Por Heraldo Palmeira
Los Angeles
Nova York
São Paulo
Lisboa
Londres
Fase da Lua
.
.
22 de novembro de 2024

Mundial de Clubes virou miragem

Divulgação/FIFA

Mundial de Clubes virou miragem

  • Sylvio Maestrelli

Confesso que não devo ser um torcedor comum. Aquele fanático, que só enxerga o seu time. Não. Quando assisto a competições internacionais, pode até parecer uma heresia futebolística, mas torço quase secretamente para os representantes brasileiros. Evidentemente que minha paixão pelo Corinthians é similar à que nutro pela Seleção Canarinho – sem qualquer pachequismo, que fique bem claro –, mas fico feliz também (sem exageros) quando um rival do Timão consegue alguma proeza que repercuta em todo o mundo. Até mesmo quando nosso arquirrival Palmeiras, em duas oportunidades, decidiu Mundiais de Clubes (contra Manchester United e Chelsea) torci, ainda que só um pouquinho, para o “Porco”, embora não tivesse me sentido incomodado com as vitórias britânicas. Afinal, eles conquistariam um ainda inédito Mundial, enquanto nós temos dois. Também não posso negar que o bordão “O Palmeiras não tem mundial” é bom de ouvir.

Mas a verdade é que o sonho do torcedor brasileiro de ver o seu time conquistar o mundo está cada vez mais distante. Foram-se os tempos em que o maior time da história do futebol, o Santos de Coutinho, Pelé e Pepe, derrotava os também fortíssimos Benfica de Eusébio e Coluna ou o Milan de Trapattoni e Rivera. Mais tarde, o exuberante Flamengo de Zico, Júnior, Leandro e companhia trucidava o forte Liverpool de Dalglish. Ou que o grande e eficiente São Paulo de Telê Santana batia os gigantes Barcelona e Milan. Ou o aguerrido Grêmio de Valdir Espinosa faturava o título com os bad boys Paulo César Caju, Mário Sérgio e Renato Gaúcho atuando juntos! Tempos em que as excelentes equipes sul-americanas (brasileiras, argentinas e uruguaias) jogavam de igual para igual com esquadrões europeus em decisões de tirar o fôlego. E mesmo algumas brilhantes equipes que tivemos – como as academias do Palmeiras, o Internacional de Falcão, o Cruzeiro de Piazza, Tostão e Dirceu Lopes, o Botafogo de tantos craques maravilhosos – não chegaram ao topo.

A partir dos anos 2000, com o crescimento do futebol nos outros continentes, a FIFA optou por transformar a Copa Intercontinental (onde os campeões da Champions europeia e da Libertadores sul-americana se enfrentavam) em um campeonato mundial, com a presença dos campeões de todos os continentes, além de um time da cidade-sede. Só que, para nossa tristeza, de 2001 para cá o domínio dos clubes europeus aumentou de forma considerável. Os números são absolutos.

Nas décadas de 1960 e 1970, os times da América do Sul conquistaram 10 títulos, contra 8 dos europeus. Entre 1980 e 2004, essa vantagem se inverteu em 13×12 para os esquadrões da Europa. A partir de 2005, mesmo incluindo-se na conta o Mundial-teste de 2001, reconhecido pela FIFA e vencido pelo Corinthians em uma decisão por pênaltis contra o Vasco, a supremacia das equipes do Velho Continente tornou-se gritante: até 2021 temos 14 títulos europeus contra apenas 4 dos sul-americanos! E em 3 dessas conquistas, todas de times brasileiros (São Paulo x Liverpool em 2005, Internacional x Barcelona em 2006 e Corinthians x Chelsea em 2012), as partidas terminaram com placar de 1×0, com nossos goleiros eleitos os melhores jogadores em campo. Os resultados foram bastante injustos, convenhamos. E já podemos contar o prejuízo no torneio de 2022, ora disputado no Marrocos, onde não teremos nenhum time brasileiro na final.

