Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

O rugido da fera

Reprodução/Internet

O rugido da fera

  • Heraldo Palmeira e Sylvio Maestrelli

O torcedor brasileiro, orgulhoso por tantas conquistas da Seleção, hoje é um simples sofredor. Desiludido, sem saber onde foi parar aquela que já foi a melhor seleção da história do futebol, aquela das cinco estrelas na camisa. Aquela que era tão boa que chegou a ter Leandro, Júnior, Zico, Falcão e Sócrates juntos em campo e perdeu. Aquela que teve Zizinho, Ademir de Menezes e Jair da Rosa Pinto e foi derrotada em casa, de virada. Aquela que, apesar do Cláudio Coutinho e seus overlappings e outras baboseiras teóricas que não combinam com a ginga natural dos boleiros, terminou a Copa do Mundo 1978 invicta e não foi campeã. Aquela que em muitos momentos diferentes encantou o mundo. A mesma que, há pelo menos duas décadas, apenas enche o saco de quem gosta de futebol.

A Seleção Canarinho é a maior vencedora de Mundiais, a única pentacampeã, a dona da camisa mais pesada. E, também, a mais inusitada das seleções, aquela que efetivamente tem o dom de quebrar paradigmas, para o bem e para o mal. Foi ganhadora cinco vezes, apenas uma vez em nosso continente. Foi a primeira a vencer uma final por pênaltis, em 1994 (pobres italianos e paupérrimo futebol!). A primeira a ganhar fora de seu continente e em cima da anfitriã (5×2 na Suécia, em 1958). Somos, todavia e paradoxalmente, também os únicos – entre os que têm mais de um título – a não ganhar uma Copa em casa (tropeçamos em 1950 e demos vexame em 2014). Assim como fomos o único campeão do mundo goleado em casa (Mineirão), na dolorosa sova agora imortal de 7×1 dos alemães (2014) – a maior foi Hungria 10×1 El Salvador (1982).

Ora, se somos especialistas em quebrar paradigmas, será que em 2026 passaremos a ser a única seleção nacional campeã mundial com um técnico estrangeiro? O anúncio feito pela CBF a respeito de um acordo verbal estabelecido com o treinador Carlo Ancelotti soou como um rugido de fera no ouvido do pachequismo de plantão, que entrou em looping para criticar a espera pelo italiano até o meio do ano de 2024, quando terminará seu contrato com o Real Madrid – ao fim da temporada europeia 2023/2024, que terá início em 12 de agosto.

As poucas vozes técnicas da imprensa esportiva acreditam que vale a pena esperar por Ancelotti e não faltam motivos para que o acordo seja festejado. O primeiro é sua inegável capacidade técnica. Além de ter sido um excelente meio-campista, campeão italiano pela Roma (junto com Falcão, de quem é grande amigo), venceu com o Milan o italiano, o europeu e o mundial (ao lado dos holandeses Rijkaard, Van Basten e Gullit). Está entre os maiores vencedores do futebol mundial como treinador. Papa-títulos, foi campeão nacional na Itália, França, Alemanha, Inglaterra e Espanha, além de faturar quatro Ligas de Campeões da Europa e três Mundiais de Clubes da FIFA.

Um argumento motivador usado para convencê-lo a dirigir a Seleção Brasileira é a possibilidade de conquistar uma Copa do Mundo, único título relevante que ainda falta em sua gloriosa carreira. E, para buscar isso, terá a seleção nacional com maior destaque na história do futebol.

Outros pontos a favor de Ancelotti são sua latinidade, que lhe ajuda a compreender a cabeça de nossos atletas, e as boas experiências e ótima convivência que já teve com jogadores brasileiros. Falcão e Cerezo foram seus companheiros da grande Roma da década de 1980 e, como bem ponderou o comentarista Walter Casagrande, poderiam compor sua comissão técnica. Diversos outros jogadores que atuaram sob sua batuta o consideram excelente para o cargo, desde Dida, Serginho e Kaká, no Milan, até a turma sob seu comando no Real Madrid – Casemiro, Vinícius Júnior, Rodrygo e Militão. Some-se a tudo isso o fato de ser o técnico estrangeiro que mais trabalhou com jogadores brasileiros de alto nível.

