Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

Nova York descascada

Divulgação/Netflix

Nova York descascada

  • Heraldo Palmeira

GIRAMUNDO VIU Duas figuras que são a cara de Nova York resolveram descascar a Big Apple. Esse é o sentido da série-entrevista Faz de Conta que Nova York É Uma Cidade (2021), lançada pela Netflix. Dividida em sete episódios de cerca de 30 minutos, junta dois velhos amigos: o consagrado diretor de cinema Martin Scorsese e a escritora, atriz, palestrante e personalidade pública Fran Lebowitz.

A série faz parte daquele segmento de filmes sossegados, onde estamos livres de perseguições, sobressaltos e momentos épicos. Algo mais parecido com a vida que levamos todos os dias. Um formato que se acomoda como um bom amigo no sofá da nossa sala e cabe como luva na TV.

“A Cidade que nunca dorme” merece uma montanha de observações de duas figuras nova-iorquinas por excelência tratando do lugar que escolheram para viver. Um bom exemplo de cinema íntimo e feito de boa conversa.

Scorsese é filho legítimo da cidade, nascido no Flushing – região do bairro do Queens. Lebowitz é filha adotiva, vinda da quase vizinha Morristown, Nova Jérsei (cerca de 50 km) e distante anos-luz. A relevância que o diretor enxerga na prosa da amiga já havia rendido o documentário Public Speaking (HBO, 2010) e Faz de Conta que Nova York É Uma Cidade dá continuidade ao papo.

As atividades dela como escritora, atriz, palestrante e figurinha fácil nos principais talk shows ajudaram a construir sua imagem de ícone da chamada Capital do Mundo, onde chegou em 1970 e logo passou a circular nos ambientes da intelectualidade.

O grande charme da série está no formato simples, baseado em conversas inteligentes e estimulantes. O diretor lança um tema principal diferente em cada episódio e a entrevistada fala dele no cotidiano da cidade, com profundo conhecimento de causa. Como em toda prosa boa, claro que outros assuntos vão surgindo. Não escapam pessoas, ideias, trânsito, discriminações, especulação imobiliária, consumismo, equipamentos urbanos, administração e transporte públicos, poder, dinheiro, leilões de obras de arte, viagens, literatura, festas, estilo de vida, redes sociais, turistas, jazz, chatices do politicamente correto, como um resumo das frustrações e prazeres da vida urbana moderna.

Lebowitz é uma mulher de falas provocativas e não foge de polêmicas ou temas sensíveis. Tanto que afirma ser capaz de separar o artista da obra, mesmo que ele tenha feito coisas horríveis. Concorda que seja punido devidamente, mas se a obra for boa não deve deixar de ser consumida.

O fio condutor inclui bater perna, encontrar amigos, ir a concertos, bares, restaurantes, antiquários, livrarias, tirar sarro da fauna pra lá de diversificada… Tudo isso tratado sem perder o olhar humano e com inegável afeto por todo o conjunto antropológico envolvido, mas sem abrir mão de uma visão crítica muito bem calibrada e cheia de humor. Em muitos momentos salta da tela a sensação de que Scorsese vai passar mal de tanto rir.

História Frances “Fran” Ann Lebowitz nasceu em 27 de outubro de 1950 em Morristown, Nova Jérsei. Filha de judeus, ateia declarada, escritora com apenas três livros publicados – existe mais um “em andamento” –, é também atriz bissexta e figura de grande visibilidade na vida de Nova York.

Chegou em 1970, depois de ser expulsa do colégio na terra natal, e passou a trabalhar como motorista de táxi e fazendo faxina em apartamentos, ao mesmo tempo em que circulava pela cena cultural e artística. Os relatos sobre essa experiência ao volante dos famosos carros amarelos são deliciosos, inclusive quando faz piada da discriminação que sofria dos seus colegas motoristas, “todos homens, todos judeus”.

Não teve qualquer dificuldade de abordar Andy Warhol – a quem nunca tinha visto –, à época uma das figuras mais reluzentes da cidade e de quem recebeu convite para assinar uma coluna na revista Interview, que ele havia criado. Ela tinha 21 anos e começou a se firmar no ambiente de influência nova-iorquino. Em pouco tempo estava escrevendo para diversos veículos de imprensa e se ligou a celebridades locais como o músico Charles Mingus e os fotógrafos Robert Mapplethorpe e Peter Hujar– além do próprio Warhol, com quem manteve uma relação mutuamente distante. Em 1978 e 1981 lançou seus primeiros livros, duas coletâneas de textos publicados em jornais e revistas.

