Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

Samba da bola doida

Reto Scheiwiller/Pixabay

Samba da bola doida

  • Heraldo Palmeira e Sylvio Maestrelli

Na distante e futebolisticamente saudosa década de 1960 alguns dos expoentes de nossa crônica esportiva afirmavam que o Brasil do futebol só evoluía dentro das quatro linhas do gramado. Tinham razão. Hoje, nem isso. A cada dia ficamos para trás e os (maus) exemplos se sucedem. Nos clubes e na Seleção, passando pela CBF, arbitragens, gramados. De modo particular, esses últimos dias têm sido péssimos. A começar por um calendário insano e do número de jogadores lesionados, absurdos que não parecem incomodar de verdade.

Fernando Diniz, um técnico que atua desde 2009 sem qualquer currículo que impressione – o único título relevante foi o Campeonato Carioca de 2023 – é o velho novo treinador da Seleção. Rotulado pejorativamente por muitos torcedores de “cavalo paraguaio” porque começa seus trabalhos a todo vapor, vira xodó da imprensa local, é chamado de revolucionário tático e depois vai afundando até ser despedido por fracassos. Não há como negar esse filme que se repetiu em vários clubes grandes e pequenos. Agora foi escolhido pela CBF para comandar a Seleção principal do Brasil, a gloriosa Amarelinha.

O que a CBF está dando a entender (de forma enviesada, para variar) é que será um mandato-tampão até a chegada do italiano Carlo Ancelotti, que já estaria apalavrado com o presidente Ednaldo Rodrigues para quando encerrar seu contrato com o Real Madrid, em junho de 2024. Segue o pé atrás, Diniz é boleiro e queridinho de muitos “filhotes” de Tite – todos de triste memória nas duas últimas Copas do Mundo. E vai se manter técnico do Fluminense ao mesmo tempo em que comandará a Canarinho, num arranjo no mínimo esquisito dentro do que foi estabelecido em contrato em termos de acúmulo de funções, procedimentos e dedicação.

Diante dessa situação esdrúxula, analistas, dirigentes de clubes, técnicos e torcedores começaram a tagarelar e até levantar hipóteses e hipóteses. Uns dizem que os jogadores do Fluminense andam rindo à toa, de tão próximos que estarão de convocações. Mas há quem acredite que ele não convocará nenhum tricolor nas Datas FIFA caso isso possa prejudicar o time nas disputas dos torneios do calendário tradicional.

Uma das primeiras providências de Diniz no novo cargo foi endeusar Neymar, um dos seus “patrocinadores” ao cargo, nominando o jogador como “indispensável”. Fez a média mais que previsível. Afinal, Neymar não é Tchê Tchê, jogador que hoje atua no Botafogo e que Diniz humilhou durante um jogo em que o São Paulo (time que comandava na época) perdeu para o Red Bull Bragantino. Xingou-o aos berros de “ingrato”, “perninha” e “mascaradinho”, transferindo para o atleta sua frustração pelo mau resultado que era muito mais sua própria responsabilidade. Como o técnico também acumula formação acadêmica em psicologia, talvez esse tipo refinado de especialista das mentes alheias seja útil à CBF, caso tenha coragem de dizer verdades a alguns farsantes que andam emporcalhando a Amarelinha.

Tem muita gente acreditando que a contratação-tampão de Diniz foi uma jogada de mestre do presidente da CBF, apostando na fama de “cavalo paraguaio” do técnico. Assim, vencida a fase de encantamento inicial, quando o time começar a despencar será exatamente a hora de Ancelotti chegar para assumir o comando. Felizmente, existem 6 vagas garantidas para seleções sul-americanas na Copa 2026 (e uma sétima pode se salvar na repescagem). Com essas chances múltiplas parece que nem tudo está perdido, e que ninguém economize orações para o anunciado (pela CBF) ano sem Ancelotti passar logo.

Enquanto isso, os treinadores portugueses e auxiliares que estão por aqui dão, em suas entrevistas sempre diretas e muitas vezes boquirrotas, a noção clara de como o futebol brasileiro carece de providências urgentes. As reclamações tomam tom agressivo sempre desqualificando o sistema e apresentando acusações sérias, enquanto o número de cartões amarelos e vermelhos conquistados por esses profissionais técnicos são contados em dúzias. Talvez seja interessante explicar a eles que perguntar pela mãe do juiz nem sempre é compreendido como boa educação por aqui.

A rodada do domingo 3 de julho registrou uma cena grotesca: a agressão criminosa do zagueiro Zé Ivaldo (Athletico Paranaense) contra o atacante Endrick (Palmeiras), que deveria ter gerado a expulsão do agressor. Como o jogo mal havia começado o juiz não apresentou o cartão vermelho, alimentando a lenda de que não se deve expulsar ninguém tão cedo, ainda mais do time da casa. Depois da repercussão, o de praxe: o árbitro foi afastado dos campos por algumas rodadas até que o assunto caia no esquecimento.

A jogada foi o estopim para o auxiliar técnico do Palmeiras João Martins afirmar, sem medir as palavras, “Nós entendemos que o futebol brasileiro passa uma imagem de que é o mais competitivo do mundo porque ganham vários. Mas ganham vários porque, muitas vezes, não deixam os melhores ganharem. Foi mais uma vez o que se passou hoje. É ruim para o sistema o Palmeiras ganhar dois anos seguidos”. Além de colocar em xeque a lisura do Brasileirão e da sua organizadora CBF, além da eletrizante campanha do Botafogo, também acrescentou que o nosso futebol é desacreditado na Europa, que ninguém vê os jogos em razão das arbitragens ruins. “Podem continuar a nos expulsar”, desafiou. Agora, outra praxe, o clube adotou o silêncio absoluto para aliviar a barra e todos estão assobiando e olhando para o céu no melhor estilo “Hum?! Parece que vai chover!”. A mais perfeita sinfonia de grilos.

Improvável que o futebol brasileiro seja ignorado no Velho Continente por qualquer motivo, pois continua um dos grandes fornecedores de craques para os clubes europeus – João Gomes (Flamengo) para o Wolverhampton (Inglaterra), Endrick (Palmeiras, hein?) para o Real Madrid e Vitor Roque (Athletico Paranaense) para o Barcelona, apenas para citar os mais recentes e reluzentes. A liga portuguesa, mais pobrinha, também está sempre com seus compradores por aqui.

Segundo consta, Martins nunca foi profissional disputado no Velho Continente. Aliás, nem mesmo seu chefe direto Abel Ferreira. Por isso, muita gente começa a avaliar que, depois de uma fase exuberante, a decadência que anuncia o fim de fases notáveis e que parece estar rondando o Palmeiras tem apimentado a língua e a atração por cartões da comissão técnica do verdão. Essa agressividade é quase um chavão quando os resultados começam a inquietar a torcida. Num patamar inferior, Wanderley Luxemburgo, outra nostalgia da modernidade brasileira, tentou explicar a fragilidade do Curingão sob seu comando: “Aqui não tem moleza. Quer moleza, mastiga água”. Nem Sócrates conseguiria tanto! Por isso, “só sei que nada sei!” foi entreouvido nos corredores da Fiel.

Essas manifestações controversas não são exclusividade dos estrangeiros. O que chama atenção é que a mídia pacheca não deu o mesmo peso às gravíssimas acusações do indefectível Luiz Felipe Scolari na mesma rodada, contra o sistema de arbitragem da CBF. Talvez ele esteja com dificuldade de explicar o fiasco do seu trabalho no Atlético Mineiro, contratação que muita gente não entendeu. E, mal passou uma semana, o técnico do Grêmio Renato Gaúcho, o vice-presidente do Goiás Harlei Menezes e o diretor executivo do Flamengo Bruno Spindel engrossaram o coro acusatório contra os homens do apito. O velho chororô sempre relacionado com os próprios interesses e cortinas de fumaça.

Claro que a arbitragem brasileira é desastrosa. Nem precisa ser especialista, basta ligar a TV. E o cardápio é amplo com juízes ruins (mesmo), omissos, acovardados, comissão de arbitragem evasiva, jogadores que buzinam o jogo inteiro e apitam junto, técnicos, auxiliares e reservas que bagunçam as laterais do coreto. E o VAR… Bem, o VAR é uma tremenda ferramenta de apoio que vai sendo desmoralizada sem piedade, que grita pela revisão de uma jogada: profissionalização do setor, com administração privada. Como qualquer empresa, como uma boa SAF. E nos livrando dessa comissão de arbitragem que não pode ser levada muito a sério.

Um amigo do Giramundo, com décadas de janela no mundo da bola, tem uma opinião formada: “Como o futebol é cercado de emoção à flor da pele, essa quantidade de jogos repletos de confusão em campo ajuda a alimentar e relativizar a violência e o caos que terminam se espalhando no gramado, arquibancadas e arredores dos estádios”. Os casos mais recentes – jogos do Santos sem torcida, jogador do Corinthians atacado em motel e torcedora palmeirense morta em confusão de torcidas (Palmeiras e Flamengo) na parte externa do Allianz Parque – parecem comprovar essa visão.

Quando teremos apurações rigorosas, inclusive dando oportunidade para os reclamantes profissionais apresentarem suas provas ou serem punidos em casos de infâmia? Não se pode é continuar nessa escalada de acusações fortes e públicas sem que se exija comprovação robusta ou punição rigorosa para leviandades. Muito menos livrando a cara de arruaceiros e bandidos infiltrados nas torcidas.

É fato que a arbitragem europeia tem nível técnico bastante superior, mas não está livre de graves problemas. Talvez fosse interessante contar a esse senhor Martins, do Palmeiras, que a Europa tem dado sinais horrorosos em questões civilizatórias. Vinícius Júnior, mais uma joia rara garimpada aqui no Brasil que o diga. Sem contar o treinador Carlo Ancelotti, processado pela Associação de Pequenos Acionistas do Valência (autoexplicativo ou piada pronta?) por injúria porque, ao defender seu atleta dos ataques racistas no estádio do Valência, disse que “todo o estádio estava chamando o jogador de mono” (macaco, em espanhol) e que o jogo deveria ter sido encerrado pelo juiz – como acarretaria sérios problemas para o clube, pode ter faltado coragem ao árbitro.

Você não leu errado: para esse grupo de valencianos, uma hipérbole tem muito mais importância do que uma injúria racial, “todo o estádio” pesa mais do que “mono” dito miseravelmente para ferir alguém difícil de enfrentar em campo – ah, deve ser porque são três palavras contra uma! Qualquer pensamento minimamente civilizado levaria esses ilustres senhores da tal Associação de Pequenos a denunciar os torcedores racistas do Valência, que criaram um problemão moral e financeiro para o clube no qual têm investimentos.

Nos últimos tempos viraram foco de mimimi as transferências de jogadores e técnicos em razão de projetos profissionais melhores e para ganhar (muito) mais dinheiro no exterior. O último alvo foi o técnico português Luís Castro, que realizou um trabalho excelente no Botafogo e recebeu proposta irrecusável do saudita Al-Nassr, por solicitação pessoal de Cristiano Ronaldo. Daria para encher um estádio com a quantidade de bobagens proferidas por cronistas esportivos, ex-jogadores de segunda linha que ocupam espaço na TV e torcedores incapazes de entender a realidade. É o mesmíssimo Castro que esteve na mira da torcida botafoguense no início do ano, que pedia sua demissão porque o time ainda não havia engrenado.

A inocência é tamanha que ninguém tem em conta que o mesmo John Textor, além do Botafogo, também é dono do Lyon (França), Crystal Palace (Inglaterra) e RWD Molenbeek (Bélgica). Acima de tudo, um competente homem de negócios que organizou a mudança e rapidamente trouxe Cláudio Caçapa – um funcionário seu (do Lyon) – para assumir o posto até a chegada do novo técnico, o também português Bruno Lage. E a campanha do time no Brasileirão permaneceu impecável, comprovando o valor de uma boa administração para os resultados em campo.

Atender os sauditas cedendo o treinador Luís Castro significou abrir portas para investimentos em seus times pelo Fundo Soberano da Arábia Saudita – que é dono do time inglês Newcastle e dos sauditas Al-Nassr, Al-Ittihad, Al-Hilal e Al-Ahli. Enquanto isso, os pachecos da mídia e das arquibancadas partiram para demonizar o português Castro. Quanta pexotada!

Nesse vaivém de profissionais, muitos jogadores estrangeiros em fim de carreira seguem desembarcando por aqui custando os olhos da cara, num movimento que até parece a montagem de uma liga de masters. Os mais comentados foram Luis Suárez (Grêmio) e Arturo Vidal (Flamengo). Duas experiências opostas que demonstram o erro dessa estratégia. Afinal, o futebol brasileiro já não é mais estação final de carreiras, subiu para o patamar de bom mercado e eventual linha de passagem ascendente para jogadores que buscam as ligas europeias e algumas outras onde o dinheiro também roda a rodo.

O Vasco está no meio de um processo de contratações semelhantes, infelizmente no modelo de baciada cujo grande destaque é o chileno Medel e tem na fila Lucas Pratto. Tudo isso enquanto o time ficou cerca de 20 dias sem treinador, até o anúncio do argentino Ramón Díaz, o que só ajuda a explicar a crise sem fim que está mantendo a nau cruzmaltina à deriva. Ao contrário da SAF Botafogo, a 777 – que assumiu o futebol vascaíno – tem sido sinônimo de indigência administrativa. A coisa também anda esquisita nos domínios de Corinthians e Santos.

