Por Heraldo Palmeira
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23 de novembro de 2024

IA x humanos

Gerd Altmann/Pixabay

IA x humanos

  • Heraldo Palmeira

A Inteligência Artificial (IA) voltou a ocupar grande espaço de interesse com o lançamento do ChatGPT. Estamos vivenciando um daqueles momentos de impacto tecnológico, embora as expectativas possam estar superdimensionadas. É normal que isso aconteça quando nos deparamos com uma novidade de alcance mundial como esta. Há uma corrida na direção da engenhoca e surgem “especialistas” realçando atributos que não testaram e virtudes que nem sempre existem ou funcionam na extensão propagandeada. É do jogo, liderar negócios de alcance global envolve muito dinheiro e interesses gigantescos.

A literatura e os filmes dedicados à ficção científica nos fizeram acreditar em poderes quase sobrenaturais de tecnologias, equipamentos e criaturas que podem estar na Terra ou fora dela. Desde Metropolis, filme do cineasta austríaco Fritz Lang lançado em 1927, essa fantasia nos encanta e amedronta.

Em Metropolis, o mundo dos trabalhadores é subterrâneo – um lugar de opressão, onde eles vivem na miséria, explorados por máquinas. O capitalista que comanda tudo vive nos jardins paradisíacos da superfície. Ele encomenda a seu cientista louco um robô com cara humana, que deve se infiltrar no mundo da população pobre para lhe garantir ainda mais controle.

Ao longo do tempo, outras obras emblemáticas causaram grande impacto levando o homem a passear no espaço e a enfrentar criaturas, máquinas e sistemas tecnológicos poderosos e hostis. A lista é longa, mas basta lembrar de Perdidos no Espaço, 2001: Uma Odisseia no Espaço, Guerra nas Estrelas, Contatos Imediatos, Alien, O Exterminador do Futuro, De Volta para o Futuro, Blade Runner, Matrix… Sem contar a crença de que os EUA têm registros secretos de contatos imediatos com ETs.

Desde o fim de 2022, a Inteligência Artificial (IA) voltou à ordem do dia com o lançamento do ChatGPT. Como não poderia ser diferente, as especulações inundaram as redes sociais criando “verdades”. A base de tudo: achismos. É compreensível, pois estamos vivendo tempos em que a maioria das pessoas não avança na leitura das notícias – o resumo das manchetes parece suficiente –, não compreende os assuntos e, mesmo assim, sai disseminando informações sem se dar ao trabalho de filtrar toneladas de bobagens.

Com o ChatGPT não foi diferente. Primeiro, pouca gente se deu conta de que esse é apenas mais um produto que vai disputar mercado com diversos outros bastante similares. Como está amparado por um grande suporte financeiro de nomes importantes do mundo tecnológico, saiu na frente ao pautar a mídia internacional e ganhou espaço público. Afinal, está numa corrida pela liderança mundial do mercado dos assistentes virtuais.

O ChatGPT é apenas mais um dos inúmeros sistemas de conversa existentes. Embora represente um avanço considerável no ambiente de IA, “ainda estamos longe de dispor de qualquer tecnologia capaz de entender e aprender qualquer tarefa que um humano pode fazer”, assegura o pesquisador brasileiro Bruno Alano, que fez parte do grupo de pesquisas da OpenAI – empresa criadora do sistema – nos tempos em que ainda era um laboratório de estudos sobre IA. E foi o resultado desse trabalho inicial que atraiu investimentos bilionários de Elon Musk e Microsoft.

Apesar da desinformação e de todas as especulações, não há sinais de que os seres humanos sejam dispensáveis na atuação e na evolução das IAs. E é bom que seja assim. Não são poucas as vozes que tangenciam a utilidade dessas ferramentas com o papel das antigas calculadoras, obviamente considerando o enorme avanço tecnológico registrado desde então e situando cada uma em seu tempo.

As calculadoras resolveram tarefas manuais, repetitivas e tediosas para que as pessoas pudessem ganhar tempo para se dedicar a itens mais criativos e importantes do processo produtivo. Os sistemas de conversa estão adaptados à realidade atual para desempenhar papel semelhante de suporte, até porque só trabalham com probabilidades e atuam associando palavras e dados que já estão armazenados. A diferença positiva é que estão capacitados a oferecer respostas rápidas e mais elaboradas do que uma operação matemática simples.

É comum as novidades chegarem carregadas de expectativas superdimensionadas e é importante compreender o real alcance do sistema. “Grosso modo, ele busca qual palavra combina mais com aquele contexto, dada aquela sucessão de palavras. Isso é natural dos humanos, a gente segue uma estrutura linguística para se comunicar. Mas gerar ideias inovadoras ou resolver problemas, de fato, eu acho muito difícil que esses modelos façam sem humanos”, esclarece Alano.

Claro que a IA é muito bem-vinda, ainda mais sendo útil para facilitar a vida humana. Mas há ainda um enorme caminho a percorrer, inclusive nas questões éticas, no seu mau uso e no campo legal. Também é preciso ter em mente que, diante de qualquer impasse, dificilmente uma IA será capaz de pensar, discernir e elaborar criativamente qualquer coisa original, autoral. Por ora, isso é atributo exclusivo do espetacular e pouquíssimo explorado cérebro humano.

A recente disseminação de resultados rasteiros dessas ferramentas creditou a IA como capaz de roubar empregos e até assumir carreiras em setores distintos como direito, literatura e música. Chega a ser engraçado uma população que cada vez lê menos tão interessada numa ferramenta em que a palavra é fundamental e, além disso, fazê-la funcionar bem requer habilidade escrita e falada.

Para começo de conversa, mesmo que tivesse forma humana, seria interessantíssimo testemunhar uma IA atuando num tribunal plenamente apta a não emperrar nas incontáveis nuances e sutilezas de qualquer julgamento. Aliás, capacitar uma IA para alcançar os significados de “nuance” e “sutileza” e tê-los de forma integral no repertório “pessoal” parece roçar o campo do quase impossível. E se, por qualquer problema técnico, a carenagem do rosto caísse no chão no meio da argumentação, a credibilidade jurídica estaria mantida diante de um amontoado de peças e fios sem rosto enfiado em terno e gravata? – é de imaginar que o conservadorismo da Justiça não permitiria uma IA sem roupas nos seus recintos.

Tomara que sempre haja alguém capaz de identificar a pobreza de um texto onde dificilmente estarão presentes algumas das características humanas mais básicas, intransferíveis e complexas: história pessoal, vivência, discernimento, emoção, inspiração e estilo. E continue querendo ler bons escritores.

Tomara que outros alguéns sejam incapazes de pagar ingresso para ver uma guitarra suspensa no nada sendo executada por uma IA que sequer consegue agitar a cabeleira ou fazer careta para reforçar os sons extraídos do instrumento sem parecer coisa de máquina. Basta lembrar do vazio quando nos deparamos com aqueles pianos que tocam automaticamente sem pianistas.

Oratória, escrita, música… Construções humanas que trazem um fator infalível: sentimento. Dizem que uma tal de alma também ronda tudo isso. E, last but not least, um negocinho que aprendemos a chamar de talento. Antes de conceder prioridade a tantas coisas virtuais é prudente lembrar que muitos idiomas ainda têm dificuldade de traduzir ou atribuir significado preciso à palavra “saudade”, mesmo sendo sentimento corriqueiro na vida humana. Imagine uma IA “aprendendo” a sentir saudade! Ou sofrendo dores de perdas.

Por ora, não parece indelicado pensar nestes subprodutos rasos da IA como aqueles pintores excelentes que se especializaram em falsificar os grandes mestres para alimentar o mercado negro das artes plásticas. Os traços, mesmo os melhores que consigam produzir, seguirão carecendo de uma coisa exclusiva: assinatura. Algo de caráter personalíssimo e intransferível dos humanos.

Num almoço recente, um amigo perguntou ao avô o que ele achava dessa novidade. Talvez amparado por tudo que já viu na vida, o velho senhor não saiu um milímetro da própria simplicidade: “Antes de inventar de inventar inteligência artificial, o homem devia estudar a fundo a inteligência natural que ganhou de Deus. E parar de inventar de inventar moda!”.

Saiba mais

https://www.uol.com.br/tilt/noticias/redacao/2023/03/09/chatgpt-nao-vai-substituir-humanos-diz-brasileiro-que-atuou-na-openai.htm

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