Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Alavantu, anarriê

Reprodução/RCA Victor (Divulgação)

Alavantu, anarriê

  • Heraldo Palmeira

Tornou-se comum para muita gente que gosta de música sentir calafrios sonoros no caminho de qualquer festa, reunião social ou dos barzinhos com apresentações ao vivo. E tudo fica pior quando os infernais DJs estão na programação e salpicam tudo de porcaria nos intervalos em que atuam. Sempre chegam com o som em níveis insuportáveis de altura, e aquela enxurrada de “defeitos” especiais que utilizam é de dar pena – a coisa é ainda mais grave quando são os que se acreditam “compositores”.

Não sei por que alguém estranha quando, nessas ocasiões, se pergunta quando vão trazer rádios tipo walkie-talkie para possibilitar as conversas, já que o som alto demais obriga todos a falar aos gritos até à rouquidão.

O convite era para um São João numa chácara. Reunião de amigos e suas famílias, coisa de 60 pessoas. Compreensível sentir aqueles calafrios já prevendo o porvir. Carro rolando sobre o asfalto da BR duplicada e da estrada vicinal até a cidadezinha, estrada de chão batido até a porteira aberta com gentileza e acolhimento. Numa das muitas árvores frutíferas ao redor da casa principal um papagaio não parava de cantar, animado com tamanha folia humana ao redor.

Alegria dos reencontros, cumprimentos aos desconhecidos, primeiras conversas de acomodação. Churrasco rolando solto, brincadeiras indispensáveis e engraçadas entre amigos – os chistes inigualáveis e “de lei” –, prosas amenas dando um clima delicioso de bem viver. Até que foi anunciado o início da programação musical.

Num lado do alpendre amplo, equipamento montado, três microfones. Pelo menos, nenhum vestígio de DJ, o que já soava como alívio. A qualidade e o porte da estrutura técnica deram uma pista positiva, embora o espírito “São Tomé” mantivesse pé firme e a desconfiança natural do ver para crer.

Os três homens tomaram seus lugares, cada um à frente de um microfone, empunhando sanfona, zabumba e triângulo. Fizeram a saudação cordial de praxe, a contagem de sempre e encheram o ambiente:

  • Olha pro céu, meu amor
  • Vê como ele está lindo
  • Olha pr’aquele balão multicor
  • Como no céu vai sumindo
  • Foi numa noite igual a esta
  • Que tu me deste o coração
  • O céu estava assim, em festa
  • Porque era noite de São João

O coração apertou. Pela primeira vez em muito tempo, parece que restava um caminho para a roça onde Luiz Gonzaga reinou. Sonorização perfeita que permitia ouvir tudo em equilíbrio – quem queria dançar, dançava; quem queria conversar, conversava sem qualquer esforço vocal –, músicos de excelente qualidade em seus instrumentos, cantando afinadíssimos e fazendo vocais bonitos.

Começou a guerra íntima entre a desconfiança instalada e a vontade de acreditar. Afinal, o ouvido estava calejado, era a primeira música e mal tinha começado. Vieram a segunda, a terceira, a centésima e tudo seguiu rigorosamente naquele modelo. Os músicos montaram uma trincheira para proteger um repertório primoroso, não deixaram uma única fresta para penetras. Na verdade, ofereceram bilhetes de primeira classe para uma grande viagem na memória afetiva, parando em diversos pontos marcantes do tempo de cada um dos presentes.

Muito aplaudidos ao fim da apresentação, seguiram para outro show mas ficaram soando como assunto unânime, certamente sem fazer a menor ideia de que haviam lavado a alma daquela porção de gente, inclusive dos mais jovens. As moças lindas não precisaram descer degraus degradantes em suas coreografias – o repertório primoroso não instalou esse tipo de escada. Ao contrário, desfilaram sua graça para os rapazes lindos dançando a tradicionalíssima quadrilha, onde pessoas de todas as idades se misturaram em deliciosa algazarra. Diversão garantida. E o papagaio aos gritos e assobios, crente que estava ajudando a marcar a dança tradicional.

De volta para casa, desconfiança largada na primeira curva da estrada e uma confortável certeza de que nem tudo está perdido. A música esteve presente como prêmio, não como flagelo, sem passar nem perto do cada vez mais repetido pesadelo que se tornou lugar-comum nas baladas de qualquer tipo.

Viva Antônio, João e Pedro, os santos das festas juninas. E milagreiros prontos para conceder graças como aquela.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

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