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Cardápio de ocasião
- Heraldo Palmeira
Era apenas mais uma noite modorrenta de terça-feira. O restaurante, instalado há muitos anos num bairro residencial de classe média alta, seguia na mesma esquina. Mal escurecera, mas a clientela tradicional já estava por ali, algumas mesas ocupadas. Não era dia de grande movimento.
O homem gostava de sossego. Entrou e dirigiu-se a um ponto mais reservado, uma mesa do lado oposto à vidraça que dava visão ampla da rua – as mesas ao longo da vidraça costumavam ter a preferência da maioria dos frequentadores.
Uma família – pai, mãe e duas meninas – ocuparam uma mesa ao lado da do homem. A menina menor, quatro anos, se muito, ocupou sozinha duas mesas adiante. Ficou exatamente às costas do homem. Os pais quiseram saber a razão daquele isolamento e teve início o incômodo. A mocinha queria ficar ali, no canto do salão. Estava irredutível.
A mãe tentou e tentou. Quanto mais baixo e carinhosamente falava, mais a pequena rainha gritava e se esbaforia naquele choro sem uma lágrima, birra pura! A mulher voltou à mesa e foi a vez do pai, à distância e falando baixo, mandar recados à menina. Esforço inútil. Não satisfeita, ela seguia grunhindo e chorando, já incomodando o restaurante inteiro àquela altura. Pai e mãe confabularam e todos foram se juntar à soberana – justiça seja feita, a menina maior, ali pelos oito anos, traduziu-se em silêncio envergonhado.
Para surpresa geral, a menina foi sentar-se exatamente à mesa que a família acabara de desocupar, mantendo a gritaria e o choro cenográfico. Talvez tentando diminuir aquele vexame, todos voltaram quase por impulso ao ponto anterior, tentando dar a entender que tinham mudado de lugar apenas para ir resgatar a megerazinha indomada. Nem tiveram tempo de reacomodarem-se, a pestinha saiu e ocupou a terceira mesa. Sozinha, mantendo o showzinho insuportável.
Choveram olhares impacientes na direção daquele “espetáculo” e o clima entre pai e mãe alcançou o ponto de dedos apontados para culpas trocadas, enquanto os garçons compreensivelmente irritados se ocupavam em ajustar os desajustes de pratos, talheres, guardanapos e copos que a mocinha deixava atrás de si em cada mesa que ocupava. O pai foi ao banheiro, numa vã saída estratégica para se esconder daquela cena patética. A mãe veio ao pé do ouvido, falou “horas”. Nada, a gritaria continuou. A menina maior permanecia imóvel e sozinha na suposta mesa da família. A menina menor exercia em plenitude sua “autoridade” de dominar adultos vergonhosos.
O homem levantou-se e caminhou na direção do banheiro. No caminho, pediu com discrição ao garçom sua transferência para uma mesa diante da grande vidraça, que acabara de desocupar e era a mais distante daquela barafunda.
Cruzou com o pai da menina voltando da trincheira. Ele foi direto para as orelhas da filha, que ainda estavam ocupadas pela mãe – a gritaria continuava. Pai e mãe trocaram algumas palavras. Vendo de longe, não pareciam muito amistosas e tinham aquele tom de “toma que o filho é teu”.
O homem ocupou seu novo lugar. Mais alguns instantes eternos, a família desistiu do jantar e foi embora, para alívio geral. O garçom trouxe a comida deliciosa, pediu desculpas pelo transtorno e aproveitou para confidenciar que trabalhara noutro estabelecimento, cujo proprietário dizia que restaurante não é lugar para crianças. E a explicação era simples: “gritam, correm pelo salão incomodando todo mundo, excitam crianças que estavam quietas em outras mesas, não dão sossego aos pais e acompanhantes, o consumo da mesa é menor porque todos ficam tensos e demoram menos tempo na casa. Sem contar o risco de acidentes em razão de choques com os garçons carregando pratos quentes e garrafas”.
Com o silêncio instalado no ambiente, outras conversas em tom íntimo ficaram inteligíveis. Ao lado da mesa do homem, um casal conhecido na taba degustava a entrada guarnecida por um tinto italiano. A mulher, empresária, cinquenta e alguns, falava sem parar sobre as maravilhas comezinhas de Londres. Talvez não fosse iniciada no fato de que sociedades antigas e muito desenvolvidas têm virtudes incomuns ao Terceiro Mundo. O acompanhante, médico, trinta e tantos, parecia tenso e impaciente, ouvindo sem prestar atenção.
O soçaite local mexericava que tinham um caso. Ela era bem bonita. Diziam que à custa de procedimentos estéticos que ele realizava. Corria a versão de que doutor Murilo sentia desconforto pela inegável diferença de idade e, em nome da aparência jovem que os aproximasse, submetia Sônia a uma rotina de agulhas, ponteiras, lasers e até bisturis.
A noite ganhou tempero extra quando três moças lindas entraram. Uma delas, ex-namorada do rapaz, não economizou charme e ironia ao cumprimentá-lo. Desmanchou sem piedade o esforço que ele empreendia diuturnamente para que todos pensassem que Sônia era apenas uma amiga, uma tia…
– Oi, Murilooo! Tudo bem com você? Que carinha envelhecida é essa? – os dois beijinhos no rosto foram dados naquele ritmo próprio das melhores cadências da crueldade.
Ela bem que tentou salvar a noite pegando a mão do rapaz com carinho. Ele foi protocolar, não demorou naquele contato, preferia evitar qualquer amostra do afeto que mantinha escondido. A conversa murchou, como se o mapa de Londres tivesse sido percorrido por inteiro. Como ela mesma havia dito pouco antes, o metrô e os ônibus double deckers vermelhos eram pontuais. E os taxistas são obrigados a conhecer toda a cidade antes de desfilar naqueles magníficos black cabs.
Um tempo depois, o homem terminara o prato. Acompanhava o movimento calmo da rua pela vidraça antes de pedir o cafezinho de arremate. A menina irascível e sua família e o casal improvável já haviam saído. Ele teve a certeza de que algum deus do silêncio havia agido duas vezes. Enfim, o sossego estava reinstalado. Como cabia.
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural