NASA/Divulgação
Mares profundos
- Heraldo Palmeira
Desde sempre o homem foi arrebatado pela curiosidade. Quanto mais difícil o objetivo, mais o espírito de aventura se mostra para cumprir a missão de revelar e estudar o desconhecido. Embora os oceanos guardem 97% de toda água existente no planeta e cubram mais de 70% da sua superfície, cerca de 80% deles permanecem inexplorados. Tanto que virou chavão afirmar que a humanidade conhece muito mais sobre as superfícies da Lua e de Marte do que a respeito do leito marinho da Terra.
Pode parecer surpreendente que a NASA, a agência espacial norte-americana protagonista de tantas conquistas científicas entre as estrelas, esteja explorando as profundezas oceânicas da Terra. Na verdade, as expedições buscam respostas para mistérios do espaço e testam experiências e equipamentos para serem utilizados em outros mundos. Afinal, as profundezas oceânicas abissais são bastante similares a outros locais extremos do espaço.
É o caso de Europa, uma das maiores luas de Júpiter. Abaixo da superfície de gelo há um oceano de água salgada que, supõem os cientistas, contém duas vezes mais água do que todos os oceanos da Terra juntos. Além disso, seu ponto mais profundo poderia chegar a 150 km.
O minissubmarino Orpheus da NASA, projetado para operar nas profundezas abissais terrestres, foi parcialmente construído com resíduos do material utilizado na produção do Deedsea Challenger, de James Cameron – espuma sintática, flutuante composto por esferas microscópicas de vidro misturadas em resina epóxi. Afinal, o veículo terá de enfrentar variações de temperatura na água que vão do ponto de quase congelamento até 370ºC nos respiradouros hidrotérmicos que existem em alguns locais do leito oceânico.
A região das profundezas abissais da Terra é conhecida como zona hadal – o nome vem de Hades, deus grego do Mundo Inferior, lugar hostil que faz jus ao nome. Orfeu foi um dos poucos heróis gregos que esteve no submundo e conseguiu retornar.
A área hadal corresponde ao tamanho da Austrália e poucos veículos científicos conseguem resistir às hostilidades desse ambiente. Mergulhar tão fundo no mundo azul é uma missão repleta de maravilhas e perigos, como o risco constante de implosões em razão da pressão atmosférica descomunal, cerca de mil vezes superior à da superfície.
Um dos lugares mais estranhos e desconhecidos do planeta está distante de tudo, submerso nas profundezas do oceano Pacífico. Ele foi descoberto na Expedição Challenger, programa científico inglês que promoveu uma volta exploratória ao mundo percorrendo 127.000 km entre 1872 e 1876. A influência da missão foi tamanha que deu caráter definitivo ao estudo do mar e lançou as bases para a instituição da oceanografia. O nome da expedição foi homenagem à corveta Challenger, lançada ao mar em 1858 e que realizou a grande viagem.
Estava descoberta a fossa das Marianas, o ponto mais profundo de todos os oceanos da Terra. Localizada a leste das ilhas Marianas, arquipélago no noroeste do oceano Pacífico que tem relação administrativa com os EUA. As 15 ilhas foram descobertas em 1521 pelo navegador português Fernão de Magalhães e encontram-se equidistantes (cerca de 2 mil km) da Nova Guiné, Filipinas e Japão. Na parte sul está Guam, a mais conhecida de todas.
A fossa é um vale submerso em forma de arco, espécie de cicatriz gigante estendida por 2.550 km no fundo do oceano. Seu ponto mais abissal, conhecido como Challenger Deep, está a apavorantes 11,2 km (estimados) de profundidade e distante cerca de 360 km da ilha de Guam. Ou seja, um buraco monumental onde caberia sem qualquer esforço, e com folga, o monte Everest, a montanha mais alta da superfície terrestre. E ainda sobrariam 2.356 m livres abaixo no nível da água.