Só que a decadência das equipes do nosso continente – e particularmente das brasileiras, que vêm dominando a Libertadores nos últimos anos, fruto de seu maior poderio econômico – é tão evidente que, nas últimas 8 oportunidades em que times do Brasil foram ao Mundial de Clubes, na metade delas sequer chegaram à final. Caímos para africanos (Internacional em 2010, Atlético Mineiro em 2013), centro-americanos (Palmeiras em 2020) e asiáticos (Flamengo, em 2022). Autênticos vexames, embora identifiquemos um gradativo crescimento no chamado Terceiro Mundo futebolístico. E na outra metade, quando perdemos a final, apenas o Flamengo de Jorge Jesus (2019) e o Palmeiras de Abel Ferreira (2021) deram trabalho aos ganhadores, respectivamente, Liverpool e Chelsea, que venceram na prorrogação. O Santos em 2010 foi impiedosamente goleado pelo Barcelona por 4×0 e o Grêmio em 2017 jogou acovardado e na retranca contra o Real Madrid, daí a derrota pelo placar mínimo.

Pior ainda é que o filme se repete. As comédias de erros apresentam atores diversos, mas as causas dos fracassos têm muito em comum. Arrogância de se considerarem favoritos, menosprezo aos oponentes, entradas desleais nos adversários, falta de garra de alguns jogadores – que parecem estar jogando um mero amistoso –, lambanças dos técnicos (alguns superestimados), ausência de um preparo físico adequado, e segue a lista.

A bola da vez foi o Flamengo que, incensado por uma mídia de pachecos – que têm a insensatez de comprara o time atual com a máquina dos anos 1980 liderada por Zico – se apresentou de forma medíocre, blasé, sem criatividade, com erros grotescos em fundamentos (incrível quantidade de passes errados). Um futebol abaixo da crítica, merecendo a derrota para os sauditas do Al Hilal. É bom não perder de vista que o placar ficou em 3×2 por conta das inúmeras chances perdidas pelo time árabe – que tem Michael e Cuellar, ambos ex-Mengão, entre seus atletas.

Talvez os mais apaixonados torcedores enxerguem que não foi o Al Hilal que ganhou, apenas o Flamengo não teve interesse em ganhar. Não é de todo fruto da paixão, a televisão mostrou um bocado disso em campo.

O rubro-negro carioca perdeu, assim, uma chance de ouro de chegar à final e aprontar sobre o outro provável finalista, o Real Madrid, que vem desfalcado para a competição porque alguns dos seus craques se recuperam de lesões. Mas para nós, que acompanhamos o dia a dia do futebol brasileiro, esse novo fracasso não é novidade, parece ser uma crônica de morte anunciada. Afinal, os últimos acontecimentos na Gávea nos soavam como amadores, em um mundo cada vez mais profissionalizado. A cronologia de alguns fatos, desde o momento em que o Flamengo conquistou a Libertadores 2022 – passaporte para a vaga direta na semifinal do Mundial no Marrocos – é cristalina.

Na segunda quinzena de outubro/2022, o Mais Querido conquistou a Copa do Brasil (sobre o Corinthians de seu atual técnico, Vítor Pereira) e a Libertadores (sobre o Athletico Paranaense, de Felipão). Seu treinador era Dorival Júnior, muito querido pelo elenco, que ficou surpreso e chocado com a não renovação de seu vínculo com o clube e saiu no fim do ano. Nem os jogadores entenderam a decisão da diretoria e alguns reclamaram indiretamente.

Além da saída do treinador, o Flamengo nada fez para adiar, pelo menos até o fim do Mundial, a aposentadoria do experiente Diego Ribas, veterano meio-campista que muitas vezes, mesmo entrando em um pedaço do segundo tempo, usava de sua rodagem para amarrar algumas partidas. Sem contar que mesmo durante a era Dorival Júnior, foram vendidos o promissor atacante Lázaro e o experiente e regular Willian Arão. E foi contratado, a peso de ouro, o veterano Arturo Vidal, da seleção chilena, já decadente, problemático, sem mercado na Europa e que chegou ao Rio como quem vem desfilar na Sapucaí – futebol não vive de festa. A esta altura, muita gente está doida que o Colo-Colo ajude a resolver essa encrenca levando o jogador para o Chile.

Várias outras contratações de valores exorbitantes para a realidade de nosso futebol, foram feitas sucessivamente. A do ponta-esquerda Éverton Cebolinha, que fracassara no Benfica. A de Gérson, que nunca teve grande desempenho no Olympique de Marselha, recomprado numa transação no mínimo estranha. A do chileno Erick Pulgar, que além de defender apenas equipes medianas no Velho Continente (Fiorentina e Galatasaray), tem problemas com a Justiça chilena. E a do lateral uruguaio Varela, vindo da Rússia. Deles todos, apenas Gérson ganhou titularidade. Por outro lado, vendeu para a Grécia o lateral direito Rodinei, no auge de sua forma física e um dos pilares das conquistas de 2022. Vá entender!

Um capítulo especial é o do volante de contenção João Gomes, uma das maiores revelações da base nos últimos anos e já titular absoluto, inclusive inscrito entre os suplentes da lista da Copa do Mundo do Catar, vendido ao Wolverhampton sem restar no elenco nenhum reserva com suas características (proteção à zaga). Como condição da venda, não poderia constar que ele só apresentaria ao clube inglês após o Mundial de Clubes? Afinal, ficou inegável que sua saída fez o sistema defensivo do time desabar, revelando em campo um Thiago Maia irreconhecível. Para piorar, alguns meninos da base que poderiam tê-lo substituído (Vitor Hugo e Daniel Cabral) estão lesionados.

Outra situação cheia de controvérsias foi a contratação do técnico português Vítor Pereira para o lugar de Dorival Júnior. Disciplinador, egocêntrico e enérgico, talvez não seja exatamente o tipo de treinador que as estrelas flamenguistas curtam. Ainda que tenha marcado sua passagem pelo Corinthians como um bom estrategista, encontrou oposição de várias cobras criadas no vestiário alvinegro, com atritos públicos com Roger Guedes, Renato Augusto e Fágner, que discordavam de sua maneira de gerenciar e escalar o time, trocando constantemente os jogadores de posição. É bom ter em mente que Dorival sempre ouvia o elenco e a experiência com Paulo Sousa ainda está bem viva na memória.

Também é importante se perguntar se jogador de futebol, ainda mais os regiamente pagos como os do Flamengo, têm de ficar nessa posição de gostar de treinador para poder render em campo algo que faça jus ao enorme dinheiro que estão ganhando. Afinal, paira no ar a sensação de que o rubro-negro está parecendo um grupo de milionários que se junta de vez em quando para jogar uma pelada. A folga para as festas de fim de ano e as férias de 60 dias ajudam a reforçar esse clima que toca a linha da falta de profissionalismo de muita gente do grupo.

Outra coisa importante, a diretoria do clube precisa se posicionar, deixar claro se realmente quer bancar um projeto de reforma total do seu futebol, como dizia ser o objetivo como Paulo Sousa, e bancar publicamente o trabalho do técnico que está contratado. Afinal, só para estabelecer um termo comparativo para essa bagunça administrativa, desde que Abel Ferreira chegou ao Palmeiras (final de 2020), o Flamengo já teve 6 técnicos.

O ambiente interno pacificado por Dorival parece novamente deteriorado. A derrota para o Palmeiras na Supercopa (4×3) mostrou uma impressionante fragilidade defensiva para quem teve pré-temporada. A tensão foi minimizada porque haveria o Mundial e os torcedores consideravam boas as perspectivas, a ponto de fazerem uma belíssima despedida aos atletas antes do voo ao Marrocos. Porém, com a derrota e a péssima apresentação, as consequências agora são imprevisíveis.

