Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA O administrador de vaidades 3

Fernanda Suzuki Maquiagem/Pixabay

O ADMINISTRADOR DE VAIDADES 3: Melhor rir

  • Heraldo Palmeira

Vaidade, inimiga mortal da humildade. Talvez seja filha legítima da incapacidade de andar com os pés no chão da realidade. Basta uma rápida olhada em três dos nossos melhores dicionários e o tiro é certeiro:

Houaiss “Qualidade do que é vão, vazio, firmado sobre aparência ilusória. 2) Valorização que se atribui à própria aparência, ou quaisquer outras qualidades físicas ou intelectuais, fundamentada no desejo de que tais qualidades sejam reconhecidas ou admiradas pelos outros. 3) Avaliação muito lisonjeira que alguém tem de si mesmo; fatuidade, imodéstia, presunção, vanidade. 4) Coisa insignificante, futilidade; vanidade”.

Michaelis “Qualidade ou característica do que é vão. 2) Apreciação exagerada dos próprios méritos; jactância, pomada, presunção. 3) Ostentação das próprias qualidades físicas ou intelectuais, para ter a admiração de outras pessoas. 4) Qualquer coisa que denote futilidade”.

Caldas Aulete “Valorização exagerada dos próprios atributos; presunção, imodéstia. 2) Preocupação com a própria aparência, por desejo de ser admirado”.

A vaidade está quase sempre embalada com ingredientes de mentira, engano e fraude. Parece causar prazer doentio a quem se deixa dominar por ela e sequer permite que a vítima perceba o ridículo que carrega como companhia quase genética.

A ânsia por chamar atenção pode ser consequência do mundo ao redor ou da incapacidade de enfrentá-lo de forma equilibrada. Talvez seja uma patologia gerada pela necessidade de disputar espaço nesse ambiente lotado de pessoas indo e vindo em todas as direções, onde já existe tudo em todos os lugares o tempo inteiro.

Como é que, mesmo assim, há quem insista no desejo de ser único ou exclusivo em algum lugar e por qualquer motivo? A originalidade é artigo cada vez mais raro, quase tudo que aparece é inspirado ou simplesmente copiado de algo que já existe ou existiu. Inclusive os comportamentos berrantes de pessoas que adoeceram pela tentativa de sobressair a qualquer custo.

A vaidade é um abismo insistente, não tem pruridos. Administrá-la oscila entre ignorar-lhe ou chutar seu traseiro. É um pecado sempre enfeitado pelo constrangimento que espalha. Pode irritar, envergonhar ou virar motivo de chacota – esta é a melhor parte, a chance de rir dos exageros e dos próprios vaidosos.

O envelhecimento parece ser um dos maiores inimigos da vaidade. Basta ver o que as pessoas estão fazendo para disfarçar o passar do tempo, muitas vezes assumindo imagens monstruosas acreditando que estão fazendo o caminho inverso, se aproximando da juventude. É como se até os espelhos tivessem sucumbido à indústria das narrativas, aderido às fake news.

Muitos consultórios que tratam de estética viraram fontes de bizarrices ditas e praticadas. Em nome da vaidade, cada vez mais pessoas entregam seus corpos aos tais “procedimentos estéticos”, boa parte delas guiando essa decisão por limitações financeiras e entrando em qualquer birosca onde a palavra “harmonização” esteja no letreiro da fachada. Sequer se dão ao trabalho de encontrar profissionais médicos realmente habilitados, inclusive legalmente, a realizar esse tipo de intervenção – e que também costumam tratar em seus consultórios e clínicas especializadas as sequelas deixadas pelos charlatães. E os tribunais estão lotados de causas de reparação solicitadas por quem negligenciou a integridade física e moral, e até a própria vida em busca de uma beleza que não vai surgir por encanto.

Não é incomum a verdadeira aberração de “profissionais” que infestam salas de cirurgias com equipes de TV, para gravar suas atividades práticas com que inundarão as redes sociais como propaganda e autoelogio. Sim, entram em cena num ambiente que deveria ser controlado e asséptico diretores, produtores, cinegrafistas, iluminadores, microfonistas e assistentes. Quem está sob anestesia – por um tempo maior do que o necessário para que os “doutores” possam se exibir pelas telinhas – tem suas partes íntimas expostas à curiosidade de gente que ignora solenemente “palavrões” como sigilo médico-paciente e ética. Aliás, essa praga da exposição midiática na saúde começou com o mesmo tipo de invasão televisiva das salas de parto, inicialmente pelas câmeras familiares, e agora chegou ao cúmulo de alguns hospitais já oferecerem o “serviço” por equipes próprias, que garante um tilintar extra no caixa.

Difícil separar a vaidade da tolice, o vaidoso do tolo. São siameses. Impossível compreender por que tanta gente mantém comportamentos constrangedores e se atira sem pudor em situações deprimentes. Até porque chegará o dia em que nada disso fará qualquer diferença – senilidade e agruras da velhice não são fantasias, terminam alcançando todos que não morrem cedo e não há vaidade que resolva.

No meio do caminho tem aquela figura que não pode ver alguém postar uma boa história num grupo de rede social, que logo se apressa a apresentar alguma parecida. Ainda mais se a postagem original causar repercussão positiva. Nem precisa doutorado em Sorbonne para decifrar a manifestação invejosa como mecanismo do tipo “eu também tenho história” para proteger o status ilusório de “maioral”.

Outro ponto horroroso da vaidade se dá quando a pessoa desanda a listar momentos em que, acredita, esteve em relevo. Muitos sequer enxergam que jamais tiveram relevância pessoal, apenas ocuparam cargos onde a bajulação faz parte da liturgia de quem está degraus abaixo ou tem interesses ao redor. E vale tudo nesse vale-tudo de exposição: encontros furtivos e absolutamente ocasionais até mesmo com alguma subcelebridade – se for celebridade vira êxtase –, prêmios, troféus, medalhas e certificados irrelevantes para o resto do mundo, eventos de que participou sem qualquer destaque… Claro, o passar do tempo e o desconhecimento alheio permitem ao vaidoso incrementar de significância unilateral qualquer coisa insignificante. Até porque as redes sociais estão aí para isso mesmo. Aliás, falar é outra “virtude” dessa gente incapaz de ouvir e sempre a postos para contar vantagens maçantes, muitas vezes a mesma mil vezes repetida.

Tentar mostrar-se importante apresentando fotos e vídeos ao lado de figuras públicas é um traço onipresente do vaidoso, mesmo que não seja segredo a condição em que a maioria dessas imagens é registrada: o famoso está absolutamente entediado com aquele assédio, embora o sorrisão blasé engane bem.

Tudo isso deve conter algum tom de doença. E como toda patologia tem agravantes, há a mania horrorosa de aproveitar o anúncio da morte de alguém para postar alguma cena nas redes sociais – os artistas são grandes alvos. Nelas, o vaidoso aparece ao lado da pessoa agora falecida e não importa se a imagem foi feita há décadas, o importante é “causar”! Há casos extremos em que o sem-noção chega a “antecipar a morte” de quem está nas últimas, apenas para saciar a própria ansiedade de desfrutar da vaidade de “saber mais” a respeito do que o resto. Também vale demonstrar uma amizade que o morto, em vida, nunca ouviu falar.

O enredo de Advogado do Diabo (1997) contém um retrato precioso do fenômeno da vaidade. O jovem e excelente advogado do interior Kevin Lomax (Keanu Reeves), que havia trabalhado com grande brilho em Nova York, fica enfeitiçado pela possibilidade de voltar ao topo. A proposta é feita por John Milton, o dono do escritório (o Diabo em pessoa, vivido por Al Pacino), ele mesmo alguém que se acredita mais coerente que Deus e se declara o último dos humanistas. O rapaz esquece o alto preço que pagou pelo sucesso na empresa e sequer se intimida diante da revelação de que é filho daquele homem. Deliciado com o efeito da vaidade sobre Lomax, o Diabo festeja: “A vaidade é definitivamente o meu pecado favorito! Eu estou no auge, é a minha vez de triunfar”.

Longe dos planos metafísicos, claro que o vaidoso, certo de que está abafando, sempre faz a festa de alguém. Não há tolo sem esperto. Qual o princípio do negócio da publicidade? Provocar o consumo a partir da vaidade do ter. Afinal, os publicitários sabem que narcisismo é uma espécie de narcótico natural. Tanto que o poeta popular já decretou belamente que “Narciso acha feio o que não é espelho”. Danado é que, quase sempre, abrir a carteira para se exibir é convite para a área VIP da passarela onde desfila a falta de noção.

Administrar a vaidade? Ignorar suas manifestações? Tudo pode ficar cansativo. É bem mais divertido rir dela e dos vaidosos. E se houver chance de chutar traseiros… Como dizia Millôr Fernandes, gênio da raça, “Como são admiráveis as pessoas que nós não conhecemos bem”.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

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