Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

Desintoxicação digital

Gerd Altmann/Pixabay

Desintoxicação digital

  • Heraldo Palmeira

Hoje, são cada vez menos numerosos os humanos capazes de atirar a primeira pedra da não dependência digital. Nas esquinas mais remotas do planeta há sempre alguém mexendo em alguma bugiganga digital e “precisando” de mais capacidade de processamento, de versões mais modernas dos dispositivos. E ávidas por aqueles diabinhos com carinhas de anjos, que são instalados como se fossem a alma dos equipamentos. A linguagem polida da indústria denomina-os de aplicativos. Esquecem de avisar que foram se tornando indispensáveis, são viciantes e nós é que estamos entregando nossas almas ao diabão da tecnologia.

Só estamos aqui ao redor deste texto porque temos à disposição todas as facilidades desse monstro virtual que entrou em nossas vidas para ficar. Ele é útil em milhões de aspectos cotidianos, algo inegável. A maioria das coisas que fazemos depende dos dispositivos, sem contar a sensação de insegurança se nos desconectarmos. Diante de alguma dificuldade de sinal de internet, há quem relate a impressão de ser abandonado à própria sorte no deserto ou no mar alto.

Se libertar não é tarefa fácil – a primeira frase deste texto está aí para ser relida e é solidária. Estamos no exato momento em que a Inteligência Artificial (IA) ganhou manchetes ao redor do mundo com o lançamento do ChatGPT – que já chegou desatualizado, sua novíssima versão está desembarcando. Ou seja, o vício recebe incentivos poderosos e constantes, novas drogas chegam todos os dias nos chamando a experiências cada vez mais incríveis.

Na outra ponta, os fabricantes de equipamentos dificultam o reparo deles, ratificando massivamente que comprar um novo é muito mais prático e barato do que consertar, com o plus da atualização tecnológica que já vem embutida nos lançamentos. Só esquecem de avisar que manter-se up to date trocando celulares e similares a cada 2 anos gera um custo ambiental altíssimo. Basta pensar nos materiais utilizados e na energia gasta para produzir tantas maravilhas.

É interessante assistir a filmes com algum personagem firme em ignorar a tecnologia. Quase sempre figuras excêntricas que, na ficção, conseguem ficar de fora do vício global em que nos enfiamos. Aqui mesmo no Giramundo, falamos recentemente da personalidade nova-iorquina Fran Lebowitz, uma espécie de iconoclasta urbana que não usa qualquer meio digital. Nada além de um “antigo” telefone fixo. Escritora e articulista da imprensa, sequer se deu ao luxo das sumidas máquinas de escrever algum dia, sempre escreveu (e escreve) tudo à mão! Sim, há todo um charme embutido nisso, mas a sensação é de que lápis/caneta e papel não conseguem trafegar na velocidade atual.

Mesmo que alguns exemplos inspirem a pensar numa mudança, é difícil se livrar desse padrão de comportamento da hora. Por isso, já virou usual a recomendação de especialistas para que se traga o chavão “preciso de mais espaço” dos relacionamentos amorosos ou amizades sufocantes para o mundo digital, direcionado principalmente ao nosso inseparável celular.

A escritora e jornalista Catherine Price, autora do livro Celular: Como Dar um Tempo, ganhou fama discutindo esses cenários em diversos livros publicados e teve seu “estalo” logo após o nascimento da filha: “Tinha momentos em que ficava acordada até tarde da noite. Tinha uma espécie de experiência extracorpórea, provavelmente por causa da privação de sono. E eu a via olhando para mim e então eu estava olhando para o meu telefone, e isso me devastou”, confessa.

Os campos da saúde e das ciências sociais não param de produzir novidades relacionadas a questões do vício digital. Na verdade, ainda engatinhamos na compreensão do que está por vir em termos de sequelas, inclusive mentais. Há um fator complicador: assim como acontece com as bebidas alcoólicas, cujos excessos são perigosamente desviados do âmbito das doenças para o comportamento social, o vício digital é ainda mais minimizado por sua onipresença consagrada como “indispensável” na vida moderna. Assim, fica fácil transformar utilidade em virtude e dissimular todas as consequências nocivas.

Está mais do que claro para os estudiosos que algo virá como efeito colateral dessa revolução comportamental tão impressionante desde que nos tornamos uma sociedade digital. E que a conta recairá sobre a saúde e o bolso dos viciados: nós.

Propor e esperar que aconteça um rompimento total e definitivo não é algo realista. Tentar, o quanto antes, um desmame possível é razoável e saudável. Claro, aqueles diabinhos todos vão soprar em seus ouvidos até ouvirem você dizer “mas é praticamente impossível”. É mesmo ou há chance para uma reeducação digital? Afinal, a reeducação alimentar é fato e funciona para diminuir os excessos que nos levam à obesidade.

Diversos movimentos tentam animar pessoas a diminuírem a dependência digital. Uma escola de Estrasburgo (França) propôs há alguns anos que as crianças e suas famílias passassem 10 dias longe das telas (televisão, computador, tablete e celular), com resultados positivos surpreendentes ao restabelecer as relações afetivas e até resgatar casamentos (dos pais) à beira da falência – o projeto previa que pais e filhos jantassem juntos todos os dias do curto período da experiência e a retomada da prática de conversar foi fundamental para o sucesso.

Hoje, restaurantes já oferecem descontos na conta de grupos que se disponham a desligar os dispositivos durante os encontros ao redor de suas mesas. Claro, o consumo aumenta, mas os níveis de interação social sobem junto. Também foi designado o Dia Global de Desconexão – período de 24 horas entre os pores do sol de 3 e 4 de março –, que propõe guardar os dispositivos e focar na vida real.

Até que ponto irá essa arrogância de pensar que o mundo vai sair do (nosso) controle se não estivermos conectados acompanhando tudo? Bobagem, o mundo seguirá direitinho seu caminho sem nossa contribuição “imprescindível”, sem aquela opinião que, imaginamos, ninguém mais além de nós pode dar. Talvez esteja faltando a gente cair na real, analisar friamente o quão as pessoas estão interessadas no que temos a dizer. Cuidado, pode ser um choque!

A pandemia nos levou a novos comportamentos embasados no isolamento. Sorte dos que conseguiram aprender a fazer triagens, eliminar excessos dos temas e das listas de contatos. Quem já não ouviu alguém falar que fez algo assim e agora tudo parece melhor? Claro, cancelaram os “imprescindíveis”.

No meio de toda essa verdadeira neurose digital está o lado da questão onde tudo começa: a infância. Os médicos têm orientado pais a respeito da importância do brincar, ocupar os filhos com atividades lúdicas porque elas são fundamentais para a saúde e o desenvolvimento das crianças. Uma contraposição aos dias repletos de telas – desde a mais tenra idade – e compromissos extracurriculares estressantes. Não tem sido incomum casas onde voltaram a existir caixas de objetos para que os pequenos criem suas próprias brincadeiras.

Pelo visto, é bom tirar de moda, enquanto dá tempo, aquela admiração equivocada “essas crianças de hoje já nascem conectadas!”. Tem muito mais cara de desculpa esfarrapada de adultos incapazes de dar conta dos filhos que resolveram conceber.

Saiba mais

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