Por Heraldo Palmeira
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23 de novembro de 2024

Páginas viradas

Reprodução/Wiener Zeitung

Páginas viradas

  • Heraldo Palmeira

A capa (foto) não deixou dúvidas: “116.840 dias, 3.839 meses, 320 anos, 12 presidentes, 10 imperadores, 2 repúblicas, 1 jornal”. Foi com essa última manchete que o Wiener Zeitung, jornal editado e publicado desde 1703 em Viena, Áustria, se despediu das edições impressas em 30 de junho de 2023. Uma maneira de traduzir o testemunho jornalístico da história do país, Europa e mundo ao longo do tempo.

Considerado o veículo mais antigo em circulação, reconhecido pela qualidade jornalística e independência editorial – apesar de financiado pelo governo e também cumprir o papel de diário oficial –, o jornalão austríaco sofreu os efeitos da mudança legal aprovada pelo Parlamento em 27 de abril, que alterou as regras de publicação de propaganda e anúncios e liquidaram a lucratividade da editora. A revista alemã Der Spiegel estimou a perda em € 18 milhões (R$ 93,78 milhões), provocando a extinção de 63 cargos e reduzindo a equipe editorial de 55 para 20 profissionais.

A edição de 28 de junho trouxe outra capa de impacto, com a palavra “ENDE” (fim, em alemão) em maiúsculas garrafais, com as quatro letras compostas pelos nomes de todos os parlamentares que votaram contra a continuidade da edição impressa.

Doravante, o Wiener Zeitung vai operar apenas como site, rebatizado para WZ – uma forma de diminuir a identidade vienense do nome original e assumir uma voz jornalística de toda a Áustria. “Como marca do novo começo, estamos deixando um pouco para trás o nome com foco em Viena”, informou editorial do jornal, que seguirá com financiamento oficial e linha jornalística independente.

A mudança não será pequena. A previsão é que o conteúdo do site não contemple mais notícias diárias e factuais. O WZ promete editar também um podcast semanal e um documentário mensal (em vídeo) e, sem dar detalhes, pretende voltar com um produto impresso em 2024.

Mercado Uma nova cena vem dominando o mercado editorial global desde que a revolução digital decretou a agonia do formato tradicional impresso de jornais e revistas, sem respeitar porte, nacionalidade e segmento. Num piscar de olhos, as edições digitais reduziram de forma drástica ou simplesmente tiraram de circulação edições impressas de grandes veículos, instaladas com solidez nos hábitos de leitura de gerações inteiras.

Nesse ambiente implacável, mais uma notícia dolorosa vai apagando letras impressas: a tradicionalíssima revista mensal National Geographic, publicada desde 1888, deixará de circular em 2024. A partir de agora as bancas só verão a lendária capa com borda amarela em edições especiais, caso seja mantida a promessa dos editores.

Desde que as vendas da revista física passaram a representar baixo percentual (cerca de 1,8 milhões de exemplares) da circulação total, a Walt Disney Corp., atual controladora da publicação, tomou a decisão de centrar o foco na produção de conteúdo digital. Os assinantes seguirão recebendo suas edições impressas, mas, muito provavelmente, as assinaturas serão descontinuadas mais adiante. Esse novo posicionamento de mercado provocou muitas demissões na equipe editorial da NatGeo.

História Há quem ainda lembre dos tempos em que jornais velhos tinham uma segunda função quase automática: embrulhar peixe no mercado e feiras livres. Noves fora a questão sanitária, há um romantismo inegável no velho costume estabelecido de forma intrínseca entre comerciantes e clientes. Também são memoráveis as cenas de algumas pessoas encarregadas da limpeza de ambientes, que não conseguiam entender a ordem de jogar fora os jornais de ontem. “Esse jornal é velho, se está novinho em folha?” era uma pergunta que decerto encafifava alguma faxina.

A arte de imprimir notícias e fazê-las circular começou (em 59 a.C.) com o romano Acta Diurna. Porém, seu aspecto não tinha nada a ver com esse formato de jornal que encontramos nas bancas. Ao contrário, era esculpido em pedra ou metal e ficava exposto em locais públicos. De incríveis edições diárias, trazia avisos oficiais do império, deliberações políticas dos poderes (imperador, senadores e juízes) e eventos sociais. Cópias eram distribuídas por diversos pontos do vasto império, para que governadores conhecessem e cumprissem as novas leis publicadas por Roma. Visionário, o imperador Júlio César determinou que edições fossem guardadas como registro histórico e fonte de pesquisa. A publicação tinha como slogan publicare et propagare (tornar público e propagar).

O desenvolvimento da máquina de imprensa pelo alemão Johann Gutenberg em 1439/1440 – há registro de algo similar criado pelo inventor chinês Bi Sheng no século 6 e outros modelos na Europa medieval, mas a de Gutenberg mostrou-se mais viável – mudou de forma radical a produção, divulgação e leitura de escritos. Começou pela impressão de cópias da Bíblia e ganhou corpo na Reforma Protestante, com a reprodução dos panfletos luteranos veiculados a partir de 1517, dando início a uma revolução na disseminação da palavra escrita.

Em 1605, o editor e gráfico alemão Johann Carolus pediu ao conselho municipal de Estraburgo (hoje cidade do leste francês, fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico) autorização para publicar seu Relation aller Fürnemme und gedenckwürdigen Historien, reconhecido pela Associação Mundial de Jornais como o primeiro jornal impresso da história. Na verdade, ele andava cansado de escrever à mão em papel produzido com velhos trapos e é pouco provável que tivesse noção de que estava criando um novo meio de comunicação que ajudaria a mudar o mundo.

Naqueles tempos as novidades eram transmitidas pelos viajantes, os “repórteres” pioneiros. “Os jornais se desenvolveram ao longo das rotas de comércio. Os comerciantes que as utilizavam reuniam notícias, as anotavam à mão, copiavam e então distribuíam. Mas o advento da imprensa permitiu também imprimir jornais. Foi isso que ocorreu em 1605”, diz Gabriela Toepser-Ziegert, do Instituto de Pesquisa de Periódicos de Dortmund, Alemanha, falando do processo de surgimento das notícias impressas de forma sistematizada a partir da iniciativa de Carolus.

Como divulgar notícias locais era proibido por censura, os primeiros periódicos tinham linha editorial internacional. Seus principais temas eram amplos: novidades sobre o papa, um telescópio inventado por Galileu Galilei e a pirataria no mar Mediterrâneo, por exemplo.

A experiência de Carolus ainda não tinha a forma de jornal como conhecemos hoje, era um pequeno livro de notícias com apenas uma coluna de texto. A primeira publicação de notícias com folhas verticais grandes e várias colunas definidas foi o Courante uyt Italien, Duytslandt, &c., lançado na Holanda em 1618. Algo que poderíamos chamar de jornal sob a perspectiva atual.

A modernidade trouxe reformas editoriais espetaculares às publicações impressas. Talvez a mais encantadora tenha sido a chegada das cores às páginas. Hoje vivemos a revolução digital que, de forma implacável, tem decretado a saída de cena dos últimos heróis da resistência da tinta sobre papel.

Depois que o Wiener Zeitung encerrou sua gloriosa história impressa, o ranking dos jornais mais antigos do mundo em atividade tem novo desenho. Quem assume a primeira posição é o alemão Hildesheimer Allgemeine Zeitung, que estreou em 1705 – dois anos depois do diário austríaco. Entretanto, tem mais gente na disputa: o italiano Gazzetta di Mantova, de perfil independente, garante ter sido publicado pela primeira vez em 1664 e The London Gazette, um dos jornais oficiais do governo do Reino Unido, chegou às ruas em 1665, mas não publica notícias tradicionais porque é dedicado a comunicados oficiais.

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