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Estaduais esvaziados
- Heraldo Palmeira e Sylvio Maestrelli
Os Campeonatos Estaduais viraram um tiro no pé? Era uma vez os Campeonatos Estaduais como programa obrigatório dos domingos. Pacaembu, Morumbi, Maracanã, Mineirão, Beira-Rio, Olímpico, Fonte Nova, Ilha do Retiro, Arruda, Aflitos, Castelão… Lotavam mesmo quando o jogo era entre um time grande e um pequeno, líder contra lanterna. Com preços de ingressos acessíveis, as diversas classes sociais se uniam e as torcidas – na maioria desorganizadas – se misturavam, espremidas, rindo, cantando e chorando com as vitórias e as derrotas diante de seus rivais. Desfraldando e enrolando bandeiras multicores. Aplaudindo e xingando adversários, juiz, bandeirinhas, a mãe do juiz e, não raras vezes, seu próprio time. Bons tempos.
Os Estaduais são um produto tipicamente brasileiro. Durante anos catalisaram as paixões dos torcedores. Afinal, dentre os principais campeonatos nacionais do mundo inteiro, o Brasileirão é um dos mais tardios, só foi perdendo o caráter de torneio regional em 1959, passando sucessivamente por várias fórmulas de disputa: Taça Brasil (1959 a 1968), Robertão (1967 a 1970) e Nacional (1971, após nosso tricampeonato mundial). Para se ter uma ideia, o primeiro campeonato argentino é de 1891. O inglês, de 1892. O italiano, de 1898. O uruguaio, de 1906. O espanhol, de 1928. O francês, de 1932. E o alemão, que durante anos teve somente torneios de ligas regionais, de 1962.
Nossos Estaduais remontam ao início do século passado. O mais antigo deles, o Paulista, nasceu amador, em 1901. Os outros mais significativos também tiveram sua primeira edição ainda na época do amadorismo. Baiano, em 1905. Carioca, em 1906. Mineiro, Paranaense, Pernambucano e Cearense, em 1915. E Gaúcho, em 1919. Como curiosidade, os maiores campeões estaduais do país são o ABC (Natal, Rio Grande do Norte), com 57 títulos, o Bahia (Salvador, Bahia), com 50, o Paysandu (Belém, Pará) e o Rio Branco (Rio Branco, Acre), com 49 e o Atlético Mineiro (Belo Horizonte, Minas Gerais), com 48.
Contextos em que predominava acima de tudo a meritocracia, os campeonatos estaduais foram extremamente importantes. Até 1950, quando inexistiam competições regionais ou nacionais devidamente organizadas, ocorriam disputas esporádicas e extraoficiais para se saber “quem era o melhor time do país”. E quem se enfrentava eram os campeões estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro, já os grandes centros futebolísticos da época e cujas principais equipes atraíam os craques das demais regiões. Entre 1950 e 1958, o Torneio Rio-São Paulo funcionava como o autêntico Nacional. Dele participavam os cinco principais clubes paulistas e os cinco cariocas, indicados por suas respectivas federações. Com a obrigatória presença dos campeões estaduais.
Quando foi realizada a primeira Taça Brasil, em 1959, dela participaram apenas os campeões estaduais do ano anterior. Na verdade, essa competição só foi criada porque o Brasil precisaria a partir dali indicar seu representante para a Libertadores da América. A nova competição fora instituída pela CONMEBOL para definir o melhor time sul-americano, que enfrentaria na decisão do Mundial de Clubes (também chamada Copa Intercontinental) o campeão europeu.
Como não tínhamos um campeão brasileiro oficial até então, para conquistar um título mundial de clubes um time brasileiro teria que ser campeão estadual, nacional e continental, meritocracia pura. Ou, no mínimo, a partir de 1960 – quando o campeão da Taça Brasil do ano anterior se classificava automaticamente para a próxima –, ter sido campeão da edição anterior daquela Taça e ter derrotado alguns campeões estaduais. Era notável a importância que as equipes davam aos campeonatos de seus respectivos Estados. A lógica era simples: sem taça no Estadual, sem participação na Taça Brasil. Ponto.
Conquistar Campeonatos Estaduais naquele período áureo do nosso futebol era autêntica façanha, a vitória numa competição repleta de craques. Em São Paulo, o Santos de Pelé tinha que superar o Palmeiras de Ademir da Guia, o Corinthians de Luizinho, o São Paulo de Roberto Dias. No Rio de Janeiro, o Botafogo de Garrincha tinha que ficar na frente do Flamengo de Dida, do Fluminense de Valdo, do Vasco de Bellini. Grêmio ou Internacional, Atlético Mineiro ou Cruzeiro, Sport, Santa Cruz ou Náutico, Coritiba ou Athletico Paranaense, Bahia ou Vitória, Ceará ou Fortaleza, só um faria festa.
Não bastasse as equipes grandes serem poderosas, já que praticamente todos os nossos craques atuavam por aqui, os chamados “pequenos” montavam esquadrões marcantes que disputavam os títulos pau a pau com os mais poderosos e muitas vezes viravam a sensação dos campeonatos. Quem não se lembra, por exemplo, da outrora letal Portuguesa de Desportos e dos fortíssimos esquadrões campineiros de Guarani e Ponte Preta, além dos ótimos times que tiveram Ferroviária (Araraquara), Botafogo (Ribeirão Preto), XV de Novembro (Piracicaba) fazendo história nos Paulistões? Ou dos brilhantes Bangu e América, além de Olaria, São Cristóvão, Bonsucesso, Campo Grande, Madureira, Americano (Campos), Volta Redonda (Volta Redonda) e Macaé (Macaé) derrubando grandes nos Cariocas? Ou os mineiros América, Vila Nova (Nova Lima), Ipatinga (Ipatinga) e Siderúrgica (Sabará)? E o surpreendente Renner gaúcho?
Os Estaduais eram autênticas vitrines de talentos, revelavam novos craques todos os anos. Movimentavam o ambiente dos jogadores, desde as promessas das bases até as estrelas dos elencos, permitindo que carreiras fossem construídas ou consolidadas a partir das transferências. O fabuloso Santos de Pelé, maior clube do mundo nos anos 1960, era muito competente em identificar joias em times pequenos, algo que também ocorria com o Palmeiras. Em linhas gerais, os grandes clubes também eram celeiros de craques em suas bases. Sem contar que os grandes clubes eram celeiros de craques em suas bases – Flamengo e Palmeiras são exemplos até hoje.
O tempo passou e o futebol mudou muito. Fatores econômicos se impuseram sobre a meritocracia, diminuindo a influência de questões puramente técnicas. Os calendários nacional e internacional se ampliaram, com muitas competições disputadas simultaneamente. No mundo todo, investidores poderosos conseguiram transformar – com injeção de capital e a consequente contratação de astros – times outrora medianos em potências (Chelsea, PSG, Manchester City), enquanto equipes outrora tradicionais despencaram (Hamburgo, Torino, Independiente, Boca Juniors, River Plate, Nacional, Peñarol). O próprio futebol italiano caiu de patamar, afetado também por escândalos.
É nesse contexto de transformações que se questiona, no Brasil de hoje, a importância de se manter ou não as competições estaduais que, segundo alguns, são anacrônicas, obsoletas e não fazem mais sentido. Na maioria dos casos, servem apenas como arremedo de pré-temporada para os clubes se prepararem para as disputas que realmente lhes interessam – o fator premiação financeira é um balizador importante..
Os defensores dos Estaduais argumentam que a tradição, as rivalidades locais e a presença dos times grandes jogando no interior dão alento, fortalecem o surgimento de craques e conquistam novos torcedores. Citam até “clássicos interioranos” como o Derby Campineiro (Guarani x Ponte Preta), o Ca-Ju (Caxias x Juventude), Treze x Campinense (Campina Grande) ou mesmo alguns clássicos históricos de capitais (Remo x Paysandu, Goiás x Vila Nova, Ceará x Fortaleza, ABC x América, Bahia x Vitória, Avaí x Figueirense, Sport x Santa Cruz x Náutico) que dificilmente aconteceriam em Nacionais, já que nem sempre esses times estariam na mesma série.
Essas vozes seguem o raciocínio dos presidentes das federações estaduais, que insistem na tese de que os Estaduais fazem parte da história do futebol brasileiro. Evocam até títulos esporádicos de alguns times do interior como os do Ituano, Bragantino, São Caetano, Inter de Limeira, Juventude, Caxias, Londrina, Caldense, além da conquista nacional obtida pelo inesquecível Guarani em 1978 – até aqui único time interiorano a ganhar um Nacional.
Vão na contramão do que pensam os dirigentes dos grandes clubes, que consideram os Estaduais longos, deficitários e mal organizados, e também alegam que no mesmo período poderiam fazer uma produtiva pré-temporada, participando de torneios e mesmo se exibindo em amistosos (com boas cotas financeiras) no exterior – no mesmo modelo de alguns grandes clubes europeus e como faz o Flamengo neste momento, com jogos marcados nos EUA.
Por discordarem desse posicionamento, os presidentes das federações, verdadeiros “donos” dos Estaduais, fazem valer seus poderes (como o de desfiliação, por exemplo), o que impediria os clubes “rebeldes” de participar de torneios promovidos pela CBF. Alguns até aumentam valores de premiações, algo que interessa diretamente à maioria dos times, quase todos com baixíssimos orçamentos. E contam com o silêncio da CBF, que precisa dos votos desses presidentes estaduais para eleger a própria diretoria – o histórico de presidentes da CBF encrencados com a Justiça é apenas mais um triste capítulo desse jogo de compadres.
