Por Heraldo Palmeira
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22 de novembro de 2024

A música da bola

Tim Kawasaki-montagem (Gerd Altmann/Pixabay + Divulgação/FIFA)

A música da bola

  • Sylvio Maestrelli

Uma coisa que me arrepia nos estádios é ver a galera cantando, a toda voz, os hinos de seus clubes do coração. Ou até mesmo cânticos de guerra, improvisações, paródias e músicas populares apropriadas ao momento, do jogo ou do campeonato! Ouvir gritos longos e fantasticamente frenéticos como “Todo Poderoso Timão!”, “Pooooorco!”, Dá-le, dá-le Grêmio!”, “Meeeengoooo!”, “Ba-hê-a!” e outros que, como magia, parecem nos colocar na arquibancada e diante de todos os craques que já vestiram e honraram os mantos sagrados das equipes, reviverem todos os momentos mágicos do futebol.

É impressionante como as grandes conquistas se tornam ainda mais inesquecíveis com o suporte da música. Imagino como se sentiram em 2005 os jogadores do Liverpool na final da Liga dos Campeões. Ao fim do primeiro tempo perdiam para o favorito Milan por 3×0, no jogo realizado em Istambul, Turquia. Mas, incentivados por sua fanática torcida que cantava ininterruptamente You’ll Never Walk Alone (vocês nunca caminharão sozinhos) – canção de Gerry & Pacemakers adotada como hino do clube –, chegaram ao empate na segunda etapa e conquistaram o título nos pênaltis! Ou como se sentem os capitães de times campeões erguendo taças ao som de We Are The Champions, do Queen. Ou até mesmo como se sentiram os pobres torcedores do Rosario Central, da Argentina, sofrendo com o rebaixamento do time e ouvindo a torcida arquirrival da cidade (do Newells Old Boys) cantando a plenos pulmões a primeira versão castelhana do hit sertanejo Chora, me Liga, da dupla brasileira João Bosco e Vinícius, e que hoje é entoada em muitos estádios de toda a América Latina para tirar sarro dos derrotados.

De repente me bateu uma saudade enorme dos tempos em que a Seleção Brasileira encantava e ganhava quase sempre. E, mesmo nas derrotas, dava espetáculo, jogava ofensivamente, nos orgulhava pela beleza daquele futebol. Havia tantos craques em campo que brigávamos por nossos preferidos até nas convocações para amistosos. Olhando para o quadro atual, melhor falar das músicas que retratam velhos tempos de boas lembranças.

Em 1950, o hit carnavalesco Touradas em Madri, do genial Braguinha, nos embalou na goleada histórica, no quadrangular final, quando metemos 6×1 nos fortes espanhóis. Segundo o testemunho de cronistas da época, tivemos um autêntico carnaval fora de época depois do jogo. Também há quem acredite que a festa possa ter contribuído ainda mais para o ufanismo que tomou conta do país, estimulou a soberba do clima de “já ganhou” e ajudou a gerar o Maracanazzo. A tragédia futebolística teve tal impacto que, mesmo com um bom escrete para o Mundial seguinte (Suíça, 1954), paramos de cantar. Ainda bem, pois caímos para os húngaros nas quartas de final.

Já em 1958, a organização e a disciplina imperaram, havia craques em profusão e conquistamos nossa primeira Copa do Mundo, com direito a golear os anfitriões suecos por 5×2 na final. A tal “vitória fora de casa” foi superlativa! Aí, sim, a torcida brasileira explodiu cantando pelos quatro cantos do país A Taça do Mundo É Nossa (obra coletiva de Wagner Maugeri, Victor Dagô, Maugeri Sobrinho, Lauro Müller e José Maugeri Neto):

A taça do mundo é nossa

Com brasileiro, não há quem possa

Eh, eta, esquadrão de ouro

É bom no samba, é bom no couro

O estilo de exaltação carnavalesca da melodia e sua letra enaltecendo nossa ginga e nossa força (a expressão “bom no couro” traduzindo ambiguamente ser bom com a bola de couro no pé, mas também não fugir de briga) retratou o momento desenvolvimentista que vivia o país. A música, que foi composta durante a Copa, mas só divulgada após a vitória – gato escaldado… –, também embalou nosso histórico bicampeonato no Chile (1962). E o refrão era cantado até mesmo quando ganhávamos mundiais em outros esportes (como o bi do basquete, em 1959 e 1963, o boxe com Éder Jofre, o tênis com Maria Esther Bueno).

