Sergio Serjão/Pixabay
Que passa, Flamengo?
- Heraldo Palmeira
Um time de massa movimenta emoções intensas que vivem à flor da pele. No Brasil, Flamengo e Corinthians conhecem isso de perto, são as maiores torcidas e não têm parelha no mundo. Qualquer movimento ou resultado se traduz em repercussões gigantescas. E não tem como ser diferente. No caso do rubro-negro carioca, os estimados 40 milhões de torcedores compõem o maior número de adeptos para um mesmo clube de futebol no planeta.
Depois de temporadas medianas, o ano de 2019 virou tudo de ponta-cabeça na Gávea, no melhor sentido: a fase comandada pelo técnico português Jorge Jesus incendiou a Magnética e o futebol brasileiro com uma verdadeira revolução técnica, onde o Flamengo ganhou tudo que passou pela frente. Um período inesquecível, comparado à fabulosa era Zico, onde o time também ganhou tudo, inclusive o inédito e até aqui único Mundial de Clubes rubro-negro.
A fase fantástica durou pouco mais de um ano e o time ganhou mais títulos do que perdeu jogos, 5 conquistas e 4 derrotas (Bahia, Emelec, Santos e Liverpool), algo impressionante na história do futebol mundial. Os números são superlativos: 58 jogos, 44 vitórias, 10 empates, 4 derrotas – percentual de 81,3% de aproveitamento –, 129 gols marcados e 47 sofridos. Foi um período em que o Flamengo sobrou, não tinha adversários, passou a ser listado entre os grandes do mundo, e Jorge Jesus enfezou diversos colegas brasileiros incapazes de esconder a inveja pela distância tática e técnica que ele impôs em campo.
Bastou o técnico português decidir ir embora comandar o Benfica (Portugal) por um caminhão de dinheiro e abriu-se a porta de um inferno astral que jogou o time numa tremenda barafunda, que segue açoitando a lógica.
A situação é cada vez mais incompreensível quando diversos pontos positivos e únicos são juntados para qualquer análise. Não faltam ao Flamengo dinheiro – há grana numa quantidade industrial, o orçamento anual bate R$ 1,2 bilhão, é o maior do Brasil e está muito adiante do segundo colocado –, estrutura, elenco e arquibancadas lotadas em qualquer jogo, seja qual for o local das partidas.
A postura da diretoria é questionada quando são levados em conta os muitos pontos negativos da administração. Desde a saída de Jorge Jesus, o Flamengo já teve 8 técnicos – Domènec Torrent, Rogério Ceni, Renato Gaúcho, Paulo Sousa, Dorival Júnior, Vítor Pereira e Jorge Sampaoli. Quatro deles nos últimos 12 meses, o que significa uma média inacreditável de 3 meses para cada. E a demissão de Dorival Júnior, realizada de forma obscura, até hoje ressoa por todos os lados – o barulho fica maior diante do trabalho que ele já está realizando no São Paulo, que andava natimorto.
Na mesma lista negativa também constam o vaivém de jogadores sempre cercados por cifras milionárias, um quadro que ganha tintas fortes porque a maioria dos que chegaram não anda causando o efeito esperado. Na verdade, fica no ar um cheiro de amadorismo, de falta de análise prévia na hora de contratar reforços. Como explicar a contratação de Arturo Vidal e Marinho, ainda mais com salários milionários? E a recente renovação automática do contrato de David Luiz, que também está no mesmo padrão financeiro? Quem aceita uma cláusula dessas num contrato de um jogador em fim de carreira, caminhando para os 40 anos de idade, com rendimento em campo jamais convincente desde que chegou ao time e dando sinais da inevitável decadência física determinada pela natureza? E o que dizer dessa troca desenfreada de técnicos que vem ocorrendo, algo que não é visto (neste nível numérico) nos demais times e que impede a implantação de qualquer projeto de médio e longo prazos, resultando num time caríssimo e sem qualquer personalidade?
Qual a dificuldade de encerrar contratos com jogadores que já não justificam o investimento e, pior, são renovados sempre com aumento salarial? O que acontece na preparação física, com tantos jogadores alegando “desconforto muscular”, se machucando com tanta facilidade, se arrastando em campo e sem qualquer regularidade? Qual o mistério do departamento médico, onde atletas lesionados permanecem por tanto tempo, voltam claramente sem condições de jogo e logo se machucam novamente? Ou o que se assiste com De Arrascaeta é miragem?
