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Conversa fiada
- Heraldo Palmeira
Corre o ano da graça de 2017, no seu julho. Os bares estão repletos. Infelizes. Ninguém conversa mais como antigamente. Tudo parece superficial nas relações. A moda é dividir a vida entre os amigos e as redes sociais, inclusive na presença dos amigos. Saudade, eu? Nostalgia? Nada. Tristeza apenas.
Quem ouve nalguma mesa alguém falando a respeito da última que presta? Até porque as que prestam andam raras. Pra que falar de filmes, livros, discos? Discos? Tem quem nem saiba o que danado é isso se estiverem fora das hérnias! Pinturas e esculturas? É querer demais, quase humilhar.
De repente, Chico Buarque lançou disco novo. Vá lá, Caravanas é meio insípido diante de frutos deliciosos mais antigos, mesmo assim um alento diante do mar de porcaria que tem batido na nossa praia. Em poucas horas os discípulos do evangelho do politicamente correto dos insanos de todos os dias inventaram uma discussão, feita sob medida por quem perdeu qualquer medida e o senso de ridículo: acusar Chico de machismo por causa de um verso da música Tua Cantiga:
Quando teu coração suplicar
Ou quando teu capricho exigir
Largo mulher e filhos
E de joelhos vou te seguir
As feministas consideraram “um tipo de romantismo ultrapassado”. Bobinhas, fingindo ignorar a realidade afetiva do Brasil real, a terra que gerou a Lei Maria da Penha, para atacar Chico, logo ele, que soube como ninguém se fazer mulher em letras com alma feminina.
Os Tribalistas desembarcaram de novo pelo porto do rio adjacente do que sobrou da música nacional capaz de formar plateia, mas já encontraram a pergunta inútil fundamental “Por que passaram 15 anos mudos?”, como se ficar calado fosse proibido e obrigatória uma agenda de novidades. Essa gente do departamento de cobrança é admirável na falta de noção.
Quem se preocupa com as quatro estações ou, ao menos, sabe que elas existem complexas como o ciclo feminino? E que ninguém ouse botar a Lua e o ciclo das marés no meio da prosa. É quase desatino pensar que alguém pensa nisso nos bares infelizes da vida. E misturar ciclos e fases pode ser desastroso, colocar em curto-circuito as mentes monofásicas.
A quem diabos interessa a beleza das flores, que quase pedem desculpas pelos cantinhos que ainda ocupam fora das floriculturas? Até nos cemitérios predominam as flores mortas. Daqui a pouco, nem elas saberão a hora que a natureza vai murchar, cair, semear e renascer para dar frutos. As frutas? Aparecem sem gosto em feiras e mercados ou em polpas congeladas e, não demora, serão sintetizadas.
Estamos sendo treinados para falar somente das últimas besteiras, tão bestas quanto nós nos tornamos. Agora há lugar nobre para militâncias, maledicências, insolvências e penitências, numa onda incontrolável de abrir mão do belo, por menor que seja, em favor do feio cada vez maior. Claro, tudo deve correr pelas redes sociais. Não invente esse negócio chatérrimo de conversar ou telefonar. Escreva abreviado. Melhor ainda se conseguir traduzir tudo para emoticons.
É difícil para esses muderninhos se relacionarem com quem não domina sua semiótica. Se ligue, aprenda a rezar pela doutrina do Vale do Silício ou não será ninguém, seu analógico de uma figa! Tá bom, mande um áudio, esse novíssimo arremedo de conversa. Mas resuma tudo a nove segundos. Por quê? Quem sabe? Alguém disse e pronto. Mais uma das regrinhas, como a dos 140 caracteres, ora! Pelo menos, veja que progresso, já estão testando a possibilidade de aumentar para 280 e tem quem acredite que a duplicação vai diminuir a “gagueira” desse tipo de escrita.
Aprenda a falar da internet das coisas. Não importa que coisas sejam essas e que ninguém saiba explicar claramente para alumiar nossa ignorância digital. Invente virtudes para uma impressora 3D e não faltará quem acredite nas suas lorotas. Tem também a realidade aumentada, que é muito bom para impressionar incautos com mente reduzida.
Os apóstolos do mundo virtual não têm qualquer problema em viajar na maionese. E quando a coisa aperta, começam a usar termos técnicos estrangeiros sem a menor ideia do que significam. Sim, exatamente aquilo que conhecemos como “rota de fuga” foi ressignificado – palavra bonita, tão bonita que nem consta nos dicionários, eles mesmos correndo risco de extinção.
Como ainda existe alguém que não sabe o que é indústria 4.0? Santo Deus! Ninguém pode morrer sem essa informação – há fofocas dizendo que ela anda de intimidades com a internet das coisas. Se você está no Brasil, sossegue. Aqui, boa parte do parque industrial está na fase 1.0, pegando no tranco ou virando sucata. Melhor não bisbilhotar o futuro porque acaba de surgir o conceito 5.0 desse negócio no Japão. E olhe que eles têm os olhinhos apertados por lá.
A indústria que revolucionou a vida humana na Revolução Industrial virou a indústria de tudo. Impiedosa, sem tons flexíveis. A indústria refém da escala, do tudo ou nada. A indústria das máquinas para fazer o difícil ou repetitivo em grande escala e tornar o aprendizado dos ofícios um caminhante obsoleto para a morte. A indústria que inventou o entretenimento para substituir a cultura e a arte, que não se acanha em matar o fio da meada das coisas, amarelar o retrato da origem, trocar o saber ancestral por decoreba ou dados armazenados.
Ah, os tempos das artes e ofícios! Deixa pra lá, não tente explicar o que isso significa. É semear no deserto dos tempos modernos. Aridez. Quentura sem o contraponto do inverno. Oxalá as impressoras 3D, metidas a cavalo do cão, aprendam a fazer chover.
Vamos sobrando, do jeito que dá, trilhando uma trilhinha de nada, na maior cautela para não cair no buraco negro com fome de tragar tudo. É por isso que morro de medo de poeira cósmica, do tal do ano-luz que me faz ver, vivinha da silva, uma estrela que já morreu há bilhões de anos – que diabo de conta é essa? E olhe que nem bebi ainda, os bares andam infelizes.
Um mestre querido me disse que um pensador afirmou, certa feita, que haverá no futuro algumas ausências muito importantes (pela falta que farão) para o homem. A escuridão e o silêncio são duas delas. Talvez seja prudente, a quem pretende envelhecer, notar que este tempo horroroso parece já estar morto por falta de coisas banais que eram ótimas. Um tempo que parece se matar a cada dia. Iluminado demais e aos gritos.
A indústria do amanhã encheu o mundo de barulhos e luzes acesas o tempo inteiro. A madrugada está cheia de vozes, carros e motos a plenos pulmões, garrafas tilintando, palavrões embriagados, músicas ruins a toda altura, ruído poderoso dos caminhões do lixo em dueto com os gritos e assobios dos garis formando a suíte do amanhecer mais limpo. E nada disso acontece no escuro. Basta ver os coitados dos galos cantando muito antes de amanhecer, tamanhas luzerna e mixórdia ao redor.
Lembro dos tempos do meu pai, em que os homens tinham suas lanternas a pilha como acessório para iluminar, quando não era noite de Lua, o chão que acolheria o passo a passo da caminhada. Tempos em que era quase música ritmada o chiado do movimento dos pés sobre a terra nua com pedrinhas, que empoeirava sapatos para serem engraxados em casa até ficarem brilhantes de novo. Tempos em que a gente se divertia aprendendo a chamar com sotaque inglês aquelas lanternas de “flashlight”, e enchia o peito de orgulho quando nos era confiada a nobre tarefa de alumiar o chão. Conversa fiada. Tempos idos, nada mais.
Corre o ano da graça de 2023, no seu outubro. Os bares estão repletos. Infelizes. Ninguém conversa mais como antigamente. Em qualquer mesa, todos estão grudados em suas telas. Saudade, eu? Nostalgia? Nada. Tristeza apenas. Sem resignação.
Ninguém fala da última que presta porque as que prestam parecem nem existir mais. Filmes andam capengando em cineminhas de shopping e dependentes das plataformas de streaming. Livros perderam muitos esconderijos com a falência de tantas livrarias. Discos ressurgiram meio envergonhados num mercado quase secreto de vinis caríssimos. Pinturas e esculturas seguem no mesmo perímetro e a novidade é artista entregar telas em branco a museu.
Em Pindorama, o que era ruim ficou pior. Nem sei se dá para chamar de música o que anda socando os ouvidos alheios. Até Chico Buarque anda econômico, lançou ano passado o single Que Tal um Samba?, algo que não faria a menor falta se nunca tivesse existido. Mas não faltou alguém para “explicar” que era inspirado em Caetano Veloso, com pitadas de Beleza Pura. E…?
Talvez tenha sido uma coisa assim meio “todos os búzios, todos os ócios”. Ou não. O fato é que aquilo juntou banda, virou turnê, Mônica Salmaso a tiracolo, e agora é anunciado um “novo” álbum de velhas canções – Que Tal um Samba?, gravado ao vivo durante a turnê iniciada em 2022. Justiça seja feita, O Guri na estrada outra vez foi uma festa para a geração que caminhou contra o vento sem lenço e sem documento achando que ia mudar o mundo. Não, não é linguagem cifrada, é somente uma saudade boa do que poderia ter sido.
Ainda bem que o passado gerou novidades no presente. Os Stones lançaram Hackney Diamonds, o primeiro álbum de inéditas depois de 18 anos tocando as mesmas de sempre. Roger Waters revolveu todos os eternos e magoados fantasmas pessoais e gravou The Dark Side of The Moon Redux, um revival soturno com cara de redução drástica do clássico lançado pelo Pink Floyd em 1973. Tudo para tentar dizer ao mundo que o gênio criativo do grupo era ele. Brain Damage. A banda obviamente ignorou o ex-integrante comemorando os 50 anos do álbum original com um box contendo a versão remasterizada em vinil, CD e Blu-ray. Eclipse total.
As flores seguem tentando não murchar. As frutas estão cada vez mais sem sabor. As mentes monofásicas proliferam de forma exponencial e as besteiras estão no centro do palco. O desprezo pelo belo generalizou o feio. E nós nisso? Ainda mais bestas.
Indústria 5.0, internet das coisas, realidade aumentada, impressoras 3D tiveram seus 15 minutos de fama. As novidades são tantas – metaverso, IA, computação quântica – que já chegam com cheiro de naftalina em fundo de armário empurradas pela fila. É preciso escolher bem o tema para não soar desatualizado já na primeira frase das lorotas de impressionar incautos. A multidão que adora viajar na maionese continua crescente e os termos estrangeiros seguem em alta no mundo da ignorância coletiva.
A indústria do entretenimento vive agora de maratonar – haja neologismo no reino dos gerúndios! As franquias irritaram até Martin Scorsese, que levantou a bandeira “filme é filme”. Ah, os tempos das artes e ofícios!
Essa geleia geral não podia ser diferente desde que as redes sociais encheram o mundo de sábios sabendo de tudo e dando a palavra final desde a flexibilidade dos cachimbos de barro até a colonização de Marte. Profético Umberto Eco, “A internet deu voz a uma legião de imbecis”.
O mundo ficou chato, as pessoas não conversam mais, não escolhem mais, não são nada. Não há planos, não há métodos, tudo parece acontecer em espasmos. Dono de bicho agora tem pet e virou tutor. De bicho. Quando há uma separação, o juiz tem de perder tempo decidindo a guarda de cachorros, gatos e outros bichos.
Também pudera, é uma gente que paga caríssimo por academia para conversar bobagem, transformar os ouvidos do personal em penico, ocupar os aparelhos para navegar nas redes sociais, sabotar os próprios exercícios. Gastam os tubos para ir a shows de filmam o tempo todo. Os mais especializados, sequer olham para o palco, pois não podem perder o babado ponto com que está rolando nas redes sociais. Claro, também vale para o cinema ou qualquer evento, onde telinhas disputam espaço com o que está em cena.
É esse povinho descolado – da realidade, obviamente – que digita sem parar enquanto dirige automóveis e atrasa todo o fluxo do tráfego quando o sinal fica verde. Passa a menos de 30 num radar de 60 km/hora, porque sequer desconfia que aquele numerozinho que indica a velocidade no painel do carro é o mesmo das placas de trânsito. Trafega ocupando duas pistas. Não sai da frente e manda ultrapassar pela direita. Não consegue estacionar dentro das vagas. A mesma horda que não sabe diferenciar bagagem de mão e mudança de mão e é incapaz de entrar num avião sem incomodar geral antes, durante e depois do voo.
O mesmo povinho que, na falta de coisa melhor para fazer, inventou o tal masterdating, tratado como “tendência” e que consiste basicamente em “sair sozinho em encontros, passando um tempo de qualidade consigo mesmo para se conhecer e se cuidar melhor”, demonstrando que ninguém precisa esperar ninguém para fazer o que der na telha. As redes sociais estão cheias de vídeos de solteiros “em encontros românticos, só que em sua própria companhia” em restaurantes, teatros, parques, spas…
É preciso sair sozinho para se conhecer melhor? Sim, mas também vale um jantar romântico à luz de velas, em casa, com apenas um prato à mesa. É recomendável avisar aos dicionaristas que “encontro” ampliou o conceito coletivo, tornou-se individual. Não demora, teremos a senha “estou indo para a balada me encontrar comigo mesmo enquanto mim”.
“Disrupção” foi transformada em palavra-ônibus incumbida de emprestar tom inquestionável às maluquices pós-modernas. É bom começar a botar fé em quem acredita que o mundo está bem pertinho de se acabar? Talvez. Ou, em 2023, o vizinho 2017, que nem foi grande coisa, não pareceria tão melhor.
Pensando melhor, a música Que Tal um Samba? resume essa agonia:
Depois de tanta demência
Que tal um samba?
Puxar um samba, que tal?
Para espantar o tempo feio
Para remediar o estrago
Que tal um trago?
Um desafogo, um devaneio
Os galos cantam o amanhecer a noite inteira, enlouquecidos pela falta de escuridão e silêncio. São raros os lugares onde ainda é possível alumiar com um flashlight o chão poeirento do caminho de uma conversa fiada. Resíduos resistentes de tempos idos, nada mais.
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural