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Dores do tempo
- Heraldo Palmeira
A cidade crescera muito naqueles quarenta e tantos anos, era fato! Havia nela e nos aglomerados urbanos ao redor cerca de um milhão de habitantes agora. Muita gente! Muita distância daquele provincianismo romântico que tinha a medida da época. Coisas boas foram vividas naquelas mesmas ruas, nossos rostos não eram o resumo cansado de agora.
Os dois homens chegaram quase ao mesmo tempo ao restaurante do bairro residencial por excelência. A região ainda vivia de lembranças do tempo em que tudo ali era sinônimo de elite, mas estava resumida a guardar velhos cacoetes tentando disfarçar a decadência óbvia. O relógio imponente da parede se aproximava do ponto de badalar uma e meia da tarde e o recinto estava quase vazio. Sim, a cidade mantinha os velhos hábitos de almoçar cedo e o pico que enchia as mesas se dava na restrita fração do dia que ligava onze e meia da manhã e pouco mais de uma da tarde.
Talvez essa fosse apenas uma das contradições que o homem mais baixo dos dois não conseguia aceitar. Sim, ele enxergava naquele horário de almoço os tempos da juventude em que a mesa se enchia com seus pais e um casal de irmãos, sineta à mão e empregados a postos para servir os patrões. Tinha enorme dificuldade em decifrar o mistério que transformara o cenário ao redor em algo completamente diferente, embora mantivesse relógio e refeição atrelados ao costume antigo consagrado em casa.
Quando o relógio da parede badalou uma e meia, ele disse “É um Omega Constellation 1952, foi do meu pai”, mostrando o pulso com orgulho indisfarçável..
Para o homem mais alto aquilo soava não como uma afirmação de tradição e requinte, mas como uma boia de salvação para uma vaidade em frangalhos. Não gostava de ver o outro assim tão agarrado a um tempo que já não corria no calendário. Na verdade, tinha um ar mais relaxado do que o amigo diante dele, parecia menos pressionado pela realidade. Talvez nem se importasse tanto com as mudanças do tempo, vivia e pronto.
Era verão, poucos dias pós-Carnaval, o garçom trouxe a cerveja gelada – uma boa tradição da casa. Nada mais adequado para o calor reinante, pelo menos ali dentro bem enfrentado pelo ar refrigerado. Lá fora estava abafado, vento e nuvens medindo forças para expor ou esconder o sol. A ameaça de chuva aguardava o resultado daquela queda de braço.
O homem mais baixo estava inconformado. “Cadê meu Carnaval?”, quis saber. O homem mais alto riu, a resposta era óbvia. “Está na memória!”, disse com aquele ar tranquilo de quem aprendera a relativizar muita coisa e não se deixava afetar pelo que não podia ser modificado. Sabia que viver remoendo o passado não era saudável, bastava guardar boas lembranças. Tanto que tinha herdado do pai um Constellation exatamente como aquele. E duas canetas lendárias. Uma Parker 51, tinteiro; uma Parker Jotter, esferográfica. As três peças, todas dos primeiros anos de produção. Não via sentido em sair por aí com elas, era recomendável respeitar suas idades. E possíveis cobiças indesejadas. Tudo que fazia era mantê-las com carinho, usando em casa para não perecerem por inutilidade – com o quase desaparecimento da escrita à mão, parecia blasfêmia ter restringido aqueles dois símbolos sagrados para anotações comezinhas.
“O Carnaval está morrendo”, o baixo insistiu. E danou a falar saudoso sobre os tempos em que havia almoços e bailes memoráveis no Yacht Clube – o pai era sócio remido – durante o tríduo momesco. O alto ficou impressionado. Aquele linguajar…
O baixo estava devastado pelo tempo e pela vida errante que assumira há muitos anos. Filhos espalhados em diversos relacionamentos, ele ausente de todos. Um casamento que se arrastava muito mais pela paciência de mulher, já habituada às infantilidades que ele vivia cometendo em nome dos velhos tempos.
No Carnaval, costumava desaparecer em folias cambaleantes, inclusive se apaixonando pelas meninas pistoleiras que vivem à espreita de gente como ele. Todas lindas e ávidas por um bolso descontrolado. O jogo das colombinas seduzindo pierrôs, para depois encontrar os arlequins e festejar os resultados. É assim desde que o mundo é mundo.
Naquele dia, o baixo queria uma opinião do alto para seu último empreendimento. Promovera um baile de Carnaval no velho clube, incluindo desfile de carros antigos na chegada para reviver o corso. Divulgou o quanto pôde e resultou um fiasco. Apenas poucos amigos apareceram. O único carro velho era o dele.
O homem mais alto resolveu contemporizar, era mesmo a melhor alternativa. Seria doloroso para o amigo ouvir que o projeto estava errado desde o princípio. A começar pelo clube, que sobrevivia da fantasia sobre tradição de novos-ricos sem qualquer tom de elegância. Uma gente ruidosa que havia comprado lanchas porque as regras do novo-riquismo determinam que não se é rico de verdade sem ter esse brinquedo. Uma gente que desconhece a velha máxima das “duas grandes alegrias: o dia que compra e o dia que vende” – quem pode mesmo ter lancha já está no degrau de iate, com tripulação e serviço de bordo, o resto é canoa com motor e isopor com bebidas.
O Carnaval mudara completamente de figura, era um arquétipo enganoso do que houve antes e continuava na cabeça do homem mais baixo. Não cabia mais aquela mentalidade insistente de reviver o passado. Muito menos a raiva que sentia dos amigos que não apareceram no Yacht. Estavam todos rondando os 70 anos ou mais, muitos deles cheios de ziquiziras e cerceados por restrições etílicas e alimentares impostas pelos médicos.