Por que o grupo diretivo do clube parece tão distante de tudo, quase nunca se apresenta publicamente? Não é por falta de gente. Uma rápida visita ao site oficial do Flamengo nos oferece uma visão a respeito de um verdadeiro paraíso administrativo. Apenas no item “Conselhos”, temos 48 nomes ocupando cargos. O preciosismo é tal que encontramos uma Vice-presidência de Consulados e Embaixadas e uma Vice-presidência de Relações Externas – imagine se o Flamengo vivesse disputando amistosos e torneios internacionais! Ah, tem também a Vice-presidência de Gabinete da Presidência e a Vice-presidência de Secretaria. Na questão patrimonial, estão lá a Vice-presidência de Patrimônio propriamente dita, além da Vice-presidência de Patrimônio Histórico. E isso porque não estamos falando de um time grego ou romano. Diante do cipoal de cadeiras douradas, há um rol de diretores que repetem vice-presidências e uma inusitada Diretoria de Conselhos, certamente indispensável para gerir os conselhos que tantos sábios devem viver distribuindo.
Dentro do gramado, a fase atual está sob comando do argentino Jorge Sampaoli, um sujeito que, dizem, é duro de aturar no cotidiano em razão do seu grau de exigência. E uma das principais características do técnico é o gosto pelos treinamentos, algo fundamental que o maldito calendário e a quantidade de contusões impede de ser levado a cabo da forma adequada. Talvez esteja aí a explicação da vergonhosa falta de conhecimento dos fundamentos mais simples do futebol por jogadores tratados como craques – chutes a gol, cobranças de faltas, passes curtos e longos, domínio de bola, dribles…
Ao invés do óbvio, jogar bola, razão dos próprios contratos, o elenco parece gastar muita energia em formação de grupos que servem como luva para os rachas internos de praxe. E para fritar treinadores que não são “parças” da vida mansa. Falta bola, sobra amadorismo.
Já não é mais segredo que muita coisa relacionada com o Flamengo não anda fazendo qualquer sentido. A comunidade do futebol cansou de ouvir que está na Gávea o melhor (e mais caro) elenco do futebol brasileiro. Então, qual o significado do que se viu diante do Ñublense, no último jogo pela Libertadores? Com todo respeito aos chilenos, pouco além de um time de várzea, e dos bem ruins. Jogo seguinte, contra o Cruzeiro em pleno Maracanã, pelo Brasileirão, o vexame se repetiu – sem qualquer demérito aos mineiros, que não ganharam por pouco. Na eliminação imposta ao Fluminense pela Copa do Brasil, apesar da vitória a imprensa tratou de definir a exibição como “time operário”. Detalhe, o tricolor foi um fiapo em campo, pedindo para ser goleado. Tudo isso é alguma mensagem cifrada das estrelas do “melhor” elenco? Dirigida a quem? Falta de profissionalismo? Reflexo da bagunça reinante, onde ninguém tem voz ativa de verdade?
A maior torcida do mundo está vivendo uma fase longa numa espécie de divã gramado, em busca de respostas. O mundo do futebol também aguarda respostas. A diretoria afirmou que queria uma mudança completa na mentalidade. Contratou Paulo Sousa para isso, mas largou o coitado à própria sorte. Repetiu a dose com Vítor Pereira. Foi mais fácil culpar os dois por problemas de relacionamento com o elenco. Agora, dá indícios de que não vai jogar Sampaoli ao mar, pois ficará óbvia a avaria no casco da Gávea por erro de navegação.
O jornalista Osvaldo Pascoal (ESPN) fez um desenho perfeito da situação rubro-negra: “O Flamengo é o ‘malvadão soft’, um time que tem enorme posse de bola, nenhuma intensidade para resolver as jogadas e fazer gols, e que não suja o uniforme dos goleiros adversários”. Ficou cansativo, não dá mais para aturar um clube desse porte parecendo uma barca furada!
Além do Flamengo, o futebol brasileiro anda contaminado com esse joguinho de toques laterais, retrancas, pancadaria e falta de gols. Alguém precisa puxar a orelha dos europeus, que seguem oferecendo pencas de gols na maioria dos jogos eletrizantes que realizam por lá.