Por Heraldo Palmeira
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7 de novembro de 2024

HERALDO PALMEIRA Eu sou o tal e coisa

Roland Steinmann/Pixabay

Eu sou o tal e coisa

  • Heraldo Palmeira

Eram velhos amigos. Cariocas da gema, Tavares (Tijuca) e Birmanês (Santa Teresa) viviam em outros lugares e não se viam há algum tempo. Estavam na cidade a negócios e marcaram um bacalhau sem erro do Lamas. A posta alta cozida, servida sem miséria. O chope famoso ou uma lista de boas cervejas. A sobremesa romeu e julieta preparada com Catupiry – legítimo – ou aqueles morangos enormes com chantili. E o pudim sempre à espreita para qualquer emergência. O cafezinho coado. Tudo no ponto certo. Os mesmos garçons que parecem estar ali desde 4 de abril de 1874, quando as portas se abriram.

Talvez o jeito de servir que atendeu uma legião de “lamistas” – gente como Adhemar de Barros, Albino Pinheiro, Cândido Portinari, Carlos Lacerda, Carmen Miranda, Catherine Deneuve, Chacrinha, Chico Caruso, Dercy Gonçalves, Getúlio Vargas, Itamar Franco, Jaguar, João do Rio, João Nogueira, Juscelino Kubitscheck, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Maurício Einhorn, Monteiro Lobato, Noel Rosa, Olavo Bilac, Orson Welles, Oscar Niemeyer, Oswaldo Aranha (terminou virando o nome do filé que comia sempre), Paulinho da Viola, Paulo Gracindo, Rachel Welch, Rui Barbosa, Sérgio Arouca, Sérgio Buarque de Holanda – funcionando 24 horas, fez o lugar onde, sem favor, a fama dos comensais nunca pareceu maior do que a da casa. E vice-versa.

Desde sua primeira sede no Largo do Machado, antes de se transferir para a Marquês de Abrantes – empurrado pelas obras do metrô, em 1976 –, o Café Lamas foi afagado pelo mundo da arte e o melhor da boemia carioca fantasiada de artistas, intelectuais, jornalistas, políticos, diplomatas, empresários, banqueiros e executivos.

Claro que os forasteiros eram gente de casa. Houve retribuições. Está no samba Rio Antigo (Como nos Velhos Tempos), criado em parceria pelo maranhense Nonato Buzar e o cearense Chico Anysio (links abaixo). Na declaração de amor do poeta pernambucano Manuel Bandeira: “O Café Lamas continua aberto, imortal, dessa imortalidade idêntica à da natureza que se renova cada ano pela força da primavera”. Em algumas obras literárias. Numa infindável lista de matérias jornalísticas.

Na verdade, em razão da cozinha primorosa e do ambiente acolhedor que deixa todos à vontade, o Lamas virou uma espécie de segunda casa dos seus frequentadores assíduos. Tanto que nasceram em suas mesas alguns fatos da política, artes e esportes que viraram História. Ali foram fundados o Flamengo, o Fluminense e partidos políticos. Também foi endereço para a entrega de mesadas e correspondências de estudantes oriundos de outros estados, que moravam nas pensões instaladas na região. Nada mais natural que servisse de “sede” para o movimento estudantil em algumas ocasiões. Os campeonatos de sinuca e chope eram famosos e atraíam multidões. E, surpresa nenhuma, o centenário garantiu 24 horas de comida e bebida por conta da casa para quem chegasse. Saudoso dia de 1974!

É certo que o Lamas usou seu tempo de portas abertas para ajudar a democratizar o significado de “carioca da gema”, estendendo-o a quem quer que assuma sua própria alma carioca. Pensando bem, quanto importa origem geográfica se o distinto forasteiro for iniciado em praia, Carnaval e futebol? Tudo bem, ninguém vive a ferro e fogo no Rio, o chegado não precisa professar todos esses credos do cotidiano – apenas um já basta. Afinal, seja por milagre, seja lá como for, o Rio de Janeiro continua lindo desde sempre. Para ganhar essa “cidadania”, ajuda muito se o distinto apostar na alegria.

A entrada chegou para reforçar o chope que abrira os trabalhos com pompa e circunstância em um dia de verão como aquele. Estava em campo o bom combate, uma espécie de peleja entre o Diabo com seu calor infernal e o Dono do Céu oferecendo aquela brisa loura gelada para a garganta seca.

Tavares vivia em São Paulo. Representava uma empresa química multinacional e o Lamas era quase um escritório sempre que visitava o Rio. O restaurante estava na boca de entrada da praça São Salvador, onde sua irmã mantinha um enorme apartamento fechado desde que fora morar na Europa há alguns anos. Ele cuidava das questões relacionadas ao imóvel, que também lhe servia de ótima hospedagem a poucos passos dali.

Birmanês tinha uma distribuidora de produtos orgânicos da Serra Fluminense, morava em Teresópolis e vivia no sobe e desce atendendo empórios e restaurantes refinados. Gostava de morar mais perto do Céu, talvez reflexo da infância e juventude vividas em Silvestre, no alto de Santa Teresa e bem nas franjas da estrada das Paineiras, pertinho do Redentor de braços abertos sobre a Guanabara.

Também era habitué do Lamas. Ficava sempre num hotel na Senador Dantas. Gostava do bochicho da Cinelândia e era um pulo de metrô até aquele começo do Flamengo. Ganhou o apelido do fedapê do Tavares quando pegou cola numa prova de conhecimentos gerais nos tempos de ginásio no Colégio Pedro II. Sem conseguir separar alhos e bugalhos no cipoal de nomes estranhos que não conseguia memorizar, ouviu mal o cochicho do amigo e tascou “Birmânia” onde a resposta era “Britannia” – Elizabeth II estava em visita ao Brasil, o iate real veio junto e foi parar na prova dos garotos. Como naquela época bullying era ficção científica, a turma caiu na gozação. O batismo estava feito para o resto da vida e não gerou os traumas comuns à geração Nutella.

Tavares começou a falar de um colega de trabalho que ninguém aguentava mais em razão da síndrome de holofote que carregava. Reclamava da sensação de que vivia sendo notado e julgado pelos demais. Como se fosse o centro do mundo alheio.

– Olha lá quem chegou! – apontou Birmanês discretamente. Era um jornalista que tivera importância no Jornal do Brasil quando o Jornal do Brasil tinha importância. Estrela dos velhos tempos, era agora uma sombra alquebrada. Ainda escrevia, aqui e ali, quase sempre coisas constrangedoras, agrados irreconhecíveis em quem tivera texto crítico e destemido nos anos de chumbo.

Os dois amigos ficaram olhando o homem se acomodar numa mesa lá adiante. Permaneceu sozinho e o garçom cuidou de oferecer uma pequena dose de compaixão afetiva, confirmada pelo chorinho na hora de servir o uísque.

– Agora deu de ser autorreferencial em tudo que escreve. Vive postando coisas desinteressantes. Não perde uma oportunidade de falar dele mesmo, do que fez, de situações e coisas minúsculas que aconteceram há séculos. E quando morre alguma subcelebridade dessas, corre para publicar uma mensagem fúnebre, com a foto de alguma ocasião em que ele e o morto estiveram juntos. Coisa horrível! – lamentou Tavares, dando uma bicada no chope. E emendou:

– Artistas também costumam ser autorreferenciais, é um saco ouvir alguns deles. Adoram monólogos. É como se o mundo não existisse sem as coisas que fizeram, como se nada e ninguém mais tivesse qualquer importância. Lembro do Jô Soares entrevistando as pessoas. Ele sempre tinha estado em todos os lugares, participado de quase tudo. Quando o convidado não era muito famoso… Terminou passando vexame com um velhinho brasileiro que morava em Los Angeles e dançava sapateado.

– Aquele dos sapatos do Fred Astaire?

– Ele mesmo!

– Pelo menos, o Jô era quem era, faz falta. E as redes sociais, que vieram e criaram essa aberração de todo mundo se achar importante, professor de Deus, celebridade? Um saco! – Birmanês falou balançando a cabeça em negação.

– Umberto Eco já se incomodava com isso, Birma.

– Sim, aquela coisa sobre imbecis com voz.

– Senhores… – o garçom chegou com o prato fumegante.

Os amigos se entregaram à nobre tarefa de movimentar talheres. Não havia mais tempo para dedicar a gente autorreferencial, com síndrome de holofote ou metida a professor de Deus. Era muito melhor bendizer o bacalhau em posta alta cozido, servido sem miséria. Preparar o terreno para romeu e julieta preparada com Catupiry – legítimo – ou aqueles morangos enormes com chantili. E o pudim sempre à espreita para qualquer emergência. E o cafezinho coado. Tudo no ponto certo. Sem erro. Cada qual em seu papel, sem essa chatice de protagonismo de irrelevâncias em tempo integral.

Aquele silêncio dos dois amigos era a voz do paladar reverenciando o prazer da boa mesa. Sem esquecer uma verdade óbvia: por melhor que seja, a comida jamais estará acima da fome.

*HERALDO PALMEIRA, escritor e produtor cultural

Ouça aqui

Rio Antigo (Alcione)   https://www.youtube.com/watch?v=2q5zgzxqol8

Rio Antigo (Mussum e Chico Anysio)   https://www.youtube.com/watch?v=04EV5eDkNJM

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