Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Amor que fica

Skitterphoto/Pixabay

Amor que fica

  • Hayton Rocha

Era comum, antigamente, a pré-estreia de filmes nas salas de cinema do interior. Algumas personalidades eram convidadas a pagar um ingresso especial para, em primeira mão, assistir aos filmes que entrariam em cartaz nas semanas seguintes.

Meu pai insistiu para que minha mãe fosse com ele à pré-estreia de Love Story, que se tornaria um dos maiores clássicos de bilheteria de todos os tempos. O filme narra o drama de um estudante de direito que se apaixona por uma estudante de música. Logo depois de casados – contra a vontade da poderosa família dele –, ela descobre que não consegue engravidar e que sofre de uma doença grave, irreversível.

Minha mãe, cansada da faina diária envolvendo nove crias, no escurinho do cinema não viu nem a abertura das cortinas. Acordou com o choro convulsivo de uma moça a seu lado:

– O que foi, filha, tá passando mal?

– Que tristeza… – soluçava a moça.

Esses dramas não eram corriqueiros na União dos Palmares – berço de Jorge de Lima, o príncipe dos poetas, autor de Poemas Negros – onde morei no final dos anos 1960, dos 10 aos 12 anos de idade. Mas havia outras tragédias.

Lá, por exemplo, não tinha água potável, encanada. Duas vezes por semana, seu Jorge, um simpático cafuzo, parrudo e maneta – mutilou-se, ainda criança, na colheita de cana-de-açúcar – vendia água da cacimba de um sítio que arrendara. Também plantava verduras, raízes e criava galos de briga para apostas em rinhas tornadas clandestinas por Jânio Quadros.

Certa vez, perguntei se poderia acompanhá-lo até a cacimba onde abasteceria suas latas para suprir uma casa próxima da minha. Não só permitiu como me ensinou a segurar firme na cangalha para não cair.

Montado numa velha burra pelo de rato, chamada Mimosa, eu me sentia em completo êxtase, o próprio Django dos faroestes das matinês do Cine Imperatriz.

Seu Jorge também fornecia água destinada a outros usos domésticos, imprópria para consumo humano. Coletava-a no rio Mundaú, cujas águas serviam a lavadeiras, pescadores e vendedores ambulantes como ele. E me deixava vê-lo trabalhando.

Em pouco tempo, combinei com sitiantes das redondezas, ao lado de outros moleques, um preço justo para banhar cavalos e éguas: o direito de, antes do banho, suar cada animal em meia hora de galope no osso (sem selas nem estribos), tendo por cabresto apenas um laço de corda no focinho.

De tanto levar os bichos pro rio, um dia arrisquei mergulhar mais profundo, voltar à tona e bater braços e pernas até a margem, vencendo o medo de ser engolido pela correnteza ou pelos redemoinhos.

Se não fosse seu Jorge, aprender a montar e a nadar teriam sido bem mais difíceis para mim.

Eu já não era de pescar ou caçar, como alguns amigos de rua. Tinha o hábito perverso de acertar calangos e lagartixas, aprimorando a pontaria com uma peteca (estilingue, atiradeira, balinheira, baladeira, badoque ou bodoque, noutros lugares fora de Alagoas). A ciência explica como crianças podem ser tão ou mais cruéis do que adultos.

Desisti do ofício de exterminador de viventes quando, no beco do Coité, matei uma lavandeira (ou lavadeira-mascarada, noivinha), espécie de pássaro dócil que vive junto a rios e lagoas e vem com ingênua frequência ao chão em busca de comida.

Pitôta, uma cabocla esguia e risonha que ajudava minha mãe, presenciou a crueldade e foi implacável comigo. Chorei litros ao ouvi-la dizer que “a bichinha estava lavando a roupa de Nosso Senhor”.

Tangido pelo remorso, quebrei gaiolas e alçapão com que pegava canário, galo-de-campina e papa-capim nos sítios que havia à margem da estrada que dava pro Mundaú.

Pitôta era mãe solteira. Como se dizia, perdeu a inocência com Lamparina (a cara do cantor Ataulfo Alves!), músico e militar do Exército Brasileiro que, todo ano, preparava a banda do Ginásio Santa Maria Madalena para o desfile de 16 de setembro, celebrando a emancipação política de Alagoas da Capitania de Pernambuco.

Ele era casado. Nunca quis nada além de meia hora nos braços da mulher que me ensinaria, mais tarde, as primeiras noções de compaixão, de respeito ao meio ambiente.

Contei a seu Jorge da reprimenda de Pitôta. No quintal lá de casa, das cinco às seis da manhã, dia sim, dia não, ele bombeava água da cisterna para a caixa de distribuição que ficava sobre a laje. “Ela está certa!”, me disse.

Perguntei por perguntar se ele conseguiria levantar 30 kg com o braço decepado. Ao perceber que Pitôta já coava o café, fingindo não ouvir nossa conversa, gabou-se: “Levanto até com a cabeça da Mimosa”.

Na hora, achei que se referia ao pescoço da velha burra pelo de rato. Enquanto isso, Pitôta se contorcia de tanto rir, aparentemente com conhecimento de causa.

Hoje, penso que cochilei, perdi parte do filme, feito minha mãe na pré-estreia de Love Story, no Cine Imperatriz. Havia algo no ar além dos gaviões fazendo carreira.

Vai ver começou ali, ao pé da serra da Barriga, berço do Quilombo dos Palmares, outra mimosa história de amor – o amor que fica! – entre duas figuras inesquecíveis para mim.

*Hayton Rocha, escritor e blogueiro

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