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Vamos ficar nessa?
- Heraldo Palmeira
Abri sem pressa as tintas do Ano Novo de Ferreira Gullar:
Meia noite. Fim de um ano, início de outro. Olho o céu: nenhum indício. Olho o céu: o abismo vence o olhar. O mesmo espantoso silêncio da Via Láctea feito um ectoplasma sobre a minha cabeça: nada ali indica que um ano novo começa. E não começa nem no céu nem no chão do planeta: começa no coração. Começa como a esperança de vida melhor que entre os astros não se escuta nem se vê nem pode haver: que isso é coisa de homem, esse bicho estelar que sonha (e luta).
Já voou a primeira quinzena de mais um janeiro, muita gente deixando as férias corridas para correr o resto do ano inteiro em busca do quê mesmo? E vamos na direção de fevereiro e março, nosso eterno Carnaval. Aí já vem Semana Santa… Dificuldade máxima de manter uma agenda mínima. O Rio de Janeiro não continua tão lindo como a gente gostaria. Chacrinha, o velho palhaço, já não tem graça porque, coisa mais sem graça, pouca gente ainda sabe quem ele foi. Aquele abraço!
Diga aí uma coisa: 2024 vai repetir todas as chatices de 2023 – que já repetiu as chatices dos últimos anos? O mantra será o mesmo, que insiste no discurso de que estamos vivendo o melhor dos mundos? Que este é o mundo moderno e que nós somos modernos? Vamos ficar nessa até quando?
Lembrei de quando passei recentemente num mesmo pedaço de uma grande avenida obrigatória ao meu trajeto – já contei a história aqui no Giramundo, dos almoços de Natal e Ano-Novo de um flanelinha e sua companheira (link abaixo), como se as duas datas fossem duplicatas da mesma figurinha desfigurada.
Lembrei da conversa com Timoneiro, um velho amigo. Continuava atualíssima – alguns anos antes tinha ido visitá-lo no esconderijo litorâneo onde vivia desde a aposentadoria. Eu era apenas mais um que conhecia aquele tom rascante há bastante tempo. Não era agradável concordar com aquele sujeito, mas havia um problema maior: era difícil discordar dele. Sobrenome de família, nele foi ganhando tom de alcunha respeitável. Os mais íntimos, como eu, diminuímos para Timon sem retirar um milímetro da representação.
Fez a vida andarilho. Foi executivo financeiro e sabia operar no mercado. Ganhou bastante dinheiro, mas vivia sem ostentação alguma. Passou por tantos lugares, viu coisas tantas que era inimaginável algum escaninho humano ainda capaz de surpreendê-lo. Para quem não o conhecia, era tiro e queda que suas perguntas soassem difíceis, até dolorosas.
Timon não levantava a voz. Nem era preciso naquele pequeno trecho perdido de litoral, distrito de uma cidadezinha, olhe lá se tinha 50 moradores. Livre de turistas. Praia de caiçaras com sua gastronomia acanhada e soberana. Ponto de partida e de chegada de pesca de subsistência. Parado no tempo com todas as vantagens disso. Antes de sairmos de casa, Marinete havia preparado um desjejum daqueles. Acredite, o café feito num fogão Jacaré legítimo, pintado no vermelho, branco e azul originas da Esso. E coador de pano.
Bastou descer uma pequena ladeira do alpendre até a areia beira-mar, driblando o sol pelas sombras de cajueiros e coqueiros. Ocupamos uma mesinha debaixo da palhoça de Nildo e Irene. Não podia haver lugar melhor para uma conversa sem ruídos – apenas o mar trazia sua música de ir e vir entre nós e a África lá do outro lado. Mal nos sentamos, foi só eu perguntar o que ele estava achando dessa ideia de modernidade que tinha virado moda…
– Podemos chamar de modernidade o que não passa de um amontoado de equipamentos e tecnologias, boa parte a serviço de um sistema econômico que adora protecionismos e isenções? Podemos mesmo chamar de modernidade esse modelo de sociedade que destrói a educação e aposta na ignorância coletiva? Algo que adoece as pessoas, que tem como premissa desconstruir as relações movidas por afetos, a convivência entre elas? Que modelo é esse onde gente deve viver sozinho, acompanhado de bugigangas eletrônicas e animais de estimação que têm até psicólogo? Deixaram de ser aqueles bichos domésticos que circulavam livremente nos terreiros e quintais? O que um cachorro pode contar ao analista? Au, au, au e o escambau? E se os bichos começarem a revelar as manias, neuroses e psicoses dos “tutores”, serão alforriados?
A primeira cerveja chegou estupidamente gelada. A garrafa estava “mofada”, na verdade. Brindamos. Nildo voltou para a silenciosa fiação da rede de pesca que prometera entregar ao amigo Xaréu no dia seguinte, Irene mais atrás na alquimia, já produzindo aromas inebriantes e intraduzíveis no fogão.
