Por Heraldo Palmeira
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23 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Mãos de vida inteira

Miguel R. Perez/Pixabay

Mãos de vida inteira

  • Hayton Rocha

“Tanto tempo depois, que coisa boa ver vocês dois ainda caminhando de mãos dadas!” – disse uma amiga de minha mulher, contemporânea escolar no começo dos anos 1970, ao cruzar conosco no calçadão da praia de Ponta Verde, próximo ao Marco dos Corais, em Maceió. Achando pouco, completou: “É coisa pra mais de 100 anos!”. E a julgar pelo riso enigmático de minha mulher, gostou da forma pela qual somos percebidos.

h, essas criaturas misteriosas e sensíveis! Tudo em nome do sexto sentido, da emoção! Não sabe a amiga dela que, antes de “coisa boa”, mãos dadas, aqui tem a ver com diminuir o risco de uma queda precipitar o desfecho da caminhada, via concussão cerebral, fratura de bacia, cotovelos ou tornozelos de seminovos com as articulações desgastadas pela malvadeza do tempo, “tambor de todos os ritmos”, como diz o poeta. Sem falar dos males crônicos, objeto de interesses conflitantes entre o plano de saúde, o fundo de pensão e a indústria farmacêutica.

Tudo bem, pode ser ilusório. Digo isso porque não boto tanta fé nos poderes da santa que me segura pela mão, com seus 52 quilos sobre metro e meio da cabeça aos pés, conseguir evitar o tombo do mamute aqui, com mais de seis arrobas há décadas. Isso, mesmo sendo tratado à míngua quanto a bolo souza leão, caldo de cana, chope, cocada, doce de leite, pão doce, pastel, pirão, pudim, rapadura, tapioca e outras “coisas boas” que é melhor esquecer pra não engolir saliva.

Não sabe a amiga de minha mulher o quanto nos custa a caminhada matinal, a começar pela travessia da avenida em direção ao calçadão, sinalizando, feito duas bestas, a intenção de usar a faixa reservada aos pedestres, enquanto alguns motoristas, motoqueiros e ciclistas (filhos de mães solteiras e pais incertos) fingem não perceber e nos ameaçam quebrar canelas e costelas ou, no mínimo, aparar as unhas de nossos pés com suas rodas inquietas e raivosas.

Se não infartamos com os sustos provocados por esses miseráveis, nem ainda transferimos aos nossos herdeiros a incumbência de repartir os caraminguás que juntamos em nossa jornada cigana, é provável que já desfrutemos de músculos cardíacos mais robustos por conta do exercício aeróbico diário. Se bem que, a qualquer hora dessas, entre uma batida e outra do coração, tudo pode mudar.

Mas nessa toada, lá se vão mais de três décadas de calçadões. Desde que me vi obrigado a abandonar as peladas – ou elas a mim, nunca sei, quando perdi a esperança de ser convocado pela Seleção Brasileira – e fomos morar no Recife, onde, toda manhã, driblávamos dejetos caninos entre as praias de Boa Viagem e do Pina.

Que fique bem claro, nós nunca encontramos pelo caminho la belle de jour, a moça dos olhos azuis como a tarde de um domingo, decantada por Alceu Valença como a mais linda de toda a cidade, para quem, aliás, escrevera o seu primeiro blues. Talvez porque, insone ou notívaga, sei lá, ela dormia tarde da madrugada e não conseguia acordar cedo. Poetas não mentem; se tanto, aumentam. Muito!

Quando eu era menino – não parece, mas já joguei no time –, ainda em Maceió, trabalhei como office-boy num grande banco, sendo um dos responsáveis pelo intercâmbio de documentos entre setores espalhados por mais de 10 andares. A ansiedade natural dos imberbes e a presunção de que assim agradaria “ao patrão” não me deixavam esperar pelos elevadores, sobretudo se me cobravam celeridade nas entregas.

Na época, andei lendo em Seleções (versão brasileira da revista norte-americana Reader’s Digest) que subir oito lances de escada por dia reduziria em 1/3 o risco de mortalidade precoce. Resultado: subia e descia escadas o dia inteiro, seguro de que, agindo assim, seria visto como Raul Seixas em Ouro de Tolo, isto é, um cidadão respeitável, empregado, ganhando 327 cruzeiros mensais de salários.

Não demorou muito e um colega cascudo, preguiçoso até pra se levantar da cadeira no final do dia, me viu no corre-corre e perguntou, fingindo ter dó de mim: “Você sabia que, em 1853, um americano chamado Elis Otis gastou uma grana preta pra inventar o elevador de passageiros?” E antes que eu confessasse a minha ignorância, disparou: “Deixe de ser besta, rapaz! Você acha inteligente não usar uma coisa boa dessas?”

Tinha razão. Passei a usar também os elevadores. Mas até hoje me lembro daquela figura lerda (que partiu cedo pro chamado descanso eterno) toda vez que, por exemplo, me vejo numa escada rolante sem mover uma pálpebra.

Falando em escada, diz minha mulher que, de mãos dadas, quem sobe ou desce não precisa de corrimão. Eu, que não sou besta e disfarço bem minha pouca leitura sobre o que está nas entrelinhas, faço de conta que acredito.

Melhor assim, a esta altura da caminhada.

*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro

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