Reprodução/Netflix
Mar quase morto
- Heraldo Palmeira
GIRAMUNDO VIU Seaspiracy: Mar Vermelho é um documentário original da Netflix, produzido em 2021. Dirigido e estrelado pelo cineasta britânico Ali Tabrizi, apaixonado pela vida nos oceanos desde criança, lança no ventilador um bocado de coisas que a gente não tem conhecimento, não tem interesse ou finge que não vê, no melhor estilo “isso não é comigo”. Na semana de lançamento, o filme foi um dos dez mais assistidos em diversos países, gerando grande impacto nas redes sociais.
É bom preparar o espírito quando se acomodar na poltrona e der o play, pois virá a seguir uma amostra impressionante dos danos causados pelo ser humano nos ecossistemas marinhos, com conexões globais surpreendentes e pouco conhecidas.
Pense nas vezes que alguém já se encantou com golfinhos e orcas fazendo evoluções em parques aquáticos ao redor do mundo. Procure se informar como aqueles peixes artistas são selecionados. Pense nas vezes que alguém retirou de uma gôndola de supermercado uma lata de atum com algum selo de certificação, garantindo que ali tem um produto que respeita o meio ambiente. Procure saber quem são essas instituições certificadoras e o rigor que têm para cumprir esse papel de tranquilizar consumidores que se consideram conscientes quando escolhem um produto certificado e mais caro.
Pense que golfinhos são mortos e abandonados em quantidades industriais sob a acusação de que comem peixes demais e atrapalham a pesca comercial certificada por instituições internacionais que defendem o meio ambiente. Pense nos milhares de tubarões capturados e mortos apenas para que suas barbatanas sejam cortadas e alimentem crendices e status econômico ao redor de uma sopa caríssima, sem graça e tratada como iguaria.
Pense na devastação que os resíduos de plástico causam à vida marinha, matando animais de diversas espécies que se entopem desse tipo de lixo jogado nos mares. Pense que microplásticos já são encontrados em placentas de parturientes e na corrente sanguínea humana. Procure saber por que muitos ambientalistas relutam em revelar detalhes que comprometem a poderosa indústria da pesca.
Talvez você já tenha ouvido falar na Grande Mancha de Lixo do Pacífico, embora seja apenas a mais famosa de todas as manchas de lixo que vagam pelos oceanos ao redor do mundo. Ela ganhou fama em 1997, quando o capitão e oceanógrafo norte-americano Charles Moore acabara de participar de uma famosa regata náutica e, voltando para casa, entrou num verdadeiro mar de plástico. Era uma superfície de detritos tão extensa que seu veleiro precisou de sete dias para completar a travessia. Em terra firme, o navegador revelou o que vira e seu alerta mobilizou a comunidade científica internacional. A descoberta serviu para acionar um expressivo movimento de conscientização, provocando diversas iniciativas – que se multiplicam até hoje – para reduzir a presença dos plásticos nos oceanos.
Apenas duas décadas foram necessárias para que a grande “sopa” de lixo flutuante formada por microplásticos, e que se move à deriva entre o Havaí e a Califórnia, passasse a ser chamada de “sétimo continente”, tal a dimensão que adquiriu. São 1,6 milhões de km², cerca de 3 vezes o território da França. Suas 80 mil toneladas de detritos equivalem ao peso de 500 aviões Boeing 747 jumbo. Mesmo assim, é invisível aos satélites porque 94% da sua composição é formada por fragmentos minúsculos de plástico. E a vastidão aumenta exponencialmente a cada ano.
Em 2018, a revista Nature publicou um estudo científico a respeito dos resíduos. De acordo com os idiomas encontrados no material recolhido na investigação, China e Japão respondiam por 2/3 dos fragmentos e países como Alemanha, Canadá, Chile, China, Colômbia, Coreia do Sul, Filipinas, Itália, Japão, México, Taiwan e Venezuela também ajudavam a alimentar a Grande Mancha. O resíduo mais antigo datava de 1977.
O documentário também relembra a explosão da plataforma petrolífera Deepwater Horizon, da British Petroleum (BP), ocorrida em 2010 no Golfo do México, que gerou o maior derramamento de óleo no mar da história – 750 milhões de litros ao longo de meses. Foi chocante ver animais mortos ou agonizantes encharcados de petróleo. Um comparativo apresentado no filme é espantoso: a indústria pesqueira, num único dia, matou mais animais marinhos no mesmo golfo do que o acidente da plataforma em meses.
No roteiro do documentário, surge uma questão inquietante: por que a mídia e a atenção mundial estão direcionadas ao plástico de produtos de consumo cotidiano e aos combustíveis fósseis, tirando o foco da indústria pesqueira, que tem tanto impacto no mar?
O lixão marinho já afeta 800 espécies, é formado majoritariamente por equipamentos de pesca industrial (redes, cestas e jaulas) descartados no mar pelos navios pesqueiros, além de resíduos lançados por outras embarcações. As redes de pesca abandonadas, denominadas “fantasmas”, seguem cumprindo seu papel original, aprisionando e matando os animais que terminam imobilizados indefinidamente em razão da óbvia inexistência de pescadores para manejá-las. Lugares remotos do planeta, inclusive o Círculo Polar Ártico, estão infestados por esses resíduos que vão parar no estômago de baleias e outros animais marinhos.
As linhas espalhadas para a pesca de espinhel são suficientes para dar 500 voltas diárias no planeta. A pesca de arrasto, que libera tanto carbono quanto as viagens aéreas, é considerada a forma mais destrutiva de todas. As maiores redes utilizadas são de tal porte que poderiam engolir grandes catedrais ou 13 aviões jumbo. Tudo que as tripulações de submarinos querem é distância de uma delas. O atrito com o fundo do mar provoca sérios danos, causando uma espécie de desmatamento que deixa um rastro de esterilidade.
Não se tem notícia de que exista um único navio pesqueiro interessado em tartarugas marinhas. Mesmo assim, seis em cada sete espécies delas estão ameaçadas de extinção. E o grande predador é a chamada pesca acidental, onde são capturadas no meio das outras espécies que interessam aos pescadores – algo como se as tartarugas estivessem no lugar errado na hora errada.
Um estudo global apontou que 1 mil tartarugas marinhas morrem todo os anos vitimadas pelo plástico. Porém, apenas nos EUA, nada menos que 250 mil são capturadas, feridas ou mortas por navios pesqueiros. Já um estudo do WWF apontou que 300 mil mamíferos marinhos – baleias, focas, golfinhos, leões-marinhos –, além de centenas de milhares de aves e tartarugas, morrem todos os anos presas às redes.
O assunto é tabu, os discursos focam somente a ingestão de lixo. É estranho ver ambientalistas recomendarem boicote a produtos de consumo cujas embalagens são encontradas nos resíduos, mas manterem silêncio absoluto a respeito do que fazer com os equipamentos de pesca descartados nos oceanos e com as empresas responsáveis. Eles se dedicam a vociferar contra os canudos plásticos – viralizou nas redes sociais a imagem de uma tartaruga sobrevivente com um deles enfiado numa das narinas –, mesmo que representem ínfimos 0,03% do plástico jogado no oceano. Algo como tentar salvar a Amazônia do desmatamento boicotando palitos de dente.
É ainda mais inusitado vê-los recomendar, como solução para o problema, que as pessoas parem simplesmente de comer pescados, para que as populações marinhas se recuperem e os pescadores não sigam descartando seus equipamentos nos oceanos. É claro que essa é uma medida a ser considerada, inclusive porque a escassez que se anuncia poderá impô-la cedo ou tarde.
Na verdade, Seaspiracy: Mar Vermelho é devastador quando revela a hipocrisia dessa gente que transforma a militância ecológica em rentável meio de vida. É impactante ver o cineasta desmascarar a rede de conivência de instituições que se apresentam defensoras do meio ambiente, mas, na verdade, estão associadas às grandes empresas pesqueiras. É óbvio que jamais falarão da principal causa da poluição marinha causada pela indústria, que representa 70% do macroplástico encontrado no mar.
Outra abordagem importante é o fato de a comunidade científica prever que 90% dos recifes de corais poderão desaparecer até 2050. Embora os peixes sejam decisivos para mantê-los vivos, o único discurso dos ambientalistas a respeito insiste que a mudança climática é a grande vilã desse ecossistema, ignorando que a pesca industrial predatória está dizimando diversas espécies deles.
Hoje, já se sabe que o oceano é o maior reservatório de carbono do planeta – é nele que está armazenado 93% de todo o carbono do mundo. Por isso, muito mais do que plantar árvores, é importante manter a integridade dos sistemas oceânicos. Perder 1% da vida marinha equivale a liberar emissões de 97 milhões de automóveis.
Em 1998, Sylvia Earle, a lendária oceanógrafa e exploradora da National Geographic, foi nomeada pela revista Time a primeira heroína pelo planeta. “Procurei por muito tempo, tentando achar um exemplo de onde uma extração da fauna em larga escala é sustentável. Simplesmente não existe”, afirma. Contando centenas de expedições marítimas no currículo, ela se dedica a criar e administrar áreas de proteção marinha. “Com raríssimas exceções, todos os lugares em que mergulhei nos últimos 20 anos tinham lixo plástico. Em geral, equipamentos de pesca descartados”, complementa.
Hoje, apenas 5% dos oceanos são áreas marinhas protegidas. Entretanto, em 90% delas a pesca é permitida, o que significa que menos de 1% está realmente regulamentada. Esse é o cenário em que os cardumes nadam à beira do colapso, escapando de danos devastadores, alguns irreversíveis.
Governos fazem discursos bonitos acerca de áreas protegidas nos mares. Entretanto, ao invés de enfrentar e penalizar quem realmente provoca o desastre dentro e fora desses limites geográficos, propõem medidas para evitar mais caiaques no mar. Sim, é para rir mesmo! Não vão agir contra uma indústria na qual colocam dinheiro público em forma de subsídio.
O documentário faz alertas pesados. Por exemplo, que o setor pode ser analisado no mesmo parâmetro do crime organizado internacional. Os sindicatos que operam a pesca ilegal são similares aos grupos criminosos por trás do narcotráfico, tráfico de pessoas e diversos outros crimes, colocando em risco a vida de quem tentar atrapalhar seus interesses.
Várias tentativas de regular a indústria da pesca não tiveram sucesso. Dentre elas, a presença de observadores designados por governos para estarem nos barcos monitorando a atividade. Muitos foram assassinados e jogados ao mar pelas tripulações.
Esse ambiente de negócios é bilionário e protegido por interesses governamentais – US$ 35 bilhões (R$ 169 bilhões) são concedidos como subsídios todos os anos, enquanto as Nações Unidas afirmam que US$ 30 bilhões (R$ 144,9 bilhões) bastariam para combater a fome no mundo –, onde marcos legais são ignorados. Hoje, 24 mil trabalhadores morrem por ano, o trabalho análogo à escravidão é reportado em 47 países e talvez esteja presente em 25% de todos os navios em atividade no setor.
Comunidade europeia, China, Coreia do Sul, Japão e Rússia comandam esse mercado, com investimentos pesados em tecnologia. Hoje, é possível localizar grandes cardumes e a eficiência se traduz em 2,7 trilhões de peixes retirados do mar todos os anos, uma média de 5 milhões por minuto. Por isso, alguns especialistas acreditam que, mantido esse ritmo, os oceanos estarão sem estoque até 2048.
A pesca estrangeira predatória deixou marcas fundas no continente africano. Os grandes navios recolhem numa noite a mesma quantidade de peixe que os nativos levavam um ano para retirar em tempos normais. Com essa proporção, terminaram por liquidar a pesca artesanal em canoa que reinava nesses lugares e garantia a segurança alimentar das populações em momentos de grandes secas.
No lado ocidental, a escassez de pescado obrigou as pessoas a partirem para a caça de animais selvagens. Além do impacto na vida animal, o comércio dessa carne gerou a epidemia de ebola. Na parte oriental, transformou pescadores artesanais sem trabalho nos temidos piratas da Somália, cujo objetivo declarado seria proteger a costa da pesca predatória e sobreviver.
A última cena de Seaspiracy: Mar Vermelho ficou a cargo de Sylvia Earle, que diz em tom suave: “Não é tarde demais para termos a maior esperança que já tivemos de ter um lar neste universo. De respeitar o que temos, de proteger o que sobrou, de não deixar escapar nada. A maioria das coisas positivas e negativas que trazem mudanças à civilização humana começa com alguém. Uma pessoa. E uma pessoa não consegue fazer tudo, mas cada um pode fazer uma parte. E, às vezes, grandes ideias fazem uma grande diferença. É o que podemos fazer. É o que você pode fazer agora. Olhar-se no espelho e descobrir. Vá em frente”.
Precisei voltar no tempo para reencontrar o menino que nasceu no sertão e só conheceu o mar aos 6 anos de idade. Era como abrir uma gaveta da memória e rever aquela imagem da imensidão azul que ficou gravada e agora é como uma fotografia antiga.
Lembrei dos pescadores chegando no fim da tarde em suas jangadas e alguns barcos muito pequenos. Estava ali uma boa comida que iria para as mesas no dia seguinte. A quantidade era apenas para subsistência e um pequeno comércio, e não imagino que houvesse ali nenhum tipo de pesca acidental – os visitantes indesejados trazidos pelas redes eram devolvidos a tempo para as águas. Tudo era calmo, tudo parecia bom. Talvez a minha percepção infantil ajudasse a melhorar as coisas, mas nunca foi ilusão o amor que minha mãe tinha pelo mar, pelo banho de mar. Era uma lição de respeito e pertencimento que não reencontro em lugar nenhum.
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural
Saiba mais
Trailer Seaspiracy https://www.youtube.com/watch?v=Gf4SyzygHko
A Dama dos Mares https://www.nationalgeographicbrasil.com/meio-ambiente/sylvia-earle-a-dama-dos-mares