tudo começou com um atentado à bomba em Las Palmas, capital de outra das Canárias, destino original dos dois aviões. Com isso, os jumbos e outras aeronaves foram desviados para a vizinha Tenerife, cujo aeroporto era bem menor e muito mais propenso a nevoeiros do mar. Depois de uma sucessão de erros e imprevistos que juntaram neblina em excesso e falhas de comunicação, o comandante holandês iniciou a decolagem – que não havia sido autorizada – sem enxergar o gigante norte-americano, que também aguardava autorização para levantar voo e estava  parado na parte final da pista porque todos os espaços disponíveis para estacionamento no aeródromo estavam ocupados pelos aviões desviados para lá. Com o choque e as explosões, 583 passageiros e tripulantes perderam a vida. Por milagre, 61 ocupantes do jumbo da Pan Am conseguiram saltar antes de tudo virar uma bola de fogo. A KLM assumiu a culpa pelo erro atribuído ao seu experiente comandante Jacob van Zanten e arcou com todas as indenizações..

Veja o último 747   https://www.youtube.com/watch?v=g63-relAbhA&t=48s

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