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A arte de acreditar
- Hayton Rocha
Azar de quem não crê! Sim, existem histórias tão surreais que parece que são inventadas. Como a de Manezinho, um menino cabeçudo, dentuço, míope, cerca de 12 anos de idade, que apareceu no começo do ano passado, sem documentos, vagando pelas ruas do Pontal da Barra, no entorno da lagoa Mundaú, na capital alagoana.
Meses depois, sofreria uma cirurgia para ressecção de um tumor cerebral. E o vidro da porta da sala cirúrgica ficou repleto de curiosos, todos querendo vê-lo falar enquanto era operado. Muitos, inclusive, diante do que ouviam, achavam que o caso se agravava com o correr dos minutos.
“Eu sou minha imaginação e meu lápis – dizia ele em voz alta no leito cirúrgico, ora mirando os médicos, ora a plateia sob espanto. “Quando o lápis acerta um erro, ele percebe e grita por uma borracha… Desaprender oito horas por dia ensina os princípios… Minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo da estrada. Gosto do desvio”.
Orientado pelo neurocirurgião, o menino matraqueva sem parar durante o procedimento, para garantir que nenhuma área do cérebro fosse afetada. “Tenho um senso apurado de irresponsabilidade. Só não desejo cair em sensatez. Não quero a boa razão das coisas. Quero o feitiço das palavras”, declamava.
A certa altura, lhe perguntaram se recordava de seu local de origem. Ele repetiu o que vinha dizendo desde que apareceu: “Não me lembro. Sei que passava o dia ali quieto, no meio das coisas miúdas. E me encantei. Eu queria fazer para mim uma naturezinha particular tão pequena que coubesse na ponta de meu lápis. As coisas que não existem são as mais bonitas”, pontuava.
Uma primeira convulsão aconteceu em março. “Ele estava dormindo, acordou de repente e se estatelou no chão”, explicava “Tia” Stella, uma artesã simpática que lhe deu casa, carinho e comida. “Chamei a ambulância e os médicos disseram que poderia ser estresse. Bastava um comprimidinho”.
Dois meses mais tarde, veio a segunda convulsão, que também não foi investigada. Em julho, ocorreu a terceira, da qual o menino não lembrava nada do que houve antes. Conversavam em casa, após o almoço. Ele se levantou para pegar café no fogão e acordou no hospital, internado para exames, pois caiu e ficou um tempão desmaiado. Ela o livrou de bater a cabeça no chão.
No hospital, decidiram fazer uma ressonância, que revelou um tumor na região do cérebro que controla a linguagem. “Quando o doutor disse que precisaria ser operado, fiquei preocupada, disse “Tia” Stella”. Só procurei saber se afetaria a voz de Manezinho. Daí a ideia do procedimento em que ele pudesse ficar acordado”.
Resolvi checar a história que me contaram e o próprio cirurgião revelou que era impossível não aplaudir o moleque ao final de cada “esquisitice” dita, ainda que incompreensível para alguns. Precisou solicitar que falasse com menos empolgação, pois mesmo com a cabeça fixa, a mesa cirúrgica se mexia com a intensidade da voz. E não parava: “Queria que a minha voz tivesse o formato de canto. Só uso a palavra para compor meus silêncios”.
O médico disse ainda que o menino recebeu anestesia e ficou desacordado apenas na primeira parte do procedimento para a neuronavegação com um computador que auxilia na localização do foco, na incisão e na abertura do crânio. Na sequência, a sedação foi reduzida e ele acordou, passando a responder a perguntas e executar algumas ações, como ler, escrever e falar.
Descobri que a técnica cirúrgica empregada com o paciente acordado existe há algumas décadas nos grandes centros e objetiva diminuir sequelas neurológicas, comprometimento funcional e agravos dos casos.
Durante a cirurgia, os pacientes são testados em atividades básicas como responder perguntas ou correlacionar figuras. Em alguns casos, é possível fazer o mapeamento antes da cirurgia, por meio de ressonância magnética, delimitando as regiões do cérebro relacionadas à fala ou às funções motoras, como também as fibras que conectam essas áreas.
No final da cirurgia, “Tia” Stella quis saber se Manezinho sentira medo. Ele balançou a cabeça negativamente e completou: “As folhas das árvores servem para nos ensinar a cair sem alardes. Não preciso do fim para chegar. Do lugar onde estou já fui embora”.
Já era madrugada quando ele sumiu como que por encanto da UTI, para perplexidade inclusive de “Tia” Stella. Ela suspirou ao encontrar um pedacinho de papel sobre uma almofada, olhando para a janela, de onde se via, na penumbra, um pé de manga carregado: “Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina. Aonde eu não estou, as palavras me acham”.
Ah, chegou a hora de dizer que esta é uma daquelas histórias inventadas, mas cem por cento verdadeiras. Azar de quem não crê! Eu só duvido de mim mesmo.
Nota: Texto inspirado na obra do poeta mato-grossense Manoel de Barros (1916 – 2014).
*HAYTON ROCHA, escritor e blogueiro
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