O homem mais alto preferiu consolar o amigo argumentando que hoje muita gente evita a folia, prefere ficar na segurança de casa ou de retiros com amigos e familiares em praias ou chácaras distantes. Sem contar a infinidade de hotéis e pousadas que oferecem programas “sossego total”. Também incluiu nas alternativas as plataformas de streaming cheias de filmes imperdíveis, onde o controle remoto pode parar qualquer cena para uma ida ao freezer ou banheiro – um espetáculo isso!
O baixo tentava argumentar, mas, no fundo, estava resignado. Era difícil ignorar todos aqueles fatores citados pelo amigo. Ainda andava por aí dirigindo um velho Cadillac dos anos 1960, que para ele significava um símbolo de status e seria a grande atração no corso do baile fracassado. Para boa parte dos amigos a Banheira, como batizaram, era apenas motivo de riso – nunca na frente dele –, já que o gigante estava em más condições e não havia dinheiro para reparos. Muitas vezes o homem chegava em carros de aplicativo, maneira inteligente de ficar imune àquele V8 beberrão implacável de gasolina – nem chegava mais a 3 km/litro!
O alto fitou o amigo e se deu conta de como ele estava envelhecido. Havia um certo desleixo na aparência. Barba malcuidada, cabelos desgrenhados, panamá amarelado como se quisesse combinar com o tom de nicotina sobre o branco do bigode, Ray-Ban Aviator de lentes verdes e aro dourado com uma lasquinha arrancada ao lado da marca estampada na G15 do olho direito. E estava claro que aquele Constellation 1952 e a indumentária não comungavam da mesma mise-en-scène.
“Hoje você é meu convidado”, o alto fez questão. Despediram-se na calçada e ele ficou vendo o amigo sair na Banheira. Havia um desabonador rastro fino de fumaça ficando para trás. “Deve ser turbodiesel”, falou com tristeza para si mesmo. Não estava zombando, mas arrependeu-se da ironia. Aquilo não era coisa de amigo. Ainda bem que ninguém tinha ouvido.
O homem mais alto deu partida no carro e seguiu pensativo. Sim, estava preocupado com o amigo. Era cada vez mais comum ver pessoas desconectadas com a realidade insistindo em transitar por um mundo que não existe mais, e isso nem sempre termina bem.
No rádio, a voz doce de Vânia Bastos parecia ter combinado:
Se a avenida
Exilou seus casarões
Quem reconstruiria
Nossas ilusões?
Não é simples passar pelas mesmas ruas e perceber que agora é um lugar onde as pessoas de antes já não estão, e não há mais qualquer referência delas. O que restou dos imóveis daqueles tempos quase sempre está em ruínas que só têm valor nas disputas de herança. Este é um ponto doloroso, saber que seus amigos da juventude, que enchiam aquilo de vida, hoje brigam entre si por caraminguás deixados pelos pais. Não raro, estabelecendo inimizades consanguíneas sem volta.
Também é doloroso, ao reencontrar muitas dessas pessoas que eram íntimas, perceber que as marcas da vida as transformaram em completos desconhecidos. Fica no ar uma sensação ruim de que quase tudo está morto e enterrado.
Talvez a repetição dessa situação tenha originado a afirmação tão recorrente de que os amigos verdadeiros são contados, quando muito, nos dedos de uma mão. E esses poucos quase sempre são os que ainda guardam os sinais daquele pedaço doce da vida. A sabedoria das redes sociais, embora nem sempre seja inteligente para atribuir as autorias, andou espalhando dia destes “O velho amigo é um guardião de memórias de partes fascinantes e valiosas de nós mesmos de que precisamos, mas estamos sempre correndo o risco de esquecer”.
O Carnaval desfigurado do homem mais baixo parece restar da falta dos atores que ele sequer percebeu que desistiram da comédia. Os que sobraram perderam ou mataram os velhos motivos da alegria. Até a música teve os versos trocados por grosserias e pornografia gratuita. Não dá mais para sequer montar o jogo das colombinas, pierrôs e arlequins. A vulgaridade reinante retirou o contexto.
Depois do cafezinho “de lei” tomei o rumo da saída. Um casal terminava o almoço em garfadas rápidas numa mesa ao fundo. Estavam inseridos naquele tempo, ocupados com o que faltava fazer no dia. Eram jovens, talvez ainda nem soubessem que é a correria cotidiana quem envelhece a vida.
Caminhei pela calçada, o arvoredo da rua garantia sombra de sobra até o meu compromisso ali perto. O vento venceu, o abafado refrescou, o Sol apenas vazava pelas brechas das folhas formando um bordado de movimentos sobre o chão. Se ainda fosse tempo de crianças despreocupadas na rua, talvez até pudessem montar o jogo da amarelinha nas réstias – havia pedrinhas espalhadas pelo canteiro central e ao longo do meio-fio.
Pensei no homem mais baixo. Quando começa a ficar difícil pisar o presente, quando parece que a saída é insistir num passado em que resta pouca gente presente, talvez seja a hora de entender que está chegando a hora da sua geração. Ainda mais quando amigos não param de “cair fora”, alguns até sem a delicadeza de avisar. Não cabe pânico, pode não ser hoje nem amanhã. Talvez até reste muito tempo pela frente. Talvez seja melhor olhar o que está ao redor e desfrutar.
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural
Ouça aqui
Cadê meu Carnaval https://www.youtube.com/watch?v=STftG06UP5Q&t=2s
Paulista https://open.spotify.com/track/2JzWwWWKxcR12Ed9AJqJWY?si=92cb26f9e7db4649