Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

USA for Belafonte

Harry Belafonte e Sidney Poitier/Reprodução/Internet

USA for Belafonte

  • Heraldo Palmeira

Harry Belafonte foi um dos organizadores do USA for Africa (United Support of Artists for Africa) ao lado de Michael Jackson, Lionel Richie e Kenny Rogers. O ponto alto do projeto humanitário foi a gravação da música We Are the World (1985), com a participação de 45 estrelas da música sob o comando do produtor Quincy Jones, e cuja renda foi totalmente destinada para combater a fome e o racismo no continente africano.

No ambiente festivo da gravação os artistas presentes no estúdio resolveram realizar uma justíssima homenagem a Belafonte. Num espírito de diversão pura e grande carinho para o mestre improvisaram The Banana Boat Song (Day-O), uma tradicional canção de raízes jamaicanas lançada mundialmente com enorme sucesso pelo cantor na década 1950. É um momento tão especial que até o sempre sisudo Bob Dylan sorri. E Belafonte, na sua tradicional elegância, se mantém na última fileira sem qualquer ansiedade pelos holofotes.

Consta que a música teve origem provável na virada do século 20 e era cantada no formato de chamada e resposta pelos estivadores que carregavam os navios com bananas na Jamaica. Depois de trabalhar a noite inteira, eram obrigados a esperar os capatazes para fazer a contagem da carga no início da manhã, algo retratado na letra. Quanto foi lançada nos EUA, a canção recebeu nova “identidade” tendo a autoria atribuída a Harry Belafonte, Irving Burgie (Lord Burgess) e William Attaway.

O artista nasceu em Nova York (EUA) e ganhou fama mundial como cantor, músico, ator, ativista político, pacifista e defensor de causas sociais, foi nomeado Embaixador da Boa Vontade do UNICEF em 1987. Ao longo da carreira ganhou diversos prêmios – Emmy, Grammy, discos de ouro e um Oscar especial pelo conjunto de sua carreira e contribuição a trabalhos humanitários.

Belafonte, filho de jamaicanos, conhecia bem essa realidade dos seus ancestrais: “A maior parte da minha família no Caribe, na Jamaica, trabalhava nas plantações de bananas e cana-de-açúcar em todas as safras. Esse era o nosso sustento e quando criança todo mundo cantava Banana Boat. Cantar era uma grande parte da cultura. Ajudava no trabalho debaixo do sol do dia todo”, disse.

História Harold George Belafonte Jr. nasceu no bairro do Harlem, em Nova York (EUA) em 1º de março de 1927. Viveu sua primeira infância numa casa muito pobre, o pai cozinheiro em navios mercantes e restaurantes, a mãe costureira e faxineira. O avô materno era um aventureiro escocês que chegou ao país insular para trabalhar no garimpo.

Quando o pai deixou a família e a dificuldade financeira agravou, o menino foi enviado para morar com os avós na Jamaica. Na temporada caribenha pôde testemunhar a opressão das autoridades inglesas sobre os negros, algo que marcaria sua vida para sempre e daria curso à sua militância política e humanitária.

Voltou aos EUA (1940) e conheceu Sidney Poitier, seu grande amigo e parceiro profissional de vida inteira. Depois do serviço militar na Marinha (1944), começou a trabalhar como assistente de zelador em um prédio residencial, onde um dos moradores lhe deu de presente dois ingressos para uma apresentação do grupo American Negro Theatre (AMT) protagonizada pela atriz Ruby Dee. Fascinado com o espetáculo, passou a trabalhar como ajudante de palco da companhia já pensando em ser ator. Afinal, o grupo oferecia aulas de interpretação para jovens negros carentes e sua estreia nos palcos ocorreu em 1946. Também membro do grupo, Poitier era seu substituto nas ocasiões em que não podia atuar.

Pouco depois, começou a cantar em nightclubs como forma de pagar novas aulas de teatro. Refletindo aqueles tempos em que, ao que parece, todo mundo que importava estava acessível e nos mesmos lugares, ele teve como colegas na escola Dramatic Workshop figuras como Marlon Brando, Walter Matthau, Tony Curtis, Sidney Poitier e Bea Arthur, dentre outros nomes que construíram a indústria do entretenimento do século 20.