Em 23 de janeiro de 1960, quando toda a tecnologia à disposição de Cameron (em sua expedição de 2012) ainda era ficção científica, o tenente da Marinha norte-americana Don Walsh e o engenheiro suíço Jacques Piccard chegaram ao fundo da fossa. Em razão da precariedade da época, a operação durou apenas 20 minutos e o batiscafo (minissubmarino) Trieste da Marinha dos EUA, além de janelas minúsculas para suportar a pressão, levantou tanto limo do fundo do mar que inviabilizou qualquer registro de imagens daquele feito histórico. Assim, a primeira visita de humanos ficou registrada apenas na memória e nos relatos dos dois exploradores.
Em 1985, o oceanógrafo Robert Ballard e o pesquisador Dedley Foster, ambos americanos, navegaram no minissubmarino Alvin pela fossa, mas ficaram limitados a uma profundidade menor e bem distante do leito, pois quem chegou até ele foi o ROV, um veículo de operação remota. A grande descoberta histórica dessa expedição foi comprovar que, ao contrário do que estava consagrado, a partir dos 4.000 m de profundidade existia vida, sim. Até ali, as pesquisas eram feitas de forma empírica, utilizando redes de alta profundidade.
As imagens captadas pelos dois pesquisadores provaram a existência de vida exuberante naquelas profundezas. Um incalculável número de espécies altamente desenvolvidas e adaptadas ao ambiente parece ter suporte de sobrevivência nos componentes químicos da água e no calor liberado pelos vulcões operantes no interior da Terra, que chega ao leito oceânico por meio de delicadas “chaminés” naturais encontradas na fossa.
As análises das amostras coletadas pelo ROV permitiram aos cientistas confirmar que a vida marinha é milhões de anos anterior à da superfície terrestre. Estava aberto um novo caminho a respeito da evolução da vida no planeta.
Em 25 de março de 2012 foi a vez do cineasta James Cameron chegar ao leito da fossa. O projeto realizado em parceria com o National Geographic levou 7 anos em desenvolvimento, cuja grande estrela foi o minissubmarino Deepsea Challenge, com 8 m de comprimento e 1,09 m de largura. Sua cápsula esférica de comando era tão reduzida que obrigou o explorador a viajar sozinho e quase sem espaço para qualquer movimento do corpo.
Cameron se preparou durante longo período para a expedição claustrofóbica, praticando longas corridas, mergulho e ioga, de modo a garantir resistência e flexibilidade ao próprio corpo. Assim que chegou ao fundo, numa profundidade de 10.898 m, ele postou no Twitter: “Acabei de chegar ao ponto mais profundo do oceano. Chegar ao fundo nunca foi tão bom. Mal posso esperar para dividir com vocês o que estou vendo”. Algumas horas depois de retornar à superfície ele disse que a paisagem era lunar, deserta. “Tive a impressão de ir a outro planeta e voltar em apenas um dia”, completou.
Com uma quantidade impressionante de alta tecnologia embarcada, boa parte inédita e desenvolvida para a missão, o funcionamento do submersível foi garantido por quase 200 sistemas eletrônicos e mais de 1.500 placas no circuito eletrônico. Suas 4 câmeras externas tinham um décimo do tamanho das que existiam até ali. Um sistema de condensação drenava o suor e o vapor d’água gerado pela respiração de Cameron para um saco plástico. Assim, ele poderia ter “água potável” para beber em caso de emergência.
Estava prevista uma permanência de 6 horas no fundo do oceano, mas um problema no sistema hidráulico do batiscafo reduziu o tempo para 2 horas e meia. Tempo suficiente para que o minissubmarino encolhesse 8 cm (dos seus 8 metros de comprimento) em razão da imensa pressão exercida pela água naquelas profundezas. Durante a viagem o cineasta recolheu espécimes e diversas amostras para estudos científicos. Filmou toda a aventura em 3D e as imagens captadas foram exibidas no documentário Deepsea Challenge 3D, lançado em 2014.