Sobre Suárez vemos o efeito do tempo e das lesões, apesar do esforço comovente que ele faz para entregar o que o time esperava – há quem diga que ele também está balançado com um suposto convite do velho amigo Lionel Messi para jogar nos EUA. Apesar de tudo, seus números nos pampas são impressionantes e ele é o diferencial do time. Quanto a Vidal, o jornalista da ESPN Bruno Vicari resumiu com precisão: “o Flamengo caiu no conto do Vidal”. O que se viu foi uma entrega pífia de um sujeito hábil em marketing pessoal, alguém que chegou para viver férias de luxo com seu salário nababesco. Como malandro é o gato, o treinador Jorge Sampaoli deixou claro que não toparia aquela milonga, não carregaria peso morto. Agora, é problema do Athletico Paranaense.

É claro que algo de bom também vem acontecendo, como a intensa profissionalização do nosso mercado. Analisando as cifras que aparecem no noticiário das negociações, fica claro que milhão deixou de ser espiga grande. Flamengo e Palmeiras, nesta ordem, lideram essa nova realidade empresarial, embora o clube carioca esteja bem à frente e seja o único que tem, como diz o termo da moda dos cronistas esportivos, “profundidade de elenco” – nada mais do que quantidade de bons jogadores no plantel – para disputar com boas chances de sucesso (em todos) os torneios disponíveis. Não resta dúvida que o rubro-negro e o verdão estão servindo de farol para o resto, inclusive para tirar de cena essa casta moribunda de dirigentes que deu ao futebol brasileiro essa cara secular de casa da mãe joana.

Em mais uma parada deste giro topamos com uma boca de esgoto entreaberta, onde começam a emergir denúncias e processos por manipulação de resultados. Hoje, até ceder escanteio e tomar cartão tem valor nas bolsas de apostas. No balaio, a suspeita de envolvimento de jogadores da Série A do Brasileirão. Que as providências adotadas pela liga italiana sirvam de guia.

A lista de problemas crônicos é longa e não há sinais de arrefecimento no horizonte. Talvez isso ajude a compreender a posição iconoclasta de Ednaldo Rodrigues em buscar alguém do porte de Carlo Ancelotti para comandar a Seleção Brasileira, aceitando condições incomuns para ter um dos maiores técnicos de todos os tempos. Parece que a aposta numa figura de talento inquestionável no futebol mundial é indispensável para iniciar qualquer tentativa de recuperação de imagem do que já foi “o melhor futebol do mundo”. Ele pode estar enxergando o futuro com precisão e o tempo dirá.

Agora entrou no radar do país a Seleção Brasileira feminina, que está do outro lado do mundo para disputar a Copa do Mundo da categoria, na Austrália e Nova Zelândia. Está sobre os ombros das meninas, que ficaram relegadas ao milésimo plano desde sempre, a esperança de conquistas internacionais num momento de incômoda, vexaminosa e duradoura aridez dos marmanjos estelares. O abismo é tal que Marta foi eleita várias vezes a melhor jogadora do mundo e basta pensar na distância que ela está de Lionel Messi em reconhecimento. A culpa não é do talento, mas da falta de estrutura e visibilidade.

Pelo menos, as meninas já deram uma pista de que profissionais estrangeiros podem trazer ótimas soluções. Hoje o comando está com a treinadora sueca Pia Sundhage, ex-futebolista e técnica reconhecida no mundo. Depois de um trabalho de renovação e descoberta de novos talentos, Pia colocou a Canarinha na oitava posição do ranking da FIFA. Se conquistar a Copa do Mundo vai botar água na fervura da prosa torta contra a chegada de Ancelotti no lado masculino.

Outro sopro animador é ver a quantidade árbitras ocupando espaço, inclusive apitando jogos masculinos – Neusa Back esteve na Copa do Catar e Edina Batista atuou em Libertadores, Brasileirão e Mundial de Clubes.

A Copa do Mundo feminina vai dar um refresco para aquele mundo futebolístico masculino repleto de jogadores mascarados e violentos, juízes medonhos, jogos que provocam raiva ou sono pelas táticas sacadas do museu de grandes novidades por esses motivadores ultrapassados fantasiados de treinadores. Pena que seguirão no ar as resenhas modorrentas lotadas de cronistas sabichões e ex-jogadores que nunca foram exemplo de nada, mas viraram palmatórias do mundo. Com todo o ranço moralista e autoritário correspondente.

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