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Abismo noturno
- Kalunga Mello Neves
Talvez seja um pulo no abismo em uma noite de inverno. Latidos na madrugada não me incomodam. Nem mesmo o barulho dos motores dos caminhões, que teimam em cruzar a BR próxima do meu apartamento. Estou acordado mesmo. Faço palavras cruzadas, jogo paciência no celular, vejo séries na TV, beberico martelinhos de cachaça com butiá. Ah, e vejo fotos antigas. O tempo vai e volta e senta e levanta, depois finge que passa, acha graça de mim, me convida para andarmos juntos por alguns minutos, então voltamos à realidade quando vou ao banheiro e o ruído da descarga nos diz que os sonhos não suportam serem interrompidos por ruídos despoeticamente incorretos.
Admiro pela janela entreaberta a lucidez da noite; me vejo sentado na calçada contando as estrelas que se disponham a me acompanhar no tristonho prazer de ouvir canções silenciosas. Eu era só um pouquinho mais do que um menino. Sabia muito pouco de quase nada. Tinha tanto pela frente!
O desconhecido que desnudei com vivência e conhecimento, o ambiente familiar que me inseriu num universo em eterna construção e aprendizado, os valores aprendidos que o arco-íris da diversidade os coloriu do jeito que bem quis, a hipocrisia, alegria da incoerência, o amor, a fé… Tudo define o que sou, o que penso, onde quero chegar, já que, quanto mais ando e vivo, mais me sinto distante do ponto de chegada. Meu fim que tenha paciência…
Vou até a cozinha pegar um copo d’água. No relógio, cinco horas. Na folhinha, pregada na geladeira, vejo que o mês é agosto. Uma noite de inverno, portanto. Os caminhões não param de perseguir seu destino. Os cachorros, acho que se recolheram ao quentinho de seus aconchegos. No abismo noturno de sempre, me jogo com o que ainda tenho de coragem, e quando a manhã me der bom-dia, responderei com um longo e sincero sorriso. E irei me deitar.
*KALUNGA MELLO NEVES, escritor e brincante