Ainda em 1958, com o título conquistado, também estourou no rádio Escola de Feola-1958, música de Luiz Queiroga lançada pelo grupo Os Três Boêmios, cantando loas ao nosso primeiro escrete campeão:

Didi, Pelé, Vavá

Bailaram lá na Europa

E a Copa vem pra cá

(No duro!)

Já em 1966, quando fracassamos na Inglaterra, a bagunça na CBD era tamanha que o time estava completamente desacreditado, sequer havia um tema musical para nos acompanhar. Mas em 1970 foi diferente. No auge da ditadura militar e com a perspectiva da primeira transmissão ao vivo de uma Copa do Mundo no país, foi realizado um concurso para se escolher a música que elevaria a moral de nossos atletas na busca do tricampeonato no México e da consequente posse definitiva da taça Jules Rimet – caberia ao primeiro país que ganhasse três Mundiais.

A canção vencedora foi Pra Frente, Brasil, composição de Miguel Gustavo que se tornaria o “hino futebolístico” daquela Seleção mágica. E o país inteiro cantou seus versos:

Noventa milhões em ação

Pra frente, Brasil

Do meu coração

Todos juntos vamos

Pra frente, Brasil

Salve a Seleção!

Apesar do enorme sucesso popular, a música também foi estigmatizada como um hino de apoio ao governo militar. Tanto que, mais tarde (1982), o cineasta Roberto Farias produziu o filme Pra Frente, Brasil, retratando os excessos e expondo os porões da ditadura.

No ambiente festivo pela conquista de 1970, os Golden Boys lançaram com sucesso Sou Tricampeão, composta pelos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle – muita gente enxergou uma mensagem política em favor da luta pela democracia:

Eu hoje, igual a todo brasileiro

Vou passar o dia inteiro

Entre faixas e bandeiras coloridas

Parece, até que eu estava em campo

Buscando a paz nos quatro cantos

Aquele gesto de erguer a taça ao povo

Na verdade, o país estava convulsionado. O escritor Nelson Rodrigues, apaixonado pelo jogo da bola e pelo Fluminense, publicava suas crônicas futebolísticas em jornais desde os anos 1950 e havia criado a expressão “Pátria de chuteiras”, que terminou sendo explorada pelos militares para tentar melhorar a própria imagem utilizando o futebol e a conquista da Seleção tricampeã.

Em 1974, já sem a maioria dos craques da Copa do México, não houve empolgação e nem música-tema que emplacasse no gosto do torcedor. Pelo contrário. Além de ridicularizar a letra da música Cem milhões de corações, gravada pelo grupo Os Incríveis, a torcida levou no gogó o samba Camisa 10, em que o cantor e compositor Luiz Américo reclamava da ausência de Pelé no escrete e seguia em frente numa crítica mordaz chamando o time de “muito fraco” e apontando merecidamente o dedo para o técnico Zagalo.

Só em 1982 a bola voltou a ter partitura, quando ficamos impressionados pela plasticidade do jogo da nossa Seleção sob a batuta de Telê Santana. Começamos a achar que o favoritismo estava na nossa bagagem para a Espanha e, antes da viagem, o povo já cantava Voa, Canarinho, gravada pelo lateral-esquerdo Júnior, um dos cracaços daquele time. Mas o pássaro voou cedo demais em debandada, abatido pelo estilingue italiano Paolo Rossi depois que o peladeiro Toninho Cerezo abriu a porta da gaiola. O impacto daquela derrota foi tamanho que não houve cantoria por duas Copas seguidas.