Atuando nas produções do AMT foi visto pelo produtor musical Monte Kay, também responsável pela direção musical de diversas casas de jazz de Nova York. Belafonte recebeu dele a proposta de cantar no Royal Roost, no Distrito dos Teatros de Manhattan – abriga a maioria dos teatros da Broadway. Na banda de apoio ninguém menos do que Charlie Parker e Miles Davis.

Belafonte começou a chamar atenção como cantor e em 1952 assinou contrato com a RCA Victor para gravar seu primeiro disco. O início de carreira transcorreu com canções populares no estilo crooner, navegando no filão estabelecido por Bing Crosby e Frank Sinatra.

Ele estreou no cinema em 1953, em Bright Road, ao lado de Dorothy Dandridge. Era um projeto da MGM para testar a receptividade do público a um filme estrelado por negros, com pouca divulgação do estúdio. Com a reação positiva, os dois atores estrelaram Carmen Jones (1954) e Dandridge tornou-se a primeira atriz negra a ser indicada ao Oscar de melhor atriz.

No dia 18 de maio de 1956 chegou às lojas o álbum Calypso, seu 3º disco de estúdio, dando início à grande virada na carreira. A grande aposta era introduzir na América um ritmo caribenho ainda desconhecido e o resultado não poderia ter sido melhor: o primeiro LP a vender mais de 1 milhão de cópias na história da indústria fonográfica e a consagração do calipso, gênero dançante cheio de sensualidade. Imediatamente nomeado “Rei do Calipso”, Belafonte trabalhou arduamente para se desvencilhar desse título limitador.

A volta ao cinema ocorreu em 1957, numa produção rodada no Caribe. Ilha dos Trópicos causou escândalo porque propunha interesse romântico entre casais interraciais – Belafonte/Joan Fontaine e Dandridge/John Justin. Em 1959, um novo filme e mais polêmica: O Diabo, a Carne e o Mundo trazia Belafonte, Inger Stevens e Mel Ferrer como os últimos sobreviventes da Terra, deixando no ar um suposto triângulo amoroso.

Em 1960 entrou para a história como o primeiro artista negro a ganhar o prêmio Emmy – a maior premiação da TV dos EUA – pelo especial Tonight with Belafonte.

No transcorrer dos anos 1950, apesar do sucesso Belafonte recebia poucos convites para atuar no cinema e começou a ficar incomodado. Seus protestos fizeram com que fosse incluído na lista negra de Hollywood, vítima da histérica campanha contra o comunismo empreendida pelo senador Joseph McCharty – ele e a atriz Lee Grant estão os últimos perseguidos ainda vivos.

Desde 1954 vivia sob ameaça da Klu Klux Klan e ficou proibido de se apresentar nos estados do sul dos EUA até 1961. Nesse período conheceu Martin Luther King, de quem se tornou grande amigo e confidente. Outro amigo conquistado no período foi o ativista Malcolm X.

Belafonte entrou firme na luta pelos direitos civis, inclusive arrecadando milhares de dólares para pagar fianças de manifestantes presos durante as célebres marchas.

Felizmente, o banimento imposto pelo macarthismo não atingiu sua carreira na música, que seguiu muito bem-sucedida. Em 1962 foi a vez do álbum Midnight Special, onde ocorreu a participação de um jovem músico tocando gaita: um certo Robert Zimmerman que viraria lenda como Bob Dylan.

A Marcha sobre Washington realizada em 1963 teve Belafonte como um dos organizadores. Foi ele quem convidou artistas como Burt Lancaster, Charlton Heston, Marlon Brando e Sidney Poitier para o evento, ocasião em que o reverendo Luther King proferiu o célebre discurso “Eu Tive um Sonho”.

Diante do seu posicionamento político, sofreu grande restrição do governo americano nos anos 1960. Mesmo assim, venceu dois Grammy, conquistou 6 discos de ouro e lançou a cantora sul-africana Miriam Makeba – carinhosamente chamada de “Mama África” –, com quem gravou diversas canções contra o apartheid. Perdeu presença no mercado da música com a explosão do rock inglês e a chegada dos Beatles.

Voltou à televisão em 2 de abril de 1968 para gravar o programa Petula, da cantora inglesa Petula Clark, veiculado pela rede NBC. Belafonte era o convidado especial e, durante a gravação de On The Path of Glory – canção de protesto contra a guerra cantada em dueto –, ela segurou o braço dele de forma carinhosa. Foi o bastante Doyle Lott, gerente de publicidade da Divisão Plymouth da Chrysler Corporation, patrocinadora do programa, exigir que o número fosse cortado. Ele simplesmente se opunha a um homem negro aparecer no programa, ainda mais com aquela demonstração de afeto interracial.

Como o programa não era ao vivo – foi gravado com cerca de um mês de antecedência –, Petula recusou a censura, a emissora apoiou os artistas, o assunto vazou para a imprensa e o programa alcançou recorde de audiência e ótimas críticas quando foi veiculado, representando um grande marco na luta contra o racismo na TV americana.

Não deve ter sido fácil para Lott enfrentar diante dos seus chefes a manchete “Incidente na gravação de TV irrita Belafonte” estampada no The New York Times de 7 de março daquele ano. Muito menos os rumores de que o cantor estava prontinho para recomendar à América um boicote aos automóveis Plymouth no The Tonight Show, outro “canhão” televisivo da mesma NBC então apresentado por Johnny Carson – o programa está no ar desde 1954 transmitido do Rockefeller Center e atualmente é comandado por Jimmy Fallon.

A crise obrigou o executivo da Chrysler a emitir uma nota tentando transformar tudo num grande mal-entendido: “Eu estava cansado. Exagerei na encenação, não em qualquer sentimento de discriminação”. Mas o mesmo NYT esclareceu três dias depois que ele havia sido “dispensado de suas responsabilidades”. Uma forma elegante de informar que o sujeito havia sido demitido.

Sem a reação do executivo da Chrysler, era considerável a probabilidade de o contato físico de Petula e Belafonte passar despercebido. Afinal, os americanos já haviam testemunhado pela mesma NBC e sem qualquer incidente, duas atrações: a parceria de Bill Cosby com Robert Culp como agentes secretos em Os Destemidos (1965 a 1968) – a primeira série a ter uma dupla interracial nos papéis principais –, bem como o beijo de Nancy Sinatra em Sammy Davis Jr. no especial Movin’ With Nancy (1967).

Belafonte retomou o cinema em 1970 e seguiu fazendo filmes esporadicamente. A partir de 1999 caiu na estrada em turnês musicais, até anunciar a aposentadoria dos palcos em 2003. Mesmo assim, continuou gravando discos. Em 2015 recebeu das mãos do velho amigo Sidney Poitier um Oscar especial pelo conjunto da obra e contribuição a trabalhos humanitários. Seu último filme foi Infiltrado na Klan, do diretor Spike Lee, lançado em 2018.

Harry Belafonte está registrado na história como um grande artista que dedicou a vida ao ativismo contra racismo, guerras e embargos econômicos, e em favor dos direitos civis, bem-estar social, educação, infância e cura da aids.

Sua atuação nesses campos pode ter sacrificado a carreira. Mesmo assim, ele costuma dizer que “não é um artista que virou ativista, mas um ativista que se tornou artista”. Não é por menos que, prestes a completar 96 anos, continua sendo uma das figuras mais queridas e respeitadas do meio artístico internacional.

Assista aqui

USA for Belafonte   https://www.youtube.com/watch?v=bTg7y8_L0DE

Os Fantasmas se Divertem   https://www.youtube.com/watch?v=AQXVHITd1N4&t=1s

Retorno à TV (1968)   https://www.youtube.com/watch?v=RbJf0pmVfmE

Ouça aqui (versão original – áudio remasterizado)

https://open.spotify.com/track/43IKDWv0QrE1fl2mwWj9qw?si=6267a0f9225c4c7e

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