Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

Eu me basto?

Melk Hagelslag/RoonzNL/Pixabay

Eu me basto?

  • Heraldo Palmeira

Uma nova palavrinha da moda está rodando por aí como uma senha para os moderninhos parecerem moderninhos: masterdating. Ela não tem tradução direta para o português (namoro master poderia ser considerado algo próximo, master compreendido como exercício de comando, controle). Há quem considere um trocadilho com namoro e masturbação, uma espécie de sentido figurado para “ir sozinho”.

Num sentido mais polido significa um intrigante encontro com ares românticos que se propõe reformar a maneira como enxergamos os relacionamentos e a percepção de amor-próprio e desenvolvimento pessoal, onde a pessoa mantém domínio total da situação, se permite e se dá alegrias e prazeres para desfrute solitário. Algo como celebrar a própria companhia, um ato de empoderamento – outra palavrinha danada que anda empobrecendo nossa língua sofrida.

Masterdating é vendida como a nova tendência dos solteiros e toda sua construção está baseada na areia movediça das redes sociais – onde nasceu –, esse mundinho de fantasia onde é imperativo mostrar espírito descolado e felicidade em tempo integral, mesmo quando a vida real pode estar uma caca.

Na verdade, não é muito difícil perceber que a nova onda pode conter traços de filha bastarda da solidão e da dificuldade que o mundo moderno enfrenta nas relações pessoais. Na verdade, pode ser apenas uma antessala para a depressão.

Masterdating é basicamente a prática de sair para encontros e ficar sozinho neles, “passando um tempo de qualidade consigo mesmo para se conhecer e se cuidar melhor”. Para seus defensores, a vantagem sobre os namoros tradicionais parece girar apenas em torno do controle das escolhas. É como se fosse possível, apenas retirando o óbvio sentido coletivo da palavra “encontro” sem ao menos ter a delicadeza de avisar os mestres dicionaristas, tornar tudo mais fácil, resolver um problema emocional complexo num piscar de olhos.

Claro que segue livre o direito de sair sozinho no melhor estilo “eu enquanto mim” e não é de hoje que programas solitários podem ser ótimos. “Por que esperar por um encontro para experimentar aquele novo restaurante ou assistir a algum filme romântico no cinema? Pare de esperar que os outros te levem a lugares. Não se sinta constrangido por ser visto sozinho”, aconselha o médico especialista em saúde computacional e escritor Bruce Y. Lee.

A sensatez do óbvio pode ajudar a entender que fazer algo sem companhia também continua sendo instigante. O que ganha tom esquisito é dar personalidade de encontro romântico a um programa solitário, pouco importa se é alguém de autoestima elevadíssima.

A liberdade individual não acabou de nascer, não há novidade alguma em satisfazer a própria vontade sem precisar de ninguém. O problema é quando algo saudável recebe as sobrecargas infantilizadas das redes sociais para transformar em tratados filosóficos carências afetivas tratáveis em consultórios.

É exatamente quando se tenta emprestar a um privilégio milenar como a liberdade um ar de novíssima tendência social que a tragicomédia se instala. O mais impressionante é ver pessoas postando com orgulho e como exemplo seus “encontros românticos” com ninguém em restaurantes, teatros, cinemas, viagens, hotéis, cruzeiros, parques, trilhas, praias e outros locais públicos. O ápice dessa desconstrução emocional são jantares em casa, inclusive à luz de velas, com apenas um serviço à mesa – vale até pedir a comida do “encontro” por aplicativo, com direito a motoboy na entrega. Uma aula magna de romantismo pós-moderno! E uma forma perigosa de transformar um sintoma que ronda o ambiente da saúde mental em algo inovador e revolucionário pela óptica rasa das redes sociais.

A trilha sonora – claro que há uma – não deixa por menos. Trata-se de Flowers, da cantora norte-americana Miley Cyrus. A letra é autoexplicativa:

Eu posso comprar flores para mim mesma

Escrever meu nome na areia

Conversar comigo mesma por horas

Dizer coisas que você não entende

Eu posso me levar para dançar

E eu posso segurar minha própria mão

Sim, eu posso me amar melhor

Do que você pode

Os críticos já tratam o masterdating como mais uma neurose urbana que virou modismo e os disfarces sociais se encarregaram de transformar em tendência – expressão marqueteira para “ressignificar” (outra palavrinha da massa falida do idioma) o velho conhecido efeito manada. Uma forma perigosa de transformar um sintoma que ronda o ambiente da saúde mental em algo inovador e revolucionário. Tarefa simples numa sociedade cuja credulidade é assustadora.

Embora o masterdating ofereça uma ideia de liberdade e flexibilidade para fazer escolhas guiadas somente pelas próprias preferências, “uma premissa que gira em torno de dar a si mesmo toda a atenção e amor que um parceiro lhe daria” sem conotação sexual, simplesmente a atenção desejada num encontro ideal, é aceitável acreditar que essa prática poderá gerar solidão, limitações e perda da capacidade de compartilhar experiências. “Encontrar um equilíbrio entre tempo solo e interações sociais é crucial para evitar possíveis desvantagens e garantir um estilo de vida completo e gratificante. No entanto, se a pessoa acaba se tornando expert na prática do masterdating, evitando socializações, talvez isso signifique que seja a hora de trazer algum equilíbrio de volta à sua vida, que sua vida não precisa ser baseada em estar apenas consigo mesmo”, aconselha a especialista em relacionamentos Melissa Stone.

Flor do Lácio Quando definem o vocábulo “encontro”, os dicionários mantêm a palavra coletiva empenhada no encontro de amor com a língua portuguesa:

– Caldas Aulete: “Ação ou resultado de encontrar(-se), de chegar (pessoa ou objeto) diante de outra ou outro.”

– Aurélio: “Ato ou efeito de encontrar, de estar diante de alguém. Ficar imprevistamente face a face com uma pessoa ou coisa.”

– Houaiss: “Ato de encontrar(-se), de chegar um diante do outro ou uns diante de outros. Junção de pessoas ou coisas que se movem em vários sentidos ou se dirigem para o mesmo ponto.”

– Michaelis: “Ato ou efeito de encontrar(-se). Junção de pessoas ou coisas que se dirigem para o mesmo ponto ou se movem em sentido oposto. Fato de duas coisas se unirem.”

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