Por Heraldo Palmeira
Los Angeles
Nova York
São Paulo
Lisboa
Londres
Fase da Lua
.
.
23 de novembro de 2024

Baixo nas alturas

Reprodção/Metrópoles/Getty Images

Baixo nas alturas

  • Heraldo Palmeira

O valor de qualquer coisa tem um componente que pode modificar completamente a realidade (da coisa): o valor agregado. Basta voltar a 1961 e rever a história do Höfner 500/1 Violin Bass, um baixo elétrico alemão comprado por Paul McCartney em Hamburgo, durante a temporada na Alemanha com os Beatles antes da fama.

Depois de uma primeira experiência frustrada na cidade em agosto de 1960, que terminou com as deportações de Harrison (era menor de idade), Pete e Paul (acusados de tentativa de incêndio), a banda voltou em março de 1961 e realizou a agora histórica temporada que deu início à fama. Era o mesmo quinteto da primeira tentativa: Pete Best (bateria), Stuart Sutcliffe (baixo), George Harrison (guitarra), John Lennon (guitarra) e Paul McCartney (guitarra).

O escocês Sutcliffe, que era um dos melhores alunos da Liverpool College of Art – onde conheceu Lennon e escolheu com ele o nome definitivo “The Beatles” –, decidiu deixar o grupo em julho para tocar a promissora carreira de artista plástico. Não seguir nos Beatles foi uma espécie de destino, pois ele morreu em abril de 1962 vitimado por aneurisma cerebral.

Com a saída de Stu, ficou resolvido que Paul deixaria a terceira guitarra e assumiria como baixista. Assim, ele foi à loja Steinway, no centro de Hamburgo, e comprou seu primeiro Höfner por £ 30 (R$ 187), dando uso intenso ao instrumento até 1963. Era barato o suficiente para ele pagar. “Assim que comprei, me apaixonei por ele. Para um baixo leve e pequeno, tem um som muito rico”, afirmou Macca em entrevista concedida à Guitar Magazine em 1993.

Embora fosse uma marca de ótima qualidade e muito tradicional na fabricação de violinos e contrabaixos acústicos para orquestras, não se pode dizer que os baixos elétricos Höfner eram páreo para os lendários Fender Jazz Bass e Precision Bass – que moldaram o padrão de baixos elétricos da indústria – nem para os maravilhosos Rickenbacker 4001S e 4003 desenhados preciosamente para a sonoridade do rock and roll. Entretanto, depois que Paul McCartney adotou o instrumento com cara de violino, ele ganhou um valor agregado de tal porte que virou objeto de desejo de meio mundo. A relação entre os dois é tão simbiótica que, até hoje, você olha para um e vê o outro. Sem contar que, a partir da fama do artista, o fabricante passou a dedicar atenção especial à produção de suas encomendas pessoais.

O agora lendário Höfner utilizado nas gravações dos dois primeiros álbuns dos Beatles (links abaixo) e em diversos outros momentos da trajetória da banda era o instrumento favorito de McCartney. Virou peça de inegável importância na construção da Beatlemania, um dos maiores fenômenos culturais e comportamentais da história humana. Até que foi roubado e o mistério começa.

Embora não haja detalhes precisos sobre o que realmente aconteceu, especula-se que o baixo foi guardado em 1969, depois das gravações de Get Back – álbum que terminou lançado (rebatizado) como Let It Be. –, cujas filmagens foram transformadas num documentário esplendoroso (Get Back, 2022). Ninguém sabe como ficou armazenado e quem teve acesso ao depósito. Segundo o tabloide The Sun, pode ter sido roubado de uma van carregada de instrumentos em Ladbroke Grove, Notting Hill, um dos bairros mais charmosos e pitorescos de Londres, em 10 de outubro de 1972.

Desde então Paul vinha tocando com novos exemplares e sempre manteve a esperança de reaver o original. Por isso, já havia pedido ajuda ao fabricante para localizar o velho Höfner. Também tinha conversado a respeito com o produtor Nick Wass, ex-consultor da Höfner – haviam trabalhado juntos – e autor de um livro sobre o instrumento. E foi daí que surgiu a ideia de criar o projeto The Lost Bass (O Baixo Perdido) em 2018.

Enquanto a Höfner tentava atender o desejo do cliente mais ilustre, em maio de 2023 o casal Scott e Naomi Jones, jornalistas com passagens por BBC News, The Telegraph e Rolling Stone, se aliou a Wass.