Qual é a dificuldade incontornável para esperar por ele até julho de 2024? Afinal, as Eliminatórias sul-americanas classificarão sete (isso mesmo, sete!) seleções para a Copa 2026. Mesmo que a Canarinho não seja dirigida por Ancelotti nos primeiros jogos, será necessária uma crise de ruindade nunca vista para nos deixar de fora do Mundial.

Segundo noticiado a respeito do acordo com a CBF, Ancelotti indicará alguém de sua confiança para ser agregado à comissão técnica até sua chegada. Não há qualquer anormalidade em escolher um técnico para levar o projeto neste meio-tempo e permanecer no grupo como assistente. Há diversos bons nomes iniciando carreiras com novas ideias – André Jardine, Márcio Zanardi, Paulo Turra, Tiago Carpini e o próprio Ramon Menezes – desde que fique claro que ele tem significado e uma tarefa, algo que não está acontecendo neste momento. Cumprir esse mandato curto será uma grande oportunidade de aproximação com um dos maiores treinadores de todos os tempos, algo que interessa a qualquer profissional.

Tudo que a Seleção Brasileira não precisa é repetir o erro de apostar em medalhões nacionais ultrapassados, como já sugere freneticamente a banda bairrista da mídia esportiva, hoje formada inclusive por ex-jogadores de segunda linha que viraram palpiteiros de plantão e expoentes do compadrio, sempre emitindo opiniões com odor de naftalina.

Enquanto o futebol internacional está globalizado há décadas pelo intercâmbio de nacionalidades dos principais jogadores e treinadores, com os resultados indiscutíveis que conhecemos, o futebol brasileiro – que já teve por aqui diversos estrangeiros de enorme sucesso – está agora contaminado por esse espírito corporativista e protecionista que assume ares de xenofobia.

Mesmo se tratando de uma lenda viva do futebol, Carlo Ancelotti sofre a mesma resistência estúpida destinada a Jorge Jesus, Abel Ferreira, Jorge Sampaoli e outros técnicos estrangeiros que trouxeram novidades que nossos “professores” jamais tiveram capacidade de apresentar. Na verdade, muita gente deve estar se borrando de medo da revolução que o italiano pode provocar no comando da Seleção, capaz de mudar o patamar modorrento que temos instalado por aqui.

O mais impressionante é ver a gritaria desonesta sobre ciclo de quatro anos como algo indispensável para o sucesso numa Copa. Basta rever os registros históricos e constatar que em nenhum dos nossos cinco títulos isso aconteceu. A última atualização dessa balela diz respeito a Tite, que passou seis anos e deu no que deu. E esse discurso também finge esquecer o passado recente onde se trocava o técnico da Seleção ignorando qualquer projeto de preparação, a ponto de o comando ter sido entregue a Cláudio Coutinho, Parreira, Zagalo, Lazaroni, Leão, Falcão e Dunga, que não deixaram saudade.

No exemplo mais indiscutível de que ciclo é bobagem, Zagalo assumiu o comando depois das Eliminatórias e ninguém precisa perder tempo lembrando da máquina brasileira que maravilhou o mundo na Copa do México (1970). Claro que aquela campanha magistral foi resultado exclusivo da excelência do plantel – até hoje se diz que o comando era exercido de fato pelo trio Gérson, Pelé e Carlos Alberto. Algo que ganha ares de verdade, basta recordar as outras passagens de Zagalo pela Seleção, marcadas pela indigência técnica do time e pela lamúria “Vocês vão ter que me engolir!”. Ninguém engoliu.

A renovação com mudança de mentalidade é inadiável. Treinadores como Felipão, Mano Menezes, Tite, Parreira, Luxemburgo já tiveram suas oportunidades. Sem contar que vários deles fracassaram em clubes e outras seleções. Parreira chegou a ser demitido pela Arábia Saudita em plena Copa do Mundo 1998 (França) ainda na fase de grupos – um caso surreal, para dizer o mínimo! Felipão, cada vez menos associado ao pentacampeonato (2002), está eternizado pelos 7×1 da Alemanha (2014) e por trabalhos inexpressivos nos últimos anos. Mano Menezes fracassou na Olimpíada de Londres (2012) com uma ótima geração nas mãos e ficou famoso pelas grosserias que distribui quando as coisas vão mal. Luxemburgo teve passagem pífia pela Canarinho e Real Madrid. Faz tempo que repete falas risíveis e coleciona demissões. Tite não consegue trabalhar nem em times médios da Europa, após os fracassos sucessivos em 2018 e 2022, mostrando uma baita fragilidade de comando enfeitada por aquele discurso de dono de seita e pela falta de pudor de assumir publicamente a tal “Neymardependência”, enchendo o jogador de tolerâncias e regalias – nem mesmo o sobrenatural Pelé mereceu essa vergonhosa subserviência, até porque o Rei se ocupava de jogar futebol como ninguém conseguiu.

Entre os treinadores brasileiros de algum destaque ultimamente, não há consenso. Dorival Júnior, o preferido dos paulistas, ainda é lembrado como o técnico que caiu no Santos depois de bater de frente com Neymar, então um moleque em início de carreira. Fernando Diniz, o preferido dos cariocas, é também conhecido como cavalo paraguaio: dispara na frente, vai perdendo força, fica previsível e é demitido. Seu histórico nos clubes onde passou não deixa dúvidas. Cuca? Os problemas pessoais pendentes que carrega são como uma doença autoimune. Os sempre pretensiosos Rogério Ceni e Renato Gaúcho não podem ser levados a sério para comandar a Seleção.

Embora tantas vozes façam esse coro desafinado tentando encontrar motivos para criticar a escolha da CBF por Carlo Ancelotti, dificilmente ele não vai deixar uma marca profunda caso assuma o comando da Seleção. É bom começar lembrando que não haverá ineditismo, pois a história registra os nomes do uruguaio Ramón Platero (1925), o português Jorge Gomes de Lima, “Joreca” (1944) e do argentino Ernesto Filpo Núñez, “El Bandoneón” (1965) no comando do escrete Canarinho.

Ao que tudo indica, esses pachecos que agora criticam a espera por Ancelotti já preveem que as coisas serão bem diferentes a partir de julho de 2024. Sem contar o abismo técnico que separa o italiano dos nossos “professores”, sabe-se que ele impôs algumas condições, imediatamente aceitas, que mudarão a face dessa papagaiada em que transformaram a Seleção Brasileira. Para começo de conversa, duas fundamentais: fim da maldita “Neymardependência” – que sabotou o trabalho de Felipão e Tite porque ambos jamais tiveram competência para desenhar um plano B – e de amistosos inúteis.

Carlo Ancelotti terá enorme reflexo na imagem internacional da Seleção, inclusive no ambiente de galhofa que cerca o grupo. O respeito que desfruta e a aprovação dos jogadores é sinal claro do que poderá vir com ele. E que ninguém duvide, terá autonomia total nas convocações, sem permitir que nenhum atleta tenha privilégios. Basta pensar que fez Karim Benzema dobrar a espinha e entender que era menor do que Real Madrid, apenas mais um em campo. Portanto, se Neymar voltar a ser um jogador de futebol, deverá estar ciente de que vai disputar a posição que sempre lhe deram de bandeja para fazer papel de vedete.

A permanência do técnico no time espanhol até o fim do contrato é uma questão de lealdade com o presidente Florentino Pérez, que lhe deu todo apoio na eliminação da Champions League e na perda do campeonato espanhol. Para Ancelotti, virou uma questão de honra ganhar esses títulos na próxima temporada. Uma questão de palavra dada. E por falar em palavra, já se cochicha que seu sucessor no reino merengue poderá ser Zinédine Zidane. De lenda para lenda.

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