Em maio de 2019 Victor Vescovo, ex-oficial da Marinha dos EUA, também grande explorador, esteve na fossa das Marianas ao lado do biólogo marinho escocês Alan Jamieson. A viagem foi realizada a bordo do DSV Limiting Factor, considerado o minissubmarino de águas profundas mais avançado já construído. Dotado de um casco de titânio com espessura de 90 mm, é capaz de repetir muitas vezes esses mergulhos extremos. O veículo pesa 12 ton, está preparado para suportar a pressão esmagadora das profundezas abissais, pode operar no escuro e em temperaturas congelantes. Quando tocou o leito oceânico do Pacífico estava a 10.925 m da superfície e estabeleceu o novo recorde de profundidade de todas as explorações já realizadas.
Foram 4 horas de permanência na fossa, que permitiram a coleta de diversas amostras (inclusive com indícios de radioatividade) para estudos científicos. Algo ainda mais impressionante foi constatado pelos pesquisadores: nem mesmo aquela profundidade imensa está a salvo da poluição causada pelo homem, pois encontraram uma sacola plástica e várias embalagens de doce. Além do lixo humano, os aventureiros também encontraram novas espécies de crustáceos semelhantes a camarões e testemunharam a existência de peixes em profundidades antes tidas como inabitadas.
Na verdade, a atividade exploratória de Vescovo é muito abrangente. Sua expedição à fossa das Marianas fez parte do projeto Five Deeps, realizado entre 2018 e 2019, um conjunto de cinco expedições marinhas aos pontos mais profundos dos cinco oceanos – e ainda incluiu uma visita aos destroços do Titanic. O roteiro é algo espetacular e mostra as profundidades alcançadas:
- Fossa de Porto Rico, oceano Atlântico: 8.374,2 metros
- Fossa de Sandwich do Sul, oceano Antártico (*): 7.434,8 metros
- Fossa de Java, oceano Índico: 7.192 metros
- Challenger Deep, oceano Pacífico (ponto mais profundo do planeta): 10.925 metros
- Molloy Deep, oceano Ártico: 5.551 metros (a primeira vez que o homem esteve no local)
(*) Oceano Antártico é apenas uma nomenclatura figurativa para o prolongamento meridional dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico.
Até aqui, apenas 7 homens – Walsh, Piccard, Ballard, Foster, Cameron, Vescovo e Jamieson – tiveram o privilégio de chegar a pontos diferentes do local mais profundo das entranhas da Terra. Além do espetacular senso de aventura, suas expedições buscaram coletar amostras diversas de um dos lugares mais misteriosos do planeta, talvez o ápice de todos os segredos do mar.
Além de terem descoberto cerca de 40 novas espécies, os cientistas envolvidos com essas explorações armazenaram enorme catálogo de amostras biológicas e aquáticas, manancial de pesquisas que abriram novas fronteiras de grande interesse para a humanidade.
O espaço sideral tem sido o destino mais impressionante e frequente da nossa curiosidade. Afinal, já decolaram para lá mais de 500 viajantes, 12 deles alcançando a glória de andar na superfície da Lua. Ou seja, já fomos muito mais longe na direção das estrelas do que visitando o interior dos oceanos do planeta – até hoje, o homem conhece razoavelmente apenas 20% desse universo extraordinário e submerso.
Talvez os mergulhos desses 7 pioneiros das profundezas abissais seja uma espécie de primeiro passo para que a humanidade se volte ainda mais para compreender o mar, sua maior grandeza natural e que desperta tantas paixões quanto voar pelas estrelas. Afinal, não deve ser à toa que existam tantas criaturas diferentes dominando suas águas, ora em paz ora em grandes lutas para defender sobrevivência e territórios.
