Por Heraldo Palmeira
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21 de novembro de 2024

Quem cresce primeiro?

Neven Divkovic/Pixabay

Quem cresce primeiro?

  • Heraldo Palmeira

Sou uma gota d’água | Sou um grão de areia | Você me diz que seus pais não o entendem | Mas você não entende seus pais | Você culpa seus pais por tudo | Isso é um absurdo | São crianças como você | O que você vai ser | Quando você crescer?

Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1945), Estados Unidos, Canadá, Grã-Bretanha, França e Austrália experimentaram um fenômeno social que se estendeu dali até 1964: o aumento de natalidade que se tornou conhecido como baby boom (explosão de bebês, em tradução literal do inglês). Os nascidos naquele período viveram uma juventude no ápice das transformações culturais, sociais e artísticas que sacudiram o mundo nos fabulosos anos 1960 e 1970.

Essa geração denominada baby boomers, privilegiada pela cronologia, testemunhou uma enorme quantidade de episódios como poucos momentos da história humana ofereceram. Uma ebulição tal que o mundo nunca mais foi o mesmo. O nascimento mercadológico do rock e de fenômenos incalculáveis como Beatles, Rolling Stones e seus muitos desdobramentos. O cinema escancarado para linguagens e estéticas revolucionárias além-Hollywood (Fellini, Buñuel, Bergman, Pasolini, Nouvelle Vague…). O emblemático maio de 1968 com todo seu significado e transformação social. A Guerra do Vietnã, cujas feridas deram profundo sentido à rebeldia da juventude contra o establishment. A televisão se transformando no principal meio de comunicação do planeta. O temor da Guerra Fria e suas ameaças latentes. A ideia complexa de que arsenais atômicos eram a forma de garantir a paz mundial.

As consequências não foram pequenas. Os baby boomers desenvolveram uma visão política poderosa e mais questionadora. Promoveram a liberação feminina com a pílula, o aborto e a libertação dos sutiãs. Deram seu grito pacifista e de mudança comportamental com o movimento hippie e a contracultura. Utilizaram a arte como meio de expressão e uma nova estética artística passou a influenciar tudo. Abriram corpos e mentes para uma vida animada a sexo, drogas e rock and roll.

A liberdade trouxe sua novíssima consequência: encerrar relacionamentos e assumir outros de forma natural. Embora tenha sido um duro golpe no conservadorismo moralista que imperava, confrontou os baby boomers com a dura realidade da remodelação da família tradicional. É a geração que sofreu a devastação das alienações parentais em razão de separações, divórcios e maternidade/paternidade solo, e passou a sofrer as dores de famílias disfuncionais.

Sempre atento à dinâmica social, essa entidade metafísica que conhecemos como “mercado” já sabia – desde uma grande pesquisa sobre consumo realizada na década de 1930 nos EUA – que seria suicídio para a indústria continuar produzindo bens de grande qualidade e durabilidade. O resultado do trabalho permitiu concluir que uma maneira de gerar consumo é criar carências e sentimento de ineficiência compensáveis com a compra de algo.

Outro ponto importante do levantamento foi apontar o perfil de quem consumia mais. O resultado foi claro: pessoas em estabilidade emocional e familiar consumiam muito menos do que as que viviam em conflitos familiares ou sozinhas. As campeãs do consumo eram aquelas ao mesmo tempo solitárias e conflituosas. Detectado esse padrão, o “mercado” tratou de agir para tirar proveito de uma realidade que revelava o esfacelamento das famílias, resultante das diversas mudanças sociais em curso. A aposta agora era fortalecer um novo modelo onde a distância entre pessoas e famílias tendiam a promover alto nível de consumo.

Um grupo de professores realizou um trabalho, até hoje polêmico, mostrando que, a partir dos resultados daquela pesquisa sobre consumo, foi colocada em prática uma série de ações subliminares com o intuito de normalizar e impulsionar o que seria o novo perfil de sociedade.

O ponto de partida seria a desestruturação do padrão familiar vigente. “Então, um conjunto de propagandas subliminares foram feitas, porque não daria para fazer uma propagada direta do tipo ‘Deixe sua casa, seus pais não prestam, vá morar sozinho’. Mas, criar uma série de propagandas subliminares a respeito da desestruturação da família, sem que se percebesse, sim, era viável, claro. Eu também não poderia desestruturar o conceito de família em adultos com personalidades já formadas. Então, onde é que eu desestruturaria a personalidade, o conceito de família? Nas crianças. Então, se criou uma série de desenhos animados em que não há família. Alguém conhece a mãe do Tio Patinhas, o pai da Pantera Cor-de-Rosa ou o avô do Mickey? Não existe família, existe só prazer […] A presença de algum adulto é para acabar com o prazer. E o prazer existe na ausência dos adultos. As crianças foram educadas numa geração em que os pais atrapalