Por Heraldo Palmeira
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24 de novembro de 2024

É Carnaval!

Kerstin Riemer/Pixabay

É Carnaval!

  • Heraldo Palmeira

O Carnaval é uma das maiores festas populares do planeta e se repete em diversos países. Sua realização no Brasil tornou-se a mais opulenta e impressionante, verdadeira maratona de um espetáculo deslumbrante. Embora o Brasil tenha se tornado o país do Carnaval, Barranquilla (Colômbia), ilhas Canárias (Espanha), Nice (França), Nova Orleans (EUA), Oruro (Bolívia) e Veneza (Itália) também realizam festejos famosos.

Quando o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro passou por um grande processo de profissionalização – e espalhou seu princípio de indústria cultural principalmente para Pernambuco, Bahia e São Paulo –, o Carnaval transformou-se de capricho de bicheiros cariocas e foliões anônimos para a posição de grande propulsor da indústria do turismo brasileiro.

Apesar de todas as novidades que entraram nessa enorme avenida festiva que se espalha pelo país todos os anos, um detalhe chama a atenção: as marchinhas antigas continuam dominando o repertório da folia. Quem apresenta a lista das músicas mais tocadas nos últimos cinco anos (veja abaixo) é o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), encarregado da arrecadação e distribuição dos direitos autorais aos compositores. E a grande pentacampeã é Mamãe Eu Quero.

O reinado de Momo tem o exagero como um dos seus principais elementos e está diretamente ligado a festas realizadas na Antiguidade e com a liturgia católica – a origem da palavra Carnaval vem do latim carnis levale (retirar a carne), para obedecer ao jejum durante a Quaresma como forma de controlar os prazeres profanos.

Embora o Carnaval como conhecemos hoje seja compreendido pelos pesquisadores como festa de origem cristã em razão dessa relação direta com o jejum quaresmal, suas origens remontam a outras festividades estabelecidas na Antiguidade.

História Desde as primeiras citações, que vêm da Mesopotâmia, a subversão de papéis sociais para agredir a ordem estabelecida está presente no princípio das duas festas associadas às origens do Carnaval.

Na região da Babilônia era realizada a Saceia, festival onde um prisioneiro assumia a figura do rei por alguns dias, usando trajes reais, se alimentando com todas as iguarias e dormindo com as esposas do soberano. Porém, o fim da festa lhe era trágico, pois o infeliz era chicoteado e morto por enforcamento ou empalamento.

Na outra celebração, no período próximo ao equinócio da primavera, o próprio rei da Mesopotâmia festejava o ano-novo perdendo suas insígnias dos poderes reais e sendo surrado diante da estátua do deus Marduk em seu templo. Era uma forma de demonstrar submissão àquela divindade e, ao fim da surra, reassumia o trono.

Para alguns estudiosos, a subversão dos papéis – prisioneiro vira rei e rei é humilhado publicamente – pode demonstrar uma espécie de ligação das práticas carnavalescas modernas com as tradições ancestrais, que se materializam de diversas maneiras. Por exemplo, homens fantasiados de mulheres, fantasias alusivas a personagens conhecidos, desconstruções baseadas na sátira e máscaras para esconder identidades.

Celebrações greco-romanas como as bacanais – festas dedicadas ao deus Baco (Dionísio para os gregos) – começaram a introduzir a embriaguez e os prazeres da carne para todos os participantes, sem penas capitais ao fim da festa.

Os romanos nunca foram amadores na hora de festejar. Por isso, tinham no calendário a Saturnália em dezembro (no solstício de inverno) e a Lupercália em fevereiro (mês dedicado às divindades infernais e à purificação). Eram dias e dias de festas com danças e fartura de comida e bebida e, com destaque, a subversão de papéis com escravos virando senhores e vice-versa.

Na Alta Idade Média, temendo qualquer reviravolta a partir dessas festas pagãs cada vez mais populares, a Igreja passou a criticar diretamente a inversão de papéis pregando o perigo de se incluir nela a relação entre Deus e o Diabo.

Talvez temendo chegar a um ponto em que a fuzarca terminasse vestindo o papa de sacristão e o sacristão aparecesse dentro da solene batina branca e com sapatos vermelhos, a Santa Madre tentou dar um sentido maior de cristandade para a festa. Assim foi criada a Quaresma, invadindo fevereiro com um período de 40 dias antes da Páscoa em que o jejum tinha grande destaque – sacrifício para recordar o sacrifício de Jesus sendo tentado pelo Demônio no deserto.

Mais adiante os festejos passaram a ser chamados de carnis levale, acontecendo num mesmo período. Pode-se dizer que representou uma pequena vitória dos religiosos, pois a festa costumava ocupar semanas em datas diferentes entre o Natal e a Páscoa. A partir dali a Igreja conseguiu usar sua influência política para juntar tudo em um espaço de tempo menor, onde os fiéis poderiam cometer seus excessos e teriam o momento seguinte para buscar a purificação. Também pode-se pensar que, na verdade, os devotos estabeleceram um cisma litúrgico para cair na farra como se não houvesse amanhã. E todos saíram satisfeitos.

O modelo do festejo medieval não deixava por menos. Como era período fértil para as atividades agrícolas, os rapazes vestiam fantasias femininas, diziam-se almas da fronteira entre vivos e mortos e vagavam pelas noites invadindo pacificamente casas onde comiam, bebiam e beijavam as jovens das famílias visitadas.

O Renascimento trouxe novos elementos ao Carnaval. A partir dali houve fortalecimento dos cortejos com alegorias, criação de canções específicas, teatros improvisados que tinham um processo de retroalimentação com a festa – o pierrô e a colombina são legados da commedia dell’arte –, uso de capas, capuzes, máscaras e realização de bailes de máscaras.

Carnaval no Brasil A festa foi trazida para cá pelos portugueses e o tempo tratou de estabelecer uma relação visceral. Basta lembrar da marchinha História do Brasil, do compositor Lamartine Babo, sucesso no Carnaval de 1934:

Quem foi que inventou o Brasil

Foi seu Cabral, foi seu Cabral

No dia vinte e um de abril

Dois meses depois do Carnaval

A estreia em solo colonial foi o Entrudo, que consistia em as pessoas se lambuzarem pelas ruas jogando água, farinha, lama, ovos, tinta e urina umas nas outras. Os escravos inseriram sua África na festa ao som de batuques e outros ritmos que, misturados com influências musicais europeias, deram origem às marchinhas e ao samba.

O passar do tempo foi colocando nas ruas ranchos, cordões, corsos, festas de salão, blocos, escolas de samba, afoxés, maracatus, conduzidos por marchinhas, sambas e frevos, que terminaram criando nossa melhor tradição carnavalesca.

A chegada do século 20 trouxe modos mais civilizados e o arremesso de substâncias foi proibido. Por isso, os itens utilizados no Entrudo terminaram substituídos por confetes, serpentinas e buquês de flores, elementos chiques dos salões franceses de Paris e Nice que foram importadas diretamente para os carros das famílias mais abastadas em seus cortejos pelas ruas do Rio de Janeiro, Recife e Salvador – três futuros grandes polos do Carnaval brasileiro moderno.

O Carnaval de rua moldou agremiações carnavalescas de diversos formatos, que passaram a arrastar multidões. Junto vieram as marchinhas satíricas, onde nada e ninguém escapava às letras de duplo sentido. O rádio serviu de combustão para criar sucessos inesquecíveis que explodiam a cada fevereiro, tendo Carmen Miranda e Francisco Alves como principais intérpretes.

Em 1928 teve início um corredor cultural que tomaria proporções inimagináveis para a época, quando foi criada a Deixa Falar, primeira escola de samba, hoje conhecida como Estácio (de Sá) – a palavra “escola” entrou no mundo do samba porque os fundadores estavam em um bar instalado defronte de uma escola. Hoje, todas são conhecidas com a sigla prévia GRES-Grêmio Recreativo Escola de Samba.

A partir dos anos 1960 os sambas-enredos das escolas cariocas passaram a ter forte presença na programação musical carnavalesca.

Com a inauguração do Sambódromo na Marquês de Sapucaí (1984), o Carnaval de rua do Rio sofreu um duro golpe, pois os desfiles ficaram confinados num ambiente muito menor do que a festa carioca, com ingressos cada vez mais caros e um formato desenhado para turistas e transmissões de televisão.

A festa popular sem dono permaneceu resistindo em alguns bairros do subúrbio à Zona Sul. Cacique de Ramos, Carmelitas, Cordão do Bola Preta, Banda de Ipanema e Imprensa que Eu Gamo mantiveram grupos de foliões agrupados. Até que o Cordão do Boitatá apareceu no cenário em 1996 e tornou-se um dos responsáveis pela revitalização do Carnaval de rua carioca. Hoje, cerca de 500 blocos ampliaram o calendário oficial e arrastam multidões impressionantes.

Rio de Janeiro, Recife/Olinda e Salvador, cada cidade a seu modo, formam o trio carnavalesco de tambores, sopros e guitarras que dominam a festa brasileira.

A geringonça elétrica inventada por Dodô e Osmar em Salvador (1950) para amplificar seus instrumentos em cima da fubica fez o país inteiro cantar com Caetano Veloso que “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”. As orquestras de frevo do Recife e os bonecos gigantes de Olinda completam uma festa que não cabe em palavras. Algo superlativo que se traduz no Galo da Madruga, considerado o maior bloco do mundo. E há poucos anos São Paulo entrou na folia espalhado entre seu Sambódromo do Anhembi e inúmeros blocos de rua, num movimento que começa a se firmar como quarto polo no calendário nacional.

A subversão do Carnaval parece também revelar, desde seus ancestrais, o sentimento de culpa e um consequente desejo de remissão presentes na inversão temporária de papéis entre reis e vassalos, senhores e escravos. Além disso, a possibilidade de esconder ou trocar de identidade é uma forma de maior liberdade para a diversão, inclusive experimentando, pelas fantasias, vivências e realidades muito diferentes do cotidiano. Em Veneza surgiram as máscaras que permitiam aos nobres se misturarem ao povo sem que fossem reconhecidos, livres para novas experiências.

Ainda bem que, ao fim e ao cabo, a lógica da festa na Antiguidade, Idade Média e nos tempos atuais é virar o mundo de ponta-cabeça, suspendendo por alguns dias as restrições comuns da vida cotidiana. Mesmo que o Carnaval continue sendo um labirinto profundo do comportamento humano, tornou-se algo bem mais leve e prazeroso, inclusive para quem cai nessa deliciosa gandaia até se acabar. Axé!

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Caia na gandaia   https://giramundo.blog.br/heraldo-palmeira-caia-na-gandaia/

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Ouça Pot-pourri de Carnaval

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