Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA O silêncio dos sinos

Dedés de Milton/Alameda

O silêncio dos sinos

  • Heraldo Palmeira

A cidadezinha agora está em silêncio, há uma solidão correndo pelas ruas e becos. Até há pouco, tudo era alegria e festejo à padroeira, sinos e difusoras anunciando rituais.

Reencontros, abraços, sorrisos, vozerio enchendo todos os espaços. Tempo dos que moram fora chegarem para reentrar no passado feliz, abrir as portas das casas ancestrais. As tradicionais conversas nas calçadas com familiares e amigos. As refeições em família tentando remontar as mesas fartas em que patriarcas e matriarcas sentavam às suas cabeceiras pontualmente na hora marcada e nenhum talher era movido antes da oração. Tempos em que o prato do patriarca ser servido antes de todos era costume sagrado, quase dogma.

Foram-se os dias intensos de vasta programação religiosa, tema central da festa aguardada ano inteiro, e todos os eventos sociais agregados. Murchou o momento alto para o comércio local e voltou o movimento cotidiano, onde os cadernos de fiados e a confiança no freguês ainda dão tom, quase como o aval antigo do fio de bigode que aqui e acolá é lembrado por alguém no meio da prosa.

Andar naquela ausência de pessoas é como aceitar que a vida é escrita em momentos, o compasso entre certezas e incertezas, uma aposta no futuro feita às cegas sem qualquer garantia. Tanto que tantos não voltarão. Alguns, por certo tempo. Outros, nunca mais. Não há estatísticas, apenas dores quase físicas nos ausentes. Talvez o vendaval que caiu por quase um dia quisesse lavar essas almas. Quem sabe, umedecer com respingos as páginas da folhinha do calendário para facilitar o desfolhar dia a dia até a próxima festa.

Céu limpo de novo, as lembranças vão se formando como as nuvens intocáveis, mutantes, nômades. Aqui e ali chovem (ou choram?) saudades. A mais forte delas, uma sequência da imagem da padroeira no altar, descendo dele por mãos devotas para o andor da grande procissão, carregada em ombros fortes e fiéis, a volta para Sua casa, as flores levadas por impulsos e espasmos que desnudam a imagem da fé, a volta ao altar alto e protegido (ufa!), o ciclo encerrado.

O belíssimo hino até ali cantado em multidão a plenos pulmões agora soa sussurrado na memória, como síntese de todo aquele ritual. Toca nas nuvens dos computadores e há quem ouça nas nuvens de verdade, aquelas que ficam indo e voltando pelo caminho do céu porque conhecem o destino a ser cumprido pelos séculos dos séculos. Amém!

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

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