Muito mais do que a derrota em si, o que doeu no coração dos flamenguistas foi a apatia do time, a bagunça tática. Nem haviam transcorrido 5 minutos de jogo e os árabes já estavam em vantagem no placar, depois de um pênalti bisonho, típico de pelada (Santos e Matheuzinho se confundindo numa jogada besta em que o goleiro poderia ter saído e catado a bola – muito provavelmente sofreria falta do atacante adversário). O rubro-negro empatou com um golaço de Pedro, mas outro pênalti ridículo, infantil e desnecessário no fim do primeiro tempo colocou novamente o Al Hilal em vantagem no marcador. Dessa vez, Gérson se superou: além de cometer falta dentro da área, pisando o calcanhar do atacante adversário, foi expulso por já ter cartão amarelo (ironicamente, recebido por simulação num pênalti que tentou cavar), desfalcando o time para o segundo tempo e decretando o desmantelo emocional do elenco.

Com um jogador a menos em campo, Vítor Pereira sacou os únicos articuladores do time que poderiam municiar o ataque, De Arrascaeta e Éverton Ribeiro. Os árabes dominaram o restante do jogo, fizeram o terceiro gol (David Luiz deu as costas para o chute) e só não golearam o campeão sul-americano por incompetência e afobação de seus atacantes, que abusaram do direito de perder chances. Muitas delas criadas por passes errados dos próprios flamenguistas – os volantes Thiago Maia, Pulgar e Vidal se “destacaram” nesse quesito! Faz tempo que a defesa do Flamengo não e lá essas coisas. Com o fogo amigo daqueles volantes, então… A saída mais óbvia foi tentar culpar a arbitragem, algo que se desmonta pelo que realmente aconteceu. Talvez seja indispensável que o técnico anote naquele caderninho que costuma usar durante os jogos um alerta para os jogadores: os árbitros do resto do mundo não costumam perder tempo com a malandragem sul-americana, muitos menos ser envolvidos por catimba e reclamações. Por isso, as regras são cumpridas à risca e os cartões vão aparecendo sem economia.

Mesmo usufruindo ao lado do Palmeiras a condição de maior destaque brasileiro da atualidade, o Flamengo infelizmente escancara a realidade do nosso futebol. Enquanto boa parte da torcida acredita que o rubro-negro está “em outro patamar, parece inadiável colocar a casa em ordem e modificar a aparência de “colônia de férias” para jogadores que não deram certo na Europa voltarem ganhando milhões.

Além de um calendário insano, o futebol brasileiro está sufocado por diversas práticas deletérias. Dirigentes sem qualquer profissionalismo. Ponte para futebolistas de outros centros da América do Sul seguirem viagem até times de segunda linha no Velho Continente. Treinadores desatualizados. “Pé de obra” mal formada nas categorias de base, com especial destaque para parte psicológica dos atletas. Endeusamento de falsos craques pela mídia. É fato que naqueles campeonatos de turnos corridos das principais ligas europeias nossos times não teriam a menor chance de protagonismo.

A FIFA ainda não oficializou o novo modelo a ser implantado para o Mundial de Clubes. Algumas fórmulas estão em estudo para definir periodicidade e quantidade de participantes. Entretanto, algo parece certo: pelo andar da carruagem, vai ficar cada vez mais difícil uma equipe sul-americana conquistar o torneio. Mais que isso, elas estão sendo alcançadas pelos ricos e organizados times do Oriente Médio e Ásia. E esse declínio se acentua cada vez mais, já que hoje nossos destaques das categorias Sub-17 e Sub-20 já vão direto para a Europa sem sequer passar por nossas equipes profissionais adultas.

É uma sorte grande na vida desses meninos e das suas famílias porque, além de conquistarem muito cedo a independência financeira, terão a chance de receber uma formação pessoal e profissional impensável por aqui – a evolução de Vinícius Júnior é um exemplo indiscutível.

Apesar de esses meninos desfalcarem nosso futebol de futuros talentos, paradoxalmente pode trazer vantagens para a Seleção Brasileira, já que estarão nivelados por cima, pelo futebol europeu. Claro, desde que a CBF pare de insistir com vexames como Tite no comando do escrete.

©