O assunto ganhou novo impulso quando foi levado à mídia e a iniciativa virou uma busca global com a adesão de fãs do mundo inteiro. “Rastrear o baixo é o desafio mais emocionante que já enfrentei, visto que o objeto pode estar em qualquer lugar do mundo. De muitas maneiras, estamos em busca do Santo Graal do Rock. Mas, com uma pequena ajuda de pessoas de todo o mundo, que amam os Beatles e Paul McCartney, sei que podemos encontrar o baixo perdido. Essa é a inspiração por trás deste projeto: traçar a história não contada deste instrumento icônico e trazê-lo de volta para casa”, declarou à época um esperançoso Scott Jones..

Já sua esposa Naomi ressaltou a importância cultural e histórica do instrumento. “O baixo perdido de Paul McCartney é um pedaço da história. Este instrumento é um símbolo da incrível mudança e da revolução cultural e social que os Beatles criaram no início dos anos 1960. A investigação que estamos realizando nos leva de volta à primavera de 1961, quando Paul McCartney entrou na loja Steinway, em Hamburgo, para comprar o seu primeiro baixo. Naquele momento, quem diria que esse adolescente e essa guitarra em forma de violino mudariam o mundo?”, escreveu ela.

O site montado para a busca não deixava dúvidas: “Bem-vindo ao projeto The Lost Bass e ao maior mistério do rock and roll. Esta é a busca pelo baixo mais importante da história – o Höfner 500/1 original de Paul McCartney. Este é o baixo que McCartney tocou em Hamburgo, em 1961, no Cavern em Liverpool e nas primeiras gravações da Abbey Road; ele impulsionou a Beatlemania e moldou o som do mundo moderno”. As motivações eram diversas: “Seria bom se um dia pudesse ser exposto ao público […] No final das contas, estamos fazendo isso apenas para recuperar a guitarra de Paul. Sabemos, por meio de Nick e da Höfner, que é o que ele sempre quis”, completou Scott.

Para alegria geral, no fim de setembro de 2023, depois de 51 anos desaparecido, o baixo foi localizado e voltou às mãos do seu legítimo dono. “Recebemos a informação de que ele havia sido roubado da traseira de uma van na noite de 10 de outubro de 1972, na área de Notting Hill, em Londres. Essa foi a descoberta de que precisávamos. Como resultado de mais publicidade, alguém que morava em uma casa geminada na costa sul da Inglaterra lembrou-se de um baixo antigo que estava em seu sótão. Eles logo perceberam o que tinham. Em poucos dias, ele estava de volta com Paul McCartney!”, exultou o site do projeto. “Herdei este item, que foi devolvido a Paul McCartney. Espalhe a notícia […] Sem mais comentários neste momento”, publicou o estudante Ruaidhri Guest na rede X, que recebera o instrumento de herança do pai falecido. Até Sherlock Holmes ficaria orgulhoso com o desfecho.

Em razão da desatenção que mereceu ao longo de cindo décadas, havia diversos reparos por fazer no instrumento. “Considero que pode ser facilmente consertado – já vi guitarras e baixos em condições muito piores. A laca tem algumas rachaduras porque foi deixada em um loft onde faz frio no inverno e esquenta no verão, mas isso não importa. Os captadores não funcionam (as bobinas precisam ser substituídas), e a junta do braço está quebrada. Há muito tempo, eles tentaram encordoar o baixo para destros com cordas muito pesadas e, no processo, danificaram a porca, mas dá para consertar sem problemas”, assegurou Nick Wass, enquanto o baixo seguia para as oficinas da Höfner, na Alemanha.

O baixo foi devidamente inspecionado e autenticado como verdadeiro pelo fabricante. “O baixo Höfner 500/1 de 1961 de Paul, que foi roubado em 1972, foi devolvido. O instrumento foi autenticado pela Höfner e Paul está incrivelmente grato a todos os envolvidos”, anunciou o site oficial do cantor. “Paul queria que o baixo fosse consertado logo para que ele pudesse tocá-lo. Ele não queria que o baixo fosse usado como um instrumento para destros; ele queria que fosse restaurado como saiu da fábrica em 1961, como está agora. Ele me telefonou quando o recebeu de volta, o que é bem incomum. Ele estava feliz como uma criança”, concluiu Wass.

Assim que o instrumento reapareceu, não tardaram comparações com casos similares. O baby grand piano Yamaha G-2, comprado no Japão em 1975 e utilizado por Freddie Mercury para compor boa parte de sua obra, foi leiloado por US$ 2,2 milhões (R$ 10,8 milhões). Um violão Gibson EJ-160 utilizado em diversas gravações dos Beatles e furtado de John Lennon em 1963, reapareceu 50 anos depois e terminou vendido por US$ 2,4 milhões (R$ 11,8 milhões). Um violão Martin D-18E, edição especial de 1959 – apenas 300 unidades foram produzidas –, utilizado por Kurt Cobain do Nirvana MTV Unplugged, terminou vendido por US$ 6 milhões (R$ 29,5 milhões).

De acordo com a BBC, caso viesse a leilão, o baixo Höfner 500/1 Violin que definiu a imagem mais icônica de Paul McCartney e que se tornou um dos retratos definitivos da indústria da música superaria os demais. Já o jornal The Guardian arriscou um valor: € 10 milhões (R$ 53,1 milhões).

É mais uma marca impressionante relacionada aos Beatles. Afinal de contas, esse Höfner de Paul entra no ambiente exclusivíssimo do renomado artesão e luthier italiano Antonio Stradivari. Alguns dos violinos Stradivarius que ele produziu têm valor de mercado entre US$ 8 milhões (R$ 39,3 milhões) e US$ 20 milhões (R$ 98,4 milhões), dependendo do período de fabricação e dos itens que utilizou nos ornamentos de cada instrumento.

Viagem no tempo Um engenheiro de som que trabalhou com McCartney disse que o baixo havia sido deixado numa van e foi roubado dali. Segundo informação recebida por Scott Jones, depois de roubado o Höfner foi vendido “por um pouco de dinheiro e um pouco de cerveja grátis” a Ronald Guest, dono do pub Admiral Blake, em Ladbroke Grove, Londres. Na ocasião, os Beatles já não existiam e Paul seguia carreira com a Wings, sua nova banda.

Passo seguinte, o baixo foi repassado por Ronald ao filho – que morreu em janeiro de 2022 – e permaneceu esquecido no sótão da casa da família no balneário de Hastings, Inglaterra. O instrumento havia sido convertido grosseiramente para o uso de destros e, ao tomar conhecimento da campanha, Rauidhri Guest (neto de Ronald) e sua mãe Cathy Guest devolveram-no a Paul McCartney. Durante todo esse tempo os novos “donos” nunca souberam a quem ele havia pertencido.

Foram mais de 600 pistas até o fim da busca. Desde o início a Höfner apostava na hipótese de que alguém sem a mínima ideia do que tinha em mãos se apresentaria puramente por boa vontade.

A cara do baixo Além de ter sido originalmente produzido com peças e cores distintas para canhotos, o baixo de Paul tinha a logomarca da Höfner aplicada na vertical – diferentemente de todos os posteriores que ele usou. Como passou por reformas depois de uma extensa turnê antes de ser roubado, tinha pintura mais escura, o escudo de pérola removido e os dois captadores montados em peça única de madeira preta.

Tesouros italianos Antonio Giacomo Stradivari (1644-1737) nasceu e morreu em Cremona, Itália. Especialista reconhecido pelos seus magníficos instrumentos de corda, produziu 1.116 violinos, violas, violoncelos e harpas ao longo da vida, dos quais, 960 eram violinos.

Cerca de 650 dos seus instrumentos ainda existem e as estimativas apontam que seriam entre 450 e 512 violinos. O período áureo de sua carreira ocorreu entre 1700 e 1722, quando atingiu o ápice da sonoridade e construiu seus violinos mais famosos – Bets (1705), Cremonese (1715), Messiah e Medici (ambos em 1716). Até hoje, muitas das suas técnicas não foram desvendadas, principalmente tipos e tratamento das madeiras e componentes e camadas dos vernizes utilizados.

Para tratar as madeiras, há indícios de que usava mais de 30 minerais diferentes, dentre eles o bórax, que contribuiria para melhorar a propagação do som, bem como aumentar a rigidez da madeira para criar qualidades especiais ao timbre.

Ouça aqui

Please, Please Me   https://open.spotify.com/intl-pt/album/3KzAvEXcqJKBF97HrXwlgf?si=t4OmwH4CRDix84aHQ6UXxA

With The Beatles   https://open.spotify.com/intl-pt/album/1aYdiJk6XKeHWGO3FzHHTr?si=v2j4uBE6S26MquHXgk5cDQ

©