Por Heraldo Palmeira
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22 de novembro de 2024

HAYTON ROCHA Ainda bem, Jaguar!

Luciana Whitaker/Reprodução/Blog do Hayton

Ainda bem, Jaguar!

  • Hayton Rocha

Velho vive repetindo histórias porque ninguém sabe o valor de um momento até que se torne uma memória. Quando repete, no entanto, nem a história nem ele são os mesmos. Ainda bem.

Jaguar, um dos maiores cartunistas brasileiros, chorava numa sala de cinema em Brasília, cidade onde morava em 2006 com Célia Regina Pierantoni, pós-doutora em saúde coletiva. Tinham acabado de assistir ao documentário Vinicius, de Miguel Faria Jr., reconstituição da vida e da trajetória artística de Vinicius de Moraes, reunindo imagens e depoimentos de amigos em comum com o Poetinha: Tom Jobim, Chico Buarque, Francis Hime, Carlos Lyra e Ferreira Gullar.

Vendo-o cabisbaixo, comovido, alguém tentou puxar conversa: “Já lhe disseram que o senhor é a cara do finado Jaguar?”. E as lágrimas secaram no mesmo instante, sob uma estridente gargalhada: “Mulher! Eu morri e ninguém me contou nada!”.

Quem me contou foi o próprio Jaguar, sete anos mais tarde, numa manhã de domingo, enquanto aguardávamos o transfer que nos levaria ao aeroporto, na recepção de um hotel na Bahia.

Menos conhecido como Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, Jaguar foi escriturário do Banco do Brasil por mais de 15 anos. Seu primeiro chefe, Sérgio Porto (1923-1968), o Stanislaw Ponte Preta, publicou vários livros, todos ilustrados por ele: Tia Zulmira e Eu, Primo Altamirando e Elas, Rosamundo e os Outros, Garoto Linha Dura, Febeapá–Festival de Besteira que Assola o País, Febeapá 2, Na Terra do Crioulo Doido, Febeapá 3, A Máquina de Fazer Doido e Gol de Padre.

Em 1969, junto com Henfil, Ivan Lessa, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Sérgio Cabral (pai), Tarso de Castro e Ziraldo, Jaguar fundou O Pasquim, jornal de sátira política que aprendi a admirar ainda adolescente, em 1972.

Conversávamos sobre as tiradas de Sig, o ratinho-mascote do jornal, inspirado em Sigmund Freud, o criador da psicanálise, quando ele me atalhou: “O rato era meu alter ego, sempre em crise existencial, apaixonado pela atriz Odete Lara”.

Falamos sobre a editora Codecri (acrônimo de Comitê de Defesa do Crioléu), responsável pelo projeto Disco de Bolso: vender em bancas de jornal compactos de vinil onde, no lado A, um nome consagrado na MPB lançaria uma nova canção e, no lado B, artistas desconhecidos ganhariam visibilidade na cena nacional.

O primeiro disco revelou o novato João Bosco, com Agnus Sei, dele e de Aldir Blanc, “apadrinhado” por Tom Jobim com uma obra-prima ainda inédita: Águas de Março. O segundo trouxe Caetano Veloso no lado A (cantando A Volta da Asa Branca, de Luiz Gonzaga) e, no lado B, o iniciante Fagner apresentando Mucuripe, sua e de Belchior.

Mas parou por aí. Para Jaguar, “o governo via naquilo algo mais político que musical e deu fim ao projeto”. Tem quem diga, no entanto, que o projeto merecia melhor gestão.

Conversamos ainda sobre a “gripe” que atingiu a turma de O Pasquim, ironia com que se justificou a ausência de vários jornalistas presos durante o governo Médici, inclusive sobre o “remédio” aplicado para atenuar os “sintomas”: alguns intelectuais (Antonio Callado, Glauber Rocha, Chico Buarque e outros) se juntaram para, com seus escritos, manter “respirando” o semanário.

Um desses colaboradores foi o poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade, que fazia questão de levar pessoalmente seus textos à redação do jornal. Para Jaguar, na verdade “o velho estava de olho numa boazuda com quem fui casado por uns 10 anos”.

Numa tarde, encharcado de uísque, Jaguar cruzou por acaso com Drummond e “soltou os cachorros”, ameaçando-o, caso insistisse em dar em cima de sua mulher. O poeta nunca mais voltaria à redação, mas continuou mandando sua contribuição periódica para O Pasquim, que seguia sendo mutilado pela censura do governo militar com cortes cavalares de textos, cartuns e charges (até hoje ninguém pagou por esse tipo de crime hediondo cometido contra as gerações futuras!).

Jaguar despediu-se com mais uma gargalhada, realçando um cinismo ácido, brilhante e escrachado ao mesmo tempo: “Como fui besta! Perdi a chance de entrar para a história sendo corneado pelo maior poeta da língua portuguesa!”.

Algum tempo depois, li numa entrevista que ele estimava haver bebido, em mais de 60 anos, “uma piscina olímpica de cervejas, sem falar nos destilados: uísque, cachaça, conhaque, rum, vodca, absinto, bagaceira, grapa, saquê, tequila…”. Isso, aliás, explica a cirrose e o câncer de fígado que quase precipitaram o fim da estrada para o autor da coletânea de crônicas Confesso que Bebi-Memórias de um Amnésico Alcoólico.

A última notícia que tive sua foi há sete anos, através do também cartunista Paulo Caruso, que nos deixou o ano passado. Caruso me contou que você seguia “viciado” em livros e jornais de papel, jazz, futebol, biriba e cerveja… Mas sem álcool, é claro. E acrescentou: “Jaguar diz que, quando quer ficar tonto, abraça e gira em torno de um poste!”.

Aos 91 anos, o lendário transgressor ainda resiste de pé feito uma vela acesa na escuridão (e no obscurantismo) da cena brasileira, ainda que a chama e o rugido já não sejam os mesmos. Mas a ironia, a irreverência e o traço continuam afiados. Ainda bem, Jaguar!

*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro

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