Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

Liga saudita vai dar liga?

Tim Kawasaki – montagem (Copa 2022/Divulgação + Pezibear/Pixabay)

Liga saudita vai dar liga?

  • Heraldo Palmeira e Sylvio Maestrelli

Desde que o futebol se tornou o esporte mais popular da Terra, a Europa e a América do Sul ganharam status de terra fértil do jogo da bola. Tanto que a Union of European Football Associations (UEFA, fundada em 1954, com sede em Nyon, Suíça e 55 federações) e a Confederación Sudamericana de Fútbol (CONMEBOL, fundada em 1916, com sede em Luque, Paraguai e 10 federações) são as duas confederações regionais mais poderosas do sistema e que concentram os melhores jogadores e treinadores.

É inegável que o riquíssimo futebol europeu segue hegemônico como centro de elite do esporte, tendo diversas ligas poderosas – Premier League (Inglaterra), LaLiga (Espanha), Bundesliga (Alemanha), Serie A (Itália) e Ligue 1 (França), caracterizadas pelo elevado nível técnico e uma realidade financeira impressionante, transformando seus campeonatos em centro de atração dos maiores profissionais em atividade. A Champions League é um retrato pleno dessa realidade, a ponto de o PSG ter montado um ataque dos sonhos (Messi, Mbappé e Neymar) para livrar o time do pesadelo – que segue assombrando seus sonos – de jamais ter ganhado essa taça.

Entretanto, logo depois de encerrada a Copa do Catar 2022 a bola seguiu quicando nas areias do Oriente Médio e o mundo do futebol foi sacudido pela entrada na cena da Saudi Pro League (SPL), da Arábia Saudita. Os sauditas não economizaram no barulho e abriram as torneiras dos poços de petróleo sem parcimônia para criar um novo oásis artificial na região.

Na verdade, o investimento bilionário no futebol faz parte do projeto Visão 2030, que também envolve entretenimento e turismo, cujo objetivo é mudar a imagem internacional de um país marcado por uma ditadura familiar fechadíssima, conservadorismo e afrontas aos direitos humanos.

Falou-se muito que o ápice do projeto seria a Copa do Mundo 2030 – embora não tenha havido uma candidatura oficial, a pretensão de dividir a condição de país-sede com Grécia e Egito era pública. Segundo o jornal espanhol Marca, a ideia foi abandonada diante da força de uma possível candidatura conjunta de Portugal, Espanha e Marrocos, além da possibilidade de o Uruguai (sede do primeiro Mundial) liderar uma candidatura juntamente com Argentina, Chile e Paraguai exatamente no ano do centenário do evento.

A partir da participação positiva de sua seleção no Catar – a vitória de 2×1 sobre os futuros campeões argentinos eletrizou o país –, o governo saudita revelou ao mundo sua decisão de usar recursos de um fundo público bilionário para investir no futebol, incluindo o controle dos quatro principais times da liga: Al-Ittihad, Al-Nassr, Al-Hilal (os três primeiros colocados da última temporada) e Al-Ahli (atual campeão da 2ª divisão). Além desses clubes privilegiados, o Al-Ettifaq e Al-Shabab receberam recursos de outros investidores. Mesmo assim, ainda sobram outras 12 equipes que disputarão os torneios da liga sem esse nível de apoio e em nítida desvantagem técnica.

Para dourar a pílula do seu novo negócio, os sauditas definiram como perfil profissional para reforçar a liga jogadores midiáticos, com títulos em seus respectivos currículos, boa parte com mais de 30 anos, alguns em nítido declínio e considerados dispensáveis em grandes times ocidentais. A janela de contratações ora encerrada levou para o país uma lista com 32 jogadores de diversas nacionalidades, que atuavam majoritariamente nas ligas europeias.

Dinheiro não será problema. A esta altura, já estão sob o sol nas areias escaldantes Cristiano Ronaldo (o primeiro a chegar), Karim Benzema, N’Golo Kanté, Moussa Dembélé, Georginio Wijnaldum, Sadio Mané, Roberto Firmino, Neymar Jr. (o último a assinar contrato) e muitas outras figurinhas gomadas dos álbuns da meninada. E até o último instante em que a janela de transferências esteve aberta – a saudita fechou dia 7 –, uma comitiva árabe permaneceu na Inglaterra para convencer o Liverpool a vender sua estrela maior, Mohamed Salah. Segundo a imprensa, a proposta chegou a £ 200 milhões (R$ 1,23 bilhão) e sequer foi divulgado quanto o jogador – um dos maiores salários da Premier League – iria ganhar se o negócio fosse fechado. Lionel Messi escapou porque quis – riquíssimo, preferiu apenas ser feliz nos EUA, onde deverá faturar tanto quanto jogando numa liga de calendário sossegado, que continua parecendo uma reunião de lazer de velhos amigos e uma miríade de bons negócios.

As remunerações sauditas beiram o inacreditável. Além dos salários (verdadeiras fortunas) praticamente livres, incluem altas quantias por jogo disputado e postagens positivas do país. A partir do que foi divulgado, além de mimos e luxos, há até aqueles que resolveram exigir frotas de carros caros e batalhões de empregados, num misto de deslumbramento e ostentação.

Claro que a maioria desses atletas ocidentais fere quase todos os rigorosos princípios fundamentalistas do país, mas deverão seguir tolerados em nome dos negócios. Afinal, serão enquadrados na categoria “costumes estrangeiros” e vida que segue. Defensores e críticos da SPL e dessa “revolução” esportiva já iniciaram a disputa de opiniões mundo afora.

Os defensores afirmam que a maior prejudicada pela nova bússola árabe do mercado da bola é a mesma velha Europa, que mantinha há décadas os maiores orçamentos do futebol comprando jogadores de todos os pontos do planeta, sem levar em conta o desequilíbrio causado aos times incapazes de manter seus craques pela mesma disparidade financeira que agora beneficia os sauditas.

Jorge Valdano, argentino com passagem destacada no Real Madrid – jogador, técnico e dirigente –, entende que os europeus não têm do que reclamar, já que adotaram o mesmo comportamento dos sauditas durante muito tempo. “A Europa teria de se lembrar que foi a Arábia dos últimos 20 anos, esvaziando os continentes mais importantes de talentos. Tem de saber que surgiu um concorrente que tem dois direitos legítimos: um, o dinheiro para comprar, e dois, o amor ao futebol […] É um país que ama o futebol, mesmo que não tenha tradição ou formação”, declarou ao jornal La Nación.

Os críticos não deixam por menos, consideram que a liga está deturpando a competitividade do futebol quando afeta todos os mercados do mundo ao gerar distorções complexas com essa injeção artificial de recursos. Afinal, os clubes que obtêm seus lucros por meio de ações de mercado começam a ter dificuldade para cobrir as ofertas milionárias que têm chegado aos seus principais jogadores. Com isso, o ambiente de negócios ficou perigosamente inflacionado.

É uma equação complexa porque muitos atletas, inclusive algumas promessas, estão preferindo uma montanha de dinheiro em detrimento de jogar em torneios de elite do esporte, algo com que Valdano concorda. “Também saiu Gabri Veiga, uma grande promessa que está saindo da casca. Isso é praticamente abrir mão da glória por dinheiro […] Mas é preciso estar no lugar do menino quando algo dessa magnitude acontece. Eu não quero comentar sem ter passado pela experiência”, completou.

A disputa é desproporcional porque o grande investidor é o Fundo Soberano da Arábia Saudita (PIF), que destina dinheiro público ao futebol a partir de decisão pessoal do príncipe Mohammad Bin Salman (herdeiro da família real e atual primeiro-ministro) em seu projeto de melhorar a imagem do país. “O Estado, no final das contas, estatizou (falar em privatização neste caso não faz sentido) quatro dos 18 clubes da Liga. São o Al-Hilal, Al-Nassr, Al-Ittihad e Al-Ahli. Esses clubes têm uma injeção de dinheiro muito superior aos outros times, com estrelas internacionais como Benzema, Cristiano Ronaldo, Firmino, Kanté, Neymar”, analisa o jornalista Rodrigo Mattos, colunista do UOL.

Depois que Fabinho e Firmino deixaram o Liverpool para jogar na SPL, e incomodado com o assédio sobre Salah, poucos dias antes de fechar a janela de contratações o técnico Jürgen Klopp afirmou que o futebol europeu precisa ficar alerta com essa postura da Arábia Saudita. “Não sei quanto tempo vai durar isso, mas as próximas duas semanas serão um desafio porque, se acontecer algo, ninguém (na Europa) poderá mais reagir. Isso é algo que a UEFA ou a FIFA deveriam olhar porque precisamos proteger o jogo”, disse Klopp. “Ainda estamos um pouco surpresos com a atividade da Arábia Saudita. A diferença nos contratos é tão grande que isso causará conflito”, completou o comandante dos Reds.

Embora a agressiva postura de mercado que a Arábia Saudita adotou não seja novidade para a Europa, o dinheiro farto dando as cartas do jogo, é possível registrar uma diferença importante. Os times europeus são empresas cujos donos estão submetidos às leis do capitalismo e buscam receitas em diversas fontes – direitos de transmissão, bilheteria, material esportivo, patrocínios e outras ações de marketing. Mesmo nos casos em que Estados (árabes, por acaso) são donos de clubes (Manchester City, Manchester United, New Castle e PSG), existem mecanismos da UEFA, Premier League e LaLiga que, mesmo falhos, estabelecem investigações a respeito do fair play financeiro como tentativa de evitar desequilíbrios causados pelo poderio econômico contra os times mais pobres.

O movimento do futebol saudita tem similaridades com outras tentativas fracassadas do passado (ver a matéria Futebol de segunda linha, link abaixo). Da La Liga Pirata colombiana, repete a abordagem desenfreada aos atletas. Da antiga NASL norte-americana, a decisão de contratar jogadores em fim de carreira por custos astronômicos. Da Super Liga Chinesa, a prática de esbanjar dinheiro oriundo de uma política de Estado e oferecer regalias fora da realidade para os jogadores. Do Clube dos 13 brasileiro, a similaridade entre o fanatismo dos dirigentes, sempre um estopim de conflitos desnecessários para os negócios. Aqui, o clubismo terminou implodindo a liga e hoje já mina a tentativa de ressurreição da ideia por meio da Liga do Brasil (Libra) e Liga Forte Futebol (LFF), que nem se instalaram e já estão cheias de discordâncias em cláusulas de “estabilidade” e “unanimidade”, ambas relacionadas a interesses de receitas dos dois clubes de maior torcida – Flamengo e Corinthians.

Para contratar os 32 reforços que já estão no país desde o desembarque de Cristiano Ronaldo, a Arábia Saudita fez um investimento de altíssimo risco que atingiu a soma € 1,85 bilhão (R$ 9,8 bilhões), entre transferência de jogadores (€ 851,1 milhões/R$ 4,51 bilhões) e salários (€ 1.05 bilhão/R$ 5,56 bilhões), sem contar as outras tantas regalias. CR7 lidera o ranking com € 200 milhões (R$ 1,06 bilhão) por temporada, seguido pelos € 160 milhões (R$ 848 milhões) de Neymar. Dessa turma, o mais “pobrinho” é o brasileiro Roger Ibañez, que ganhará € 3 milhões (R$ 15,9 milhões) – nada mal para um zagueiro de 24 anos que trocou a Roma pelo Al-Ahli e tem muita areia pela frente para construir o cofrinho. Não estão nessas contas os ganhos de Dembélé e Wijnaldum, que não foram divulgados.

Se esses números estonteantes não fazem sequer cosquinha na riqueza disponível por lá, também não significam qualquer garantia de que o futebol cumprirá o papel desejado pelo governo de desinfetar a imagem internacional do país. Talvez consiga encantar a plateia local, o que não justificará o esforço.

É difícil crer que o público internacional do futebol passe a dar preferência – e seu dinheiro – à Saudi Pro League (SPL) em detrimento das sólidas e competitivas ligas europeias. Não parece fácil a molecada abandonar as camisas de Real Madrid, Barcelona, City, Liverpool, United, Bayern, Milan, Inter, PSG, Boca Juniors, River Plate, Flamengo, Corinthians, Fluminense, Palmeiras… Sem contar que, neste momento de crescimento do futebol feminino, ninguém imagina os sauditas incentivando suas meninas e mulheres a vestirem roupas esportivas com pernas à mostra em gramados e arquibancadas.

Mesmo no frisson de toda essa movimentação, uma pergunta cerca a aventura da SPL: até que ponto o governo saudita, em nome da internacionalização, vai flexibilizar costumes e tolerar as posturas repletas de “desvios morais” e estrelismos dos jogadores que está contratando a rodo, muitos deles famosos pelos excessos? Ainda mais se os excessos caírem no gosto da população e gerarem pressões por suas “nacionalizações”.

Há muita coisa em jogo e está em campo outra pergunta, ainda mais óbvia: essa liga vai dar liga?

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Futebol de segunda linha   https://giramundo.blog.br/futebol-de-segunda-linha/

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