– Vamos seguir assistindo seres transformados em monstrinhos, monstros e monstrões que vão se espalhando por todas as idades como ditadores incontroláveis? Que incomodam todo mundo ao redor e ninguém pode dizer nada para não traumatizar ou contrariar os “bichinhos”? É normal ver crianças na primeira infância com ficha nos consultórios de saúde mental? É alguma ação corporativista para não deixar os pediatras com reserva de mercado?
Agora foi a vez de duas cumbuquinhas de iscas de peixe, pescada amarela e xaréu. Deliciosamente indispensáveis!
– O que pensar dos nossos amigos transformados em verdadeiros bananões depois que pariram essas criaturas? Por que se vangloriam de que elas já nascem chipadas, como se isso fosse algum sinal de inteligência? Que vantagem tem uma criança obcecada por telas eletrônicas? Por que ficou normal tantas delas na casa dos 40 aninhos ainda vivendo com os bananões que um dia juraram mudar o mundo? Era essa a mudança? Mudaram mesmo! Não é impressionante que estejam nas famílias – vítimas principais dessas figurinhas repetidas, egoístas e doentinhas – as primeiras vozes a defender os “coitadinhos”? Que tipo de sociedade acredita que vai chegar a algum lugar assistindo a avós bancarem filhos e netos, muitas vezes criando na mesma casa os filhos e os filhos dos filhos, aturando também genros e noras? E os filhos que vão enfiando filhos de relações tortas na casa dos pais, como se não tivessem qualquer responsabilidade emocional e financeira com suas crias extracurriculares, como se elas fossem apenas músicas incidentais na melodia original?
Timon se calou e olhou o mar como se buscasse uma lembrança, talvez refletindo sobre o que acabara de dizer. Ele era uma música incidental na melodia original do pai, mas fizeram um dueto belíssimo a vida inteira. Morria de saudade do velho Anjo – nem todas as pessoas da sua época conseguiam pronunciar Ângelo, ficou mais fácil colocar um par de asas nele.
– Alguém está confortável com esse tipo de cegueira que leva as pessoas a fingirem não ver e sofrer os efeitos dessa inversão brutal nas relações familiares que estamos testemunhando em todos os lugares? E os parentes e aderentes que só aparecem na hora de levar vantagem, e são sempre cheios de razão? Quem proibiu dizer qualquer coisa que não seja sim? Por que não é permitido sequer mandar recados mudos pela expressão facial? Ou mandar mesmo para aquele lugar, com todas as letras? Por que as pessoas insistem em suportar relações desiguais como se fossem algo normal?
O caldo de peixe fumegante estava celestial. Tomei soprando na colher. E mais um gole de cerveja. Brinquei que talvez fosse melhor fugir de casa. Demos uma boa gargalhada quando ele disse que, assim, veríamos muitos exemplos do cúmulo do absurdo: morar sozinho e fugir de casa!
– Tá bom. Vamos dar um passeio por aí, fechar a porta de casa sem intenção de fuga e entrar num ambiente maior onde tudo está ainda mais potencializado? O que esperar de uma sociedade que sempre aposta em atalhos, como inteligência artificial para vencer a burrice natural que ela mesma instalou detonando a educação? Como fazer para fugir dos chatos movidos por ideologizações políticas rasteiras, repetindo feito papagaios narrativas que tomam como verdades e sequer conseguem compreender? O que fazer com aqueles que eram nossos amigos há décadas e se profissionalizaram como chatonildos loquazes, tomando partidos e acreditando que se habilitaram como analistas de tudo? Sim, isso mesmo, os que agora contestam uma vírgula sem perceber que o texto da realidade foi escrito por aqueles que elegeram como inspiração. Por que reclamam que tudo está ruim ou errado, como se a culpa estivesse apenas do outro lado?
O peixe inteiro assado na brasa chegou liderando uma comitiva que trazia arroz branco com folhas cortadinhas, pirão, verduras e legumes frescos colhidos nas redondezas naquela manhã. A cerveja não parava na garrafa, mas não faltavam garrafas chegando impecáveis. E continuaram as respostas em forma de perguntas.
– Como nos livrar dessas redes sociais cada vez mais superlotadas, invasivas, a serviço da desinformação, das futilidades e dos golpes vigaristas, e tratar as pessoas dessa dependência tóxica? Por que embarcamos nessa imbecilidade coletiva aceitando tudo sem questionar, avaliar, pensar a respeito? Por que saímos repassando asneiras freneticamente, como se fosse possível mudar a realidade com narrativas? Como resolver uma equação em que as agências vendem pacotes turísticos no Céu e o percurso é feito por um transporte aéreo montado pelo Capeta? Que modernidade é esta que fez a vida virar um saco? Se estamos todos incomodados, por que seguimos aceitando toda sorte de incômodos em nome do bem-estar? Quem inventou algo tão idiota quanto “melhor ser feliz do que ter razão”? Que felicidade é essa? Por que ser feliz e ter razão é pior? Como duvidar que até o Bom Samaritano da parábola de Lucas teria dificuldade de praticar hoje a compaixão recomendada por Cristo?
Elogiamos a comida e o resto, não podia ser diferente. Aquilo deixou feliz o casal na barraca e Timoneiro cumprimentou alegremente Sururu, o filho deles, um meninote que passou carregando uma lata e molhando os pés descalços no final das ondas que quebravam ali adiante. Ele ia para o recanto da praia protegido por pedras, onde se formava um pequeno maceió. Era o catador da boa safra de mariscos para a panela onde os pais também faziam um arroz de frutos do mar inaudito, já apalavrado para o nosso jantar que seria servido no alpendre da casa de Timon. Aquela cena me fez pensar nas modernidades tecnológicas tão apregoadas como sinônimo de felicidade.
A lógica timoneira era precisa. Se tornara uma espécie de tutor intelectual do menino em quem colocara o apelido de Sururu de Capote como uma síntese. Primeiro, o nome do marisco de água doce que vive em estuários como aquele do canto da praia. Depois, porque o garoto tomou gosto por música e leitura, aprendeu a gostar de Djavan – a primeira banda que o alagoano montou no Rio de Janeiro quando começou a gravar discos era exatamente Sururu de Capote – e do escritor americano Truman Capote.
Com uma ponta de saudade, me peguei repetindo Timoneiro com suas respostas em perguntas. As vantagens da modernidade valem tudo que estamos perdendo? Vamos continuar maquiando felicidade com esse ambiente de estresse coletivo que, depois do estágio do individualismo tecnológico, vai levando as pessoas num programa sequenciado de adoecimento que passa pela solidão, agressividade e chega à violência? Pareceu encaixar como luva a poesia de Luiz Tatit:
Não sei por que eu tô tão feliz / Vai ver que é pra esconder, no fundo, uma infelicidade / Pensei que fosse por aí / Fiz todas terapias que tem na cidade
Entrei pelo território livre da internet e encontrei algo que desenha a idealização de uma rota de fuga do cenário que temos:
De repente tudo vai ficando tão simples que assusta. A gente vai perdendo algumas necessidades, antes fundamentais e que hoje chegam a ser insignificantes. Vai reduzindo a bagagem e deixando na mala apenas as cenas e pessoas que valem a pena. As opiniões dos outros são unicamente dos outros, e mesmo que sejam sobre nós, não têm a mínima importância. […] Vamos abrindo mão das certezas, pois com o tempo já não temos mais certeza de nada. E de repente isso não faz a menor falta. […] Paramos de julgar, pois já não existe certo ou errado, mas sim a vida que cada um escolheu experimentar. […] Por fim entendemos que tudo que importa é ter paz e sossego. É viver sem medo, e simplesmente fazer algo que alegra o coração naquele momento. É ter fé. E só.
A autoria estava atribuída ao escritor Mário Quintana. Depois, outra informação, seriam trechos do texto De Repente, escrito pela jornalista Elaine Matos em 2013, distante 19 anos do tempo em que o passarinho da poesia voou para o infinito.
Até quando vamos aturar pessoas fazendo o que bem entendem com obras alheias, sem o menor respeito a um negocinho indispensável, o direito autoral? Acordam, leem algo que acham “bacana” ou “profundo”, criam um desenhinho de colegial, atribuem a alguém famoso e espalham para posar de intelequituais? Simples assim? E os amiguinhos ainda batem palma? E como fica o autor verdadeiro, prejudicado por mais um chatonildo loquaz incapaz de se acomodar na própria irrelevância? Por que essa gente sempre coloca efeito zoom no espelho?
Bem disse o literato italiano Umberto Eco: “As redes sociais deram voz a uma legião de imbecis”. E o mestre das máximas Millôr Fernandes não deixou por menos: “Quem sabe tudo, é porque anda muito mal-informado”.
Nessa conversa fiada de confundir tecnologia com modernidade, acho que vou ficar por aqui mesmo, neste restinho de mundo antigo. Não quero seguir na ilusão de que cada um se faz sozinho digitando em teclados. Abro mão da vaga nessa ditadura dos algoritmos ditando as regras da minha desumanização. Talvez seja boa hora de praticar aqueles “quero não” e “nunca mais” tantas vezes ditos pelo não dito.
A saudade de Timoneiro me fez tomar a decisão de visitá-lo de novo. A voz do outro lado pareceu animada quando perguntei como estava.
– Eu ainda não lhe contei que estou vivendo numa vila italiana pequenininha e fora do circuito, porque cheguei há uma semana. Quem quiser que me chame de nômade digital. Como é que eu podia ficar onde estava depois que apareceu o primeiro jet ski e caminhonetes enormes brotaram na areia? O que pode ser pior do que novo-rico, ainda mais com autorização do prefeito bobalhão que resolveu criar um polo turístico onde sequer tem fornecimento regular de água e rede de esgoto? Quando você chega? Pronto para encarar uma praia ótima? A comidinha? Preciso responder? Nildo, Irene e Sururu estão aqui, vou tentar salvá-los dos bárbaros que invadiram a praia deles. Marinete está reticente, tem medo de não aprender o idioma. Ela e Xaréu alugaram aquela nossa barraca, acho que estão de chamego. E você não demore. Arrivederci, bello!
*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural
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