Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

A cruzada de Vini Jr.

Melk Hagelslag/Pixabay

A cruzada de Vini Jr.

  • Sylvio Maestrelli

Hoje, o futebolista brasileiro mais conhecido no mundo é Vinicius Junior. Com todos os méritos, após a sua própria explosão e no momento da visível decadência de Neymar. Com apenas 22 anos, já é uma realidade, multicampeão pelo Real Madrid, tendo conquistado como protagonista do time todos os títulos possíveis por um clube (nacionais, europeus e mundial). Mal aproveitado por Tite, mesmo assim obteve relativo destaque na Copa do Catar. Só que, na Europa, há um consenso: é praticamente impossível marcá-lo, tal o repertório de habilidades que desfila! Os críticos mais exigentes afirmam que chegar a melhor do mundo é questão de tempo.

No entanto, como os bandidos sempre estão na frente dos mocinhos, foi descoberta uma nova maneira de marcar o endiabrado menino de São Gonçalo (RJ), cria do Flamengo: a injúria racial. E, de forma bizarra e desrespeitosa com sua própria história no futebol, a Espanha protagonizou, nas últimas rodadas de seu campeonato nacional, cenas lamentáveis. No jogo contra o desesperado Valência, que tentava fugir da zona do rebaixamento, mais uma vez o atleta foi xingado de macaco por parte da torcida – dentro e fora de campo – e ainda foi expulso ao se desvencilhar de um golpe conhecido por mata leão (que durou 8 segundos e foi vergonhosamente editado pelo VAR), acertando o rosto do agressor. O motivo alegado para tal golpe teria sido o gesto em “V” dos dedos das mãos feito por Vinicius Junior, compreendido pelos adversários como alusão à segunda divisão que o time do Valencia estava beirando. Ou seja, uma provocação comum ao futebol está sendo usada como desculpa para um crime abominável, o racismo.

Como essa situação é recorrente – foi o décimo episódio em que ele sofreu atitudes racistas –, Vinicius Junior, que hoje é um dos maiores dribladores do mundo da bola, repetiu a atitude corajosa de não se omitir, ao contrário do que vários deuses negros do futebol fazem ou fizeram. Basta lembrar do que disse a respeito dos fatos e da omissão da poderosa La Liga, a organizadora do campeonato espanhol: “Não foi a primeira vez, nem a segunda e nem a terceira. O racismo é o normal na La Liga. A competição acha normal, a Federação também e os adversários incentivam. Lamento muito. O campeonato que já foi de Ronaldinho, Ronaldo, Cristiano e Messi, hoje é dos racistas. Uma nação linda, que me acolheu e que amo, mas que aceitou exportar a imagem para o mundo de um país racista. Lamento pelos espanhóis que não concordam, mas, hoje, no Brasil, a Espanha é conhecida como um país de racistas. E, infelizmente, por tudo o que acontece a cada semana, não tenho como defender. Eu concordo. Mas eu sou forte e vou até o fim contra os racistas. Mesmo que longe daqui”.

Ele ameaçou e peitou dirigentes, organizadores, até mesmo seu clube – o poderoso Real Madrid, cujo presidente é amigo dos cartolas de La Liga. Enquanto isso, claro, todos tentam passar panos quentes na intenção de que tudo caia no esquecimento e acabe em pizza (ou paella valenciana, se preferirem). Enquanto os gigantes da Inglaterra esperam ansiosamente que ele não renove seu contrato…

Essa aberração racista não é novidade. Pelé e os outros craques negros santistas muitas vezes se queixaram aos quatro ventos dos xingamentos racistas recebidos, principalmente na Libertadores, em jogos na Argentina e Uruguai, quando derrotavam sem piedade os adversários Daniel Alves chegou a descascar e comer uma banana atirada em sua direção, quando ainda atuava no Barcelona, afirmando que a situação era recorrente e tinha vontade de rir. Hulk mandava beijos em direção à arquibancada, quando era ofendido pelos ultras na Rússia. Quem mais chegou longe foi Grafite, hoje comentarista, que, quando atuava pelo São Paulo, num jogo da Libertadores contra o argentino Quilmes, no Morumbi, denunciou o jogador Desábato por racismo, o que levou à prisão do gringo por dois dias. E não podemos nos esquecer dos diversos episódios que ocorreram dentro do futebol brasileiro, como aqueles que envolveram o goleiro Aranha (Santos), Arouca (Palmeiras) e muitos outros. Sem contar os casos de homofobia.  E ainda temos a misoginia contra mulheres da arbitragem para completar a lista vergonhosa.

O caso de Vinicius Junior é significativo porque nenhum dos demais relacionados a futebolistas negros teve a repercussão e a dimensão de agora. Parte da imprensa espanhola, alguns colegas de time e o técnico merengue Carlo Ancelotti – que vinha mantendo uma posição dúbia nos nove casos anteriores – finalmente saíram em sua defesa. Mas o desfecho da questão é imprevisível. Haverá punição para alguém, neste momento em que o mundo todo clama por igualdade racial? A Federação Espanhola, a UEFA, a FIFA farão algo? E os governos? E as entidades não governamentais? Apenas sete prisões no meio de uma massa de torcedores que urravam ofensas ao jogador, com alguns já liberados pela polícia, não parece a resposta adequada. Não dá para saber e confiar, por isso permanece o ceticismo..

É uma luta difícil, como já mostrou o boxeador norte-americano Cassius Marcellus Clay Jr. – considerado o maior pugilista de todos os tempos e, para muitos, o maior nome do esporte. Consagrado com a medalha de ouro nas Olimpíadas de Roma (1960), não tirava o troféu do pescoço nem para dormir. Revoltado por ter atendimento negado em restaurante da sua cidade por questões raciais, atirou a medalha nas profundezas do rio Ohio. Nascia ali o militante dos direitos dos negros e ativista antiguerra, que brilharia nos ringues pelos próximos 20 anos, convertido ao islamismo mudaria o próprio nome para Muhammad Ali e viraria lenda.

Vinicius Junior iniciou uma verdadeira cruzada que começa a incomodar a um sistema que não deseja enfrentar o caso da forma devida. Numa garimpagem rápida no noticiário, é possível ver que a imprensa espanhola condena a interdição do estádio Mestalla (do Valência, palco das cenas que correram o mundo). O ex-jogador Xavi, atual treinador do Barcelona, repudia a revisão da expulsão de Vinicius Junior do jogo. Um comentarista esportivo declarou que ninguém gosta do brasileiro na Espanha – algo que pode servir de alerta para o francês Mbappé em relação ao seu sonho de jogar no Real Madrid, pois fica claro que o problema tem raiz também no talento superlativo e na alegria, já que existem dezenas de atletas negros atuando em todos os times espanhóis sem enfrentar nada parecido, ao menos da forma escancarada como ocorre contra Vini Jr.

Será uma jornada complexa e ele deve estar consciente de que virou alvo constante dessa gente.. A começar pelo seu lado profissional. Ao manifestar interesse em deixar a Espanha, já ouviu o rugido do Real Madrid: não abrirá mão da multa rescisória de € 1 bilhão (R$ 5,35 bilhões), algo só alcançável para os árabes da Premier League. Também não se tem notícia, até aqui, de qualquer gesto de apoio incondicional da própria torcida merengue.

*SYLVIO MAESTRELLI, educador e apaixonado por futebol

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