Apesar de escrever artigos na imprensa regularmente, enfrenta um bloqueio de escrita literária desde que publicou seu último livro (1994), dedicado ao universo infantil, e vem adiando o lançamento de um prometido romance. Ela mesma confessa que os dois principais motivos: o medo da página em branco e sua preguiça descomunal – não gosta de fazer nada o dia inteiro além de ler sobre qualquer assunto, a ponto de ter montado sua famosa biblioteca cujo abriga mais de 10 mil livros.

A escritora que não escreve parece carregar uma contradição: admite nutrir uma profunda reverência pela palavra escrita, enquanto não se preocupa com freios na hora de falar e pensar. E não deixa por menos: “A maioria das pessoas que ama escrever é péssima escritora”. Foi grande amiga e fã da escritora Toni Morrison, a primeira mulher negra a ganhar o Nobel de literatura. Até a morte dela, as duas se falaram por telefone diariamente durante mais de 40 anos.

Como sempre sonhou ser juíza, adora fazer esse papel na ficção. Por isso, atuou presidindo julgamentos no filme O Lobo de Wall Street e em vários episódios da franquia Law & Order. Um dos motivos alegados para aceitar os papéis seria o fato de ficar sentada, pois se diz incapaz de decorar falas e obedecer às marcações cênicas dos diretores.

Pouco conhecida fora dos EUA, é considerada um símbolo da melhor tradição de sofisticação da cidade, a ponto de o jornal The New York Times a definir como uma Dorothy Parker contemporânea. Independente, jamais se declarou feminista e, gay assumida, permaneceu longe de qualquer militância. Difícil de ser cooptada, não teve qualquer dificuldade em elogiar o movimento internacional #MeToo contra assédio e agressão sexuais, mesmo tendo diversos amigos denunciados. Também não refresca a respeito da proibição de fumar em ambientes fechados, determinada em lei de 2003 do então prefeito Michael Bloomberg: “O que Picasso teria perdido se tivesse sido forçado a se levantar e sair para fumar? Ficar por aí é muito importante. Você sabe o que são artistas sentados conversando, fumando e bebendo? Chama-se história da arte”, dispara. Quando a aids sacudiu o mundo e ela perdeu muitos amigos vitimados pela doença, não fez rodeios: “A aids matou todas as pessoas legais”.

Ela detesta esportes e, em entrevista concedida ao cineasta Spike Lee, fez uma única concessão a Muhammad Ali. Também contou ter assistido à lendária luta dele contra Joe Frazier sentada num lugar privilegiado do Madison Square Garden naquela noite de 1974, mas que saiu convencida de que aquilo foi na verdade um evento de moda, cultura e política ao redor de uma luta de boxe.

Lebowitz não usa qualquer dispositivo eletrônico, muito menos redes sociais. Não tem celular, computador, jamais utilizou máquina de escrever porque sempre escreveu à mão, inclusive os livros. Para se comunicar, o velho e bom telefone fixo é mais do que suficiente. Nem a pandemia conseguiu dobrar essa postura: “Não ter essas coisas não é um acidente. Eu sei que elas existem. É como não ter filhos: não foi um acidente”, declarou numa entrevista à revista The New Yorker. Para ela, há coisas muito mais interessantes para fazer na cidade do que ficar refém do mundo digital.

A posição inflexível também se repete no figurino masculino único composto por blazer, camisa masculina, abotoaduras, jeans com a barra dobrada, botas de caubói (que não revela a marca por nada desse mundo) e óculos tartaruga. Seu estilo inconfundível fez dela uma das mulheres mais bem vestidas, segundo a revista Vanity Fair estabeleceu repetidas vezes em suas disputadas listas anuais.

Mas que ninguém se engane com esse estilo “uniforme”. Os jeans são unicamente o Levi’s 501 e as camisas Hilditch & Key. Além de abotoaduras feitas pessoalmente pelo escultor e pintor Alexander Calder, seus blazers e sobretudos chiquérrimos são confeccionados na Anderson & Sheppard, tradicional alfaiataria sob medida londrina estabelecida em Savile Row desde 1906. A casa dispensa apresentações e foi o primeiro emprego do estilista inglês Alexander McQueen que, reza a lenda, teria escrito insultos e palavrões à família real na parte interna do forro de peças encomendadas pelo agora soberano. Sua centenária lista de clientes registra o entronado rei Charles III, Charles Chaplin, Fred Astaire, Cary Grant, Gary Cooper, Noël Coward, Bryan Ferry e até mesmo os famosos da moda Manolo Blahnik e Tom Ford. E apenas duas mulheres em toda a história: Marlene Dietrich e Fran Lebowitz, é claro.

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