Quem sabe, astronautas e mergulhadores possam indicar os caminhos de equilíbrio e sustentabilidade que a humanidade insiste em ignorar. Infelizmente, ainda prevalece o espírito dominante da exploração econômica sem limites, como se nossa inteligência incapaz de medir consequências e reações fosse páreo para a sabedoria da natureza. Alguns exemplos falam por si:
– O Japão e diversos países da Europa liderados pela Inglaterra propuseram despejar resíduos nucleares no mar, com especial interesse pelas grandes profundezas. A nossa ignorância abissal acreditava que a subdução das placas tectônicas que ocorre no local pudesse empurrar o lixo nuclear para o manto da Terra. Felizmente, uma rígida legislação internacional proíbe despejo radioativo nos oceanos.
– A missão desenvolvida em parceria pela NASA e o multibilionário Elon Musk pretende explorar a estrutura do asteroide 16 Psyche, que orbita o Sol entre Marte e Júpiter e é considerado um tesouro inestimável pela quantidade de minérios nobres que contém. Apenas o ouro que estaria lá, e poderia ser trazido para a Terra, seria suficiente para tornar bilionários todos os seres humanos. Entretanto, ao mesmo tempo levaria a economia mundial ao colapso. Algo como ficarmos em desgraça absoluta podres de ricos.
Melhor pensar no novo encantamento científico do cineasta James Cameron: o desenvolvimento de aparatos tecnológicos para montar a uma espécie de monitoramento subaquático dos oceanos, algo semelhante ao que fazem hoje os satélites meteorológicos.
É muito mais fácil acreditar na maioria desses exploradores náuticos, que se declaram inspirados pelo escritor Júlio Verne e suas 20.000 Léguas Submarinas, onde o Capitão Nemo enfrentava o desconhecido pilotando o submarino Nautilus. Terminaram criando suas próprias aventuras num nível que nem mesmo Verne poderia arriscar.
Exploradores profissionais
Robert Ballard transformou a caça a tesouros científicos e culturais numa espécie de obsessão de vida inteira. Parece claro que sua trajetória é apenas o desfecho natural da história do menino que, ao passar a infância no sul da Califórnia procurando tesouros na areia das praias e pescando, revelou aos pais que queria ser o Capitão Nemo quando crescesse.
Cumprindo seu próprio roteiro navegando léguas submarinas, tornou-se famoso ao descobrir os destroços naufragados do transatlântico RMS Titanic (1985), do encouraçado Bismarck (1989) e do porta-aviões USS Yorktown (1998).
Além de mostrar que havia vida a partir de 4.000 m de profundidade – no mergulho na fossa das Marianas –, Ballard deu outra enorme contribuição à ciência ao descobrir fontes de águas termais no leito oceânico. Era 1977, ele estava numa expedição ao norte das ilhas Galápagos e percebeu volumes inesperados de água quente nas amostras recolhidas. Voltou ao local em 1979 com novos equipamentos capazes de descer até 6.000 m e descobriu fontes hidrotermais no leito marinho, cujas fendas liberavam água escaldante rica em minerais.
Victor Vescovo sempre foi apaixonado pelo mar e dotado de grande espírito de aventura. Tanto que realizou também o projeto Sete Cumes, conhecido como o Grand Slam dos Exploradores. Consiste em escalar as sete montanhas mais altas do mundo – espalhadas por todos os continentes – e completar o circuito esquiando pelo menos 100 km para chegar ao polo norte e ao polo sul. Os números das alturas alcançadas são impressionantes:
Monte Everest (Ásia, 8.844 m), Aconcágua (América do Sul, 6.962 m), Denali (América do Norte, 6.194 m), Kilimanjaro (África, 5.895 m), Elbrus (Europa, 5.642 m), Vinson (Antártida, 4.892 m) e Kosciuszko (Austrália, 2.228 m).
Embora não pretenda abandonar suas pesquisas marinhas, Vescovo está cada vez mais interessado em explorar o espaço e já começou a buscar parceiros para novas aventuras bem acima do mundo submerso que conhece tão bem.