Em 1994, saímos desacreditados para Copa do Mundo nos Estados Unidos. Com o transcorrer da competição, apesar do futebol modorrento comandado pelos burocratas da bola Parreira e Zagalo, a torcida foi se empolgando. A cobertura oficial do Mundial realizada pela TV Globo tinha como trilha sonora Coração Verde e Amarelo, uma vinheta composta por Tavito e Aldir Blanc que caiu no gosto popular embalando Romário, Bebeto e companhia:

Eu sei que vou, vou do jeito que eu sei

De gol em gol, com direito a replay

Eu sei que vou com o coração batendo a mil

É taça na raça, Brasil

Com ritmo contagiante e sempre acompanhada pelo fascinante Tema da Vitória – que tocava nas conquistas de Ayrton Senna nas pistas –, o Brasil inteiro vibrou e se emocionou com o novo hino da bola. Na Copa seguinte a música foi repetida, mas não deu sorte. Perdemos a final para a França, convulsão de Ronaldo Fenômeno à parte.

Já em 2002, como ninguém acreditava no penta em razão da nossa campanha muito irregular nas Eliminatórias e contusões de alguns craques, nada de tema musical exclusivo. Para surpresa geral, tivemos uma campanha sensacional na Ásia e foram ganhando associação com a Canarinho as canções Festa (composição de Anderson Festa Cunha), na voz de Ivete Sangalo, e Deixa a vida me levar (criação de Eri do Cais e Serginho Meriti), que virou quase uma assinatura musical da carreira de Zeca Pagodinho. E com essa cantoria chegamos a uma final épica, com aquele inesquecível 2×0 em cima da Alemanha.

Infelizmente, a parceria vitoriosa da bola com a música terminou naquela final, porque de 2006 em diante colecionamos apenas favoritismos fracassados. Olhando com o distanciamento necessário, basta analisar a pobreza do que tínhamos a oferecer em campo nas últimas cinco Copas para entender que esses favoritismos foram muito mais a expressão do pachequismo que aflora a cada Mundial.

Por isso, nesse já longo período de 21 anos de vexames, nenhuma música conseguiu embalar esse modelo de Seleção que está posto. E nem poderia. Talvez porque tenhamos deixado de lado a ginga, o samba, a malemolência com a bola nos pés. Talvez porque nossos jovens jogadores saem cedo do país e, milionários precoces, se tornam celebridades, não craques. Talvez porque a decadência do futebol tenha contaminado a música com essa ruindade que toca em todos os cantos – só pode haver algum significado nessa “coincidência” de não termos mais o melhor futebol do mundo e uma das melhores músicas populares do planeta, algo que ouvimos falar a vida inteira. Talvez porque os autênticos torcedores – em sua maioria – já não ligam para uma Seleção que perdeu completamente sua identidade nacional. E talvez porque, hoje, alguns lunáticos ousam comparar Neymar a Pelé. Vai saber… Afinal, quem tem como mascote esse tal de Canarinho Pistola já entra derrotado para enfrentar os canhões que aparecem na outra metade do campo, não é mesmo?

Por enquanto, estamos ouvindo aquela musiquinha embromation de elevador que a CBF segue tocando em relação ao anúncio do novo técnico da Seleção, no velho jogo de sempre onde o camisa 10 chama-se especulação. Bola pra frente e som na caixa com alto-falante estourado.

Ouça aqui

A Taça do Mundo é Nossa   https://www.youtube.com/watch?v=hJAriHOh1Jg&t=2s

Escola de Feola-1958   https://www.youtube.com/watch?v=MELfSGXA9Ds

Pra Frente, Brasil   https://www.youtube.com/watch?v=h18FDCZBMwU

Sou Tricampeão   https://www.youtube.com/watch?v=qeCVuHh8EPE

Veja aqui

Copa de 1958 (especial ESPN)   https://www.youtube.com/watch?v=7j1qBS3xFO0

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