Por Heraldo Palmeira
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22 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Uma estrada e a lua branca

David Reed/Pixabay

Uma estrada e a lua branca

  • Hayton Rocha

Triste de quem não conserva nenhum vestígio da infância, pontuou certo dia o poeta Mário Quintana.

Entre oito e nove anos de idade, todo sábado eu ouvia os discos (em especial os de Luiz Gonzaga) que meu pai punha na radiola enquanto encerava nossa casa. Ficava imaginando os cheiros, as cores e os sons do Sertão onde comecei a me despertar pro mundo.

Tudo era simples. Quando dei por mim, tinha decorado Estrada de Canindé, no linguajar de meus avós maternos:

Ai, ai, que bom

Que bom, que bom que é

Uma estrada e uma caboca

Cum a gente andando a pé

Ai, ai, que bom

Que bom, que bom que é

Uma estrada e a lua branca

No sertão de Canindé

Artomove lá nem sabe se é home ou se é muié

Quem é rico anda em burrico

Quem é pobe anda a pé

Mas o pobe vê nas estrada

O orvaio beijando as flô

Vê de perto o galo campina

Que quando canta muda de cô

Vai moiando os pé no riacho

Que água fresca, nosso Sinhô!

Vai oiando coisa a grané

Coisas que, pra mode vê

O cristão tem que andá a pé

Um dia, quando crescesse, faria longas viagens de carro, parando aqui e ali para comer e beber, conhecer lugares e pessoas, ouvir e contar histórias, essas coisas.

Enganei-me. Fiz muitas viagens durante a minha jornada profissional, porém apressadas, mais preocupado com a hora da partida e da chegada do que com o caminho em si.

Hoje, não me animo a cair na estrada. Alguns sustos entre Alagoas, Pernambuco e Bahia, mexeram comigo. O medo de cochilar ao volante e acordar no purgatório desbotou a coragem e a paciência.

Passei a viajar menos, de carro. Depois que me aposentei e até antes da pandemia, me acostumei ao corre-corre e ao vozerio de aeroportos, ao barulho das turbinas, a ver o chão lá das nuvens.

Perdi o direito de ver o orvalho molhando as flores, ou o galo-de-campina mudando de cor, “coisas que, pra mode vê, o cristão tem que andá a pé”, como cantava Gonzagão.

Outro dia puxei conversa com meu querido amigo Carlos Bicca, o mais nordestino dos gaúchos, com quem compartilho caros momentos desde 1996, quando nos vimos (no plural, porque alcança Cristina e Magdala, minha mulher), pela primeira vez, no Recife.

Bicca me disse que nunca lhe agradou estar entre quatro paredes, mas a necessidade falou mais alto, pelo menos até que pudesse trocá-la por algo mais precioso: o tempo, de preferência ao ar livre. Tanto que se transformou em maratonista dos bons, depois dos 50 anos.

Contou que gosta de estrada desde criança e que nunca escondeu isso nem dele mesmo. Para desassossego de quem se senta no banco do carona, ele garante que “o melhor caminho entre dois lugares é sempre o que tem mais serras, curvas e estradinhas…”

É mais um fã de Niemeyer, para quem “se a reta é o caminho mais curto entre dois pontos, a curva é o que faz o concreto buscar o infinito”.

Depois que se aposentaram, Bicca e Cristina caíram na estrada numa Mercedes Sprinter (com “casa” montada sobre os chassis), levando Maya, cadela de pelos dourados, da raça labrador, no auge de seus 10 anos.

Nos últimos três anos e meio, a experiência de “viver sobre rodas, ao invés de ancorados nos alicerces de um endereço fixo”, forjou dois minimalistas convictos, nômades e felizes. Aprenderam a desapegar de coisas, a compartilhar quase 100% da mesma rotina, a suportar estoicamente a saudade dos netos, a compreender que “todos os dias são especiais e tem valido a pena cada quilômetro de estrada percorrido juntos”.

E como o viajante da Estrada de Canindé, “oiando coisas a grané”, Bicca virou exímio fotógrafo. Vive provando aos amigos, nas redes sociais, que nem arame farpado retira a beleza de uma cerca. “Fotografar me poupa de explicar com palavras o que vejo”. Mas não fotografa. Faz autorretrato – só ele enxerga daquele jeito.

Tocado por uma inveja benigna, eu quis saber qual teria sido o lugar mais impressionante que conheceram. O casal não titubeou: Paso San Francisco, na Ruta de los Seismiles. “Cruzamos a Cordilheira dos Andes a quase 5.000 metros de altura… É uma estrada mística para motociclistas, pouquíssimo utilizada por veículos de maior porte como um motorhome”, disse Bicca.

Agora quer explorar um pouco mais a América do Sul. Conhecer também alguns rincões escondidos do Velho Continente, a bordo de uma autocaravana que adquiriu em Portugal, em sociedade com outros casais que conheceram em Brasília.

Como ainda me sinto “criança” – apesar das dores e dos desencantos da hora –, me pego aqui pensando em viajar um pouco mais. Afinal, coragem é a cor que cada um escolhe para colorir os dias que restam da grande viagem.

Quem sabe um dia, quando crescer.

*Hayton Rocha, escritor e blogueiro

Ouça   Estrada de Canindé https://open.spotify.com/track/4Rz6iC0mhKcIAMh7MvcJeh?si=401654c713054cbd

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