Dieu vath Mayoma/Pixabay
Segue o baile
- Hayton Rocha
Meu filho, hoje quarentão, outro dia compartilhou comigo a nova grade de aulas complementares de meus netos, ambos no 1º ano do ensino médio de um colégio no bairro do Tatuapé, em São Paulo.
Não sou do ramo, longe disso, mas fiquei animado. E não só por conta da titulação rebuscada das cinco trilhas de aprendizagem no contraturno escolar de segunda a quinta-feira. Veja: Gestão de negócios e consumo sustentável; Paz, justiça e instituições eficazes; Saúde e bem-estar; Ação contra mudança global do clima e Escola de negócios: crescimento econômico global.
Há quatro décadas, já membro, a contragosto, da “elite” pagante de mensalidades escolares, me indignava com a excessiva mercantilização da educação. No começo de cada ano letivo, cobrava-se dos pais de alunos desde rolos de papel higiênico até caixa de fósforos, passando por barbantes, bolas de isopor, canudos, garrafas, pregos, velas etc., numa lista interminável de materiais “escolares”.
Ficava intrigado: se todos os alunos cumprissem aquela demanda, a escola teria de possuir um depósito bem superior à biblioteca, e precisaria de uns três empregados só para classificar, organizar e armazenar o material. Parece que não era o caso.
Cansei de me chatear também de ver meus filhos mexendo com as mesmas coisas que foram exigidas de mim 20 e poucos anos antes, como ler soletrando sílabas ou somar, diminuir, multiplicar e dividir na ponta do lápis, como se as calculadoras que surgiam fossem bugigangas dispensáveis.
Como acontecera comigo, deles ainda seria cobrado decorar que “atmosfera é a camada de ar que envolve a Terra” ou que “duas ou mais retas paralelas só se encontram no infinito”. E, heresia das heresias, que “todo número diferente de zero elevado a zero é igual a um”. Não sei o que isso mudou minha vida ou a deles, salvo pensar na triste solidão das retas.
Na época, sonhava que a escola fosse além de noções de disciplinas clássicas como ciências, geografia, história, língua portuguesa e matemática. Queria tê-la ao meu lado auxiliando na formação humanística de meus filhos.
Queria que me ajudasse a ensiná-los a se sentar ao lado das pessoas que se sentiam vulneráveis, perdidas. A encorajar almas mais fragilizadas. A não se arrepender do bem que fizeram. A não guardar mágoas e ressentimentos, esse saco de pedras, mais ou menos pesado, que muita gente carrega nas costas.
Poderia ter recebido boletins de avaliação de meus filhos em alguns “deveres de casa” como: compaixão, generosidade, indignação, inveja, resiliência, solidariedade etc. Quem sabe, daria tempo retocar projetos de gente em andamento.
Só mais tarde me dei conta de que não se desenha por completo os filhos. Se muito, rascunha-se os traços básicos. Eles mesmos fazem a arte-final a partir de suas conexões com o mundo.
Durante a pandemia, não tive febre, dor de cabeça, tosse seca ou qualquer outro sintoma da doença, mas tive meu delírio. Imaginei que, se sobrevivêssemos como nação à catástrofe sanitária, todo brasileiro com idade superior a 15 anos um dia estaria alfabetizado.
No auge do meu delírio, vi Paulo Freire explicando melhor às novas gerações uma de suas conclusões: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
Aprender a identificar notícias falsas e desinformação era tão importante quanto a matemática. Tanto que constava do currículo escolar a disciplina obrigatória “Alfabetização midiática”.
Exigia-se da molecada que editasse seus próprios vídeos, como forma de perceber como é fácil manipular informações. Em seguida, discutia-se como e quando certos textos foram escritos e quais eram os objetivos reais ou surreais.
Desde cedo, já se aprenderia em sala de aula como assimilar notícias, enxergando a diferença entre o que veria nos aplicativos de mensagens e o que estaria nos meios de informação. Não teria como saber o que são fake news se não soubesse distinguir jornalismo de mídias sociais.
Aprenderia também que é bem menor o esforço do processo cognitivo (percepção, pensamento, linguagem, memória etc.) nas mídias eletrônicas, o que torna a meninada mais vulnerável às notícias falsas ou incapaz de identificar mentiras disfarçadas de verdades.
Mesmo a criançada tendo crescido em paralelo à evolução das mídias sociais, isso não significa que saiba como identificar e se proteger da desinformação. Aliás, a fase de ebulição hormonal é justamente quando se está mais propenso a acreditar em meias verdades (ou mentiras completas!).
Repito, não sou do ramo, longe disso, mas fiquei animado com a grade de aulas complementares de meus netos. É mais um passo no tanto de chão que os brasileiros têm pela frente para construir uma nação decente, digna, digamos assim, de nossos bisnetos.
E segue o baile. Que essa molecada que está na pista acerte o passo e entre na dança com tudo. Senão dançaremos todos.
*Hayton Rocha, escritor e blogueiro
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