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Liberdade
- Kalunga Mello Neves
Leon Eliachar nos inesquecíveis tempos do jornalismo raiz, quando revistas e jornais de circulação nacional eram lidos por milhões, um dia escreveu em um dos seus artigos que não existia sensação maior de liberdade do que ir ao banheiro e deixar a porta aberta. Aquela frase não saía da minha cabeça de adolescente, transgressoramente bem-comportada, e do meu corpo que adorava se expor aos perigos não radicais que um politicamente correto ainda longe de ser real nos policiava inconscientemente. Assim, sempre que podia, pegava um gibi, sentava no vaso, avistava o corredor que levava até a cozinha e me sentia livre como os passarinhos que gorjeavam no meu quintal.
Padre Miguel, meu professor de religião no ginásio, salve, salve década de sessenta, ao falar de liberdade nos ensinava que a nossa terminava quando começava a do outro irmão. Que tinha que haver respeito e limites, obediência e aceitação. “É isso aí!”, eu pensava, como pensava também na definição um tanto mundana para esta mesma liberdade do jornalista Eliachar. E entre as duas, eu louvava a primeira e dava descarga na segunda, com certos limites, logicamente.
Já Glorinha, minha segunda namorada, me apresentou precocemente uma outra versão de liberalidade. Com o tempo, tornou-se psicóloga e ativista de esquerda. Na época, chatinha e dona da verdade, se achava a tal e tinha atributos para isso, físicos e intelectuais, em que pese seus tenros 13 anos.
Pois Glorinha me falava em paz e amor, usava cabelos encaracolados, Woodstock pra ela era top, curtia adoidada o som de Janis Joplin e Gal Costa. Beijava de língua, fumava cigarros importados, chiclete balão a bailar em sua boca. Dizia que passar por média era coisa de careta, recitava poetas malditos. Na transparência das suas minissaias eu vislumbrava um mundo à parte, repleto de convites e sorrisos sinceros e maliciosos.
Ela não precisava teorizar sobre liberdade. Suas atitudes eram livres e refletiam as planícies que a rodeavam. Uma réplica de Leila Diniz ninfeta da minha pequena cidade.
Penso em Glorinha, no Padre Miguel e em Leon Eliachar nesta noite estrelada de junho, mar à espreita com seus murmúrios azuis. Penso na liberdade de uma maneira tão intensa que jamais queria que ela nos fosse surrupiada sem um motivo maior e único: a liberdade divina de escolher o nosso destino.
*KALUNGA MELLO NEVES, escritor e brincante