Por Heraldo Palmeira
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24 de novembro de 2024

Agora falta você

Montagem/Viver com Música

Agora falta você

  • Heraldo Palmeira

Quando certas pessoas se encantam nesse mistério pós-vida, deixam para trás um rastro de saudade, daquela com traços familiares. Os grandes artistas tendem a fazer assim, afinal passaram anos a fio enfeitando a vida alheia. É justo que estabeleçam esse laço esquisito que constrói intimidade entre estranhos distantes.

Rita Lee Jones de Carvalho viveu uma vida intensa e em plena sintonia… com ela mesma! E que delícia foi cada minuto em que a gente entrou naquela sintonia que nunca tinha problema na antena. Claro que ela foi cedo, deveria durar uns trocentos anos, roçar a eternidade, mas a realidade é o que temos para hoje e agora é tempo de lembrar muito, durante o todo sempre de cada um.

Tive a sorte de ser da geração que assistiu a tudo dela. A desfeita dos dois Mutantes enciumados porque ela era muito mais foda do que eles juntos, sobrava do palco a cântaros com a autoridade de quem não nasceu para viver a trio. A sociedade canalhinha engrupida pelos militares ocos transformando-a em imagem de satã. Sua prisão grávida – haja exclamações!!! – para ser crucificada como modelo de “mau exemplo” para a juventude. A perseguição da famigerada censura, obviamente incompetente para conter a avalanche criativa da menina danada de mil faces. A mesma sociedade canalhinha já percebida da cagada fardada transformando-a em namoradinha do Brasil, num lança-perfume alucinante e arrasador que Rodoro nenhum passou nem perto. A maturidade que só confirmou que sempre foi a senhora de tudo, a padroeira que nos livrou da caretice com sua língua afiada, ferina e precisa. No fim, ela sempre dava um checkup em qualquer situação, amparada por seu batalhão de fadas, duendes e bruxas amarelas. Afinal, era a mandachuva do departamento de criação, aquela que aprendeu a ler no rosto o que não dava para dizer, e, na alma, o que não dava para esconder.

Ela se foi do jeito cool que sempre exibiu em sua vida pessoal. E com a clarividência de alguém que nunca se pautou em agradar por agradar, nos deixou um recado incômodo e ácido: nossa turma está indo embora porque agora nós somos os avós que encarnaram a melhor juventude do século 20. Sim, senhoras e senhores, a Miss Brasil 2000 nos avisou que fizemos diferença, é fato, mas ficamos velhos.

Ainda bem que tivemos titia Rita nos ensinando em letra, música, humor e atitude a morrer menos todos os dias, enquanto não chega o dia certo de morrer. E morremos menos porque ela estava no apito de chamar lambu quando fomos inventivos, afrontamos costumes e norminhas, governinhos metidos a besta, moralismo e moralistas brochantes, e todos os caretas e chatinhos que engarrafaram as trilhas e estradas.

Estamos tristes pois gostaríamos que ela morresse depois de nós, para que não rolasse esta péssima sensação de que ficamos sozinhos, sem o manto protetor da arte e da coragem que a vimos desfilar ao longo de quase 60 anos de uma carreira ímpar.

O jornalista Moisés Mendes não deixou pedra sobre pedra para explicar a nossa desconstrução sem Rita Lee: “Morreu a ovelha negra, a mais abusada, a mais negra, a mais alegre, inquieta e barulhenta, a nossa irmã boa de briga, a deusa pagã do Butantã. Deusas também morrem na velhice”.

O que fazer? Ouvir e ouvir e ouvir todos os discos que ela lapidou para nós. E perceber que sua obra foi uma viagem sideral feita em cada época num foguete a pular adiante de tudo e todos. Rita Lee arrombou todas as festas e, como ela mesma dizia, “Ah, são coisas da vida. E a gente se olha e não sabe se vai ou fica”.

Ouça Rita aqui

https://open.spotify.com/playlist/066Rz2LDOpwpAWHLZLQ8pL?si=WdJkV8nKQmeRArgahfwPcg

https://deezer.page.link/5eVu4HRaRDHzqiz6A

*Playlist organizada por Eduardo Nascimento, colaborador do Giramundo.

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