Claro que esse bolo de interesses com receita bastante complexa termina empurrando os grandes clubes a jogarem com seus titulares, algo que dá sobrevida a campeonatos há muito moribundos.
Talvez amparado pela enorme representatividade no cenário nacional, neste início de temporada o Flamengo protagoniza um capítulo bem evidente do balaio de gatos que virou o futebol brasileiro. Ontem (17), estreou no Estadual do Rio jogando em… Manaus! Goleou o Audax por 4×0 e colocou em campo algo próximo do time titular. De lá mesmo, embarcou para os EUA com o elenco principal, onde fará jogos amistosos como pré-temporada.
Para dar sequência ao Carioca, vai jogar as rodadas seguintes com garotos da base (e outro técnico) em João Pessoa (contra o Nova Iguaçu) e Natal (contra a Portuguesa-RJ). Nessa incursão com pitadas de marketing, o time se beneficia da ótima fase financeira que lhe permite manter um elenco poderoso e numeroso, abre espaço para seus meninos ganharem experiência e agradam sua torcida gigante – considerada a maior do mundo –, apaixonada e presente em todos os pontos do país. Não por menos, todos os jogos tiveram ingressos esgotados antecipadamente – em estádios muito maiores do que os disponíveis no interior do Rio de Janeiro, garantindo muito mais faturamento. Alguém pode até dizer que isso ajuda a popularizar o futebol entre as novas gerações. Mas, esse papel de levar os grandes clubes para outros estados não é do Brasileirão? E disputas do Campeonato Carioca no Norte e Nordeste do país…
Os opositores dos Estaduais, analisando a questão de forma mais racional e menos passional, partem de uma pergunta que parece óbvia: para que servem esses campeonatos hoje? Eles mesmos respondem: para nada! Pode parecer uma postura irredutível, mas justificam: a maioria dos jogos entre os pequenos não tem público e renda, os Estaduais são pouco valiosos para os que não o conquistam, a média de pagantes é baixa, os estádios do interior, via de regra, são pequenos, ruins e ultrapassados, há jogos em cidades muito distantes das capitais.
Também não garantem vaga nem para o Nacional, via série D, nem para a Copa do Brasil, já que os critérios mudam anualmente. Deixaram de revelar jovens promissores, que desde as categorias de base já são conhecidos e têm seu desempenho monitorado pelos gigantes europeus – em muitos casos, vão direto para as escolinhas desses clubes gigantes que estão funcionando aqui. Sem contar que torneios nacionais de juniores como a Copinha São Paulo e a Taça Itatiaia despertam muito mais interesse para olheiros, empresários e investidores.
Os Estaduais não empolgam mais os torcedores. Além de todos os problemas conhecidos, há ainda a disparidade técnica entre os grandes e os pequenos, em sua maioria times bancados por empresários muito mais interessados no rentável negócio de transferências de jogadores. Não chamam a atenção do público jovem, que prefere ver os campeonatos europeus pela televisão – alguém pode tirar a razão deles? E, por último, atrapalham o calendário nacional e internacional, tornando-se, em suma, uma pedra no caminho que deve ser evitada.
Os críticos não poupam sequer os Estaduais mais importantes – Paulista, Carioca, Mineiro e Gaúcho. O atual périplo do Flamengo jogando o Carioca em outros estados é exemplar dessa aberração. Eles também defendem que competições regionais organizadas como a Copa do Nordeste são muito mais relevantes para o futebol brasileiro – bom nível técnico, estádios cheios, equilíbrio financeiro. Sem contar que o campeão ganha o direito de disputar as oitavas de final da Copa do Brasil, que oferece as melhores remunerações do país aos participantes, com premiações a cada etapa. Sim, futebol é paixão, tradição, talento, mas também é negócio e, como tal, só sobrevive com realismo e visão empresarial.
Retirando qualquer fantasia saudosista, é inegável que os Estaduais viraram também um problema prosaico para os grandes clubes. Quando um deles ganha o campeonato – resultado tratado como “obrigação” pelos vândalos das torcidas organizadas –, se vê obrigado a pagar premiação do técnico ao roupeiro, gerando uma alta despesa que dificilmente estará coberta pelo faturamento obtido no torneio. E se o time for de vice-campeão em diante poderá ser alvo da violência revoltada dos fanáticos, pelo fato de algum rival histórico ter levado a taça.
A temporada dos Estaduais começou sem novidades, com os velhos problemas, a mesma preguiça de resolvê-los e uma pergunta: para que servem os Estaduais?
No fim das contas, resta o sofredor que veste a camisa querendo ver seu time campeão de tudo, inclusive dos Estaduais, amparado por uma visão simplória: já que estão valendo, tá valendo ir para a sala de troféus.