Por Heraldo Palmeira
Los Angeles
Nova York
São Paulo
Lisboa
Londres
Fase da Lua
.
.
25 de novembro de 2024

KALUNGA MELLO NEVES Devaneio com vinho

Vinotecarium/Pixabay

Devaneio com vinho

  • Kalunga Mello Neves

Ordeno a Alexa que toque mpb e ela me atende. Logo estou ouvindo a voz cristalina de Marisa Monte colorindo meus ouvidos com palavras doces. As palavras ásperas do locutor do jornal da TV ficam em terceiro plano, anunciando – está quase inaudível o que ele diz – punições para alguém que não pensa como alguém. No outro cômodo da casa, uma criança brinca com um macaco de pelúcia. O macaco veste uma camiseta do Santos. E quem canta agora é Ivan Lins.

Sirvo-me de mais uma taça de tinto português e espero sem pressa pelo entregador de pizza. Imagino que sejam, se tanto, oito e meia da noite. O gato do vizinho não está miando e isso me faz pensar que, nas outras vezes, quando ele mia, eu nem percebo. Sorrio das minhas idiotices, e me considero um sujeito feliz proporcionalmente às circunstâncias.

Vou ao banheiro, para isso tenho que atravessar um corredor imenso e escuro. Adoro me olhar no espelho, me dizer “Olá!” e perguntar por mim. Sou simpático comigo, me respondo geralmente afável. Dei de não me reclamar muito, percebo que tem me feito bem.

Sou um old man retrô por natureza; me distraio a rever retratos antigos, a reler revistas de outrora, a relembrar retalhos presentes recheados de passado. Choro por dentro, sei lá se de emoção ou remorso, revisito minha cidade pequena, tanto tempo longe dela, e saudade me dá de quase tudo e de muitos.

Os segredos que guardei não tenho para quem contar. As novidades continuam me habitando, e sou despertado pelo tilintar da campainha. Chegou a pizza, a mesa já está posta. Um prato só. Uma taça só. Eu. Só – já não vi a criança brincando no outro cômodo.

“Alexa, toca um tango”, eu peço. No sofá, a me esperar sem hora marcada O Jogo da Amarelinha. Faço um brinde aos meus devaneios. Solamente una vez, eu canto baixinho acompanhando el cantante portenho. “Gracias a la vida!”, eu grito. No silêncio repentino, a falta de um miado me enerva um pouco…

O vinho cumpre seu papel de levantar a vida num voo inebriante. Antes que eu decrete o fim da minha noite de prazer faço anotações rabiscadas para o Giramundo, tratar bem as palavras é fundamental. E Alexa me dá de presente um epílogo arrebatador: Libertango, Piazzolla sem meias palavras.

*KALUNGA MELLO NEVES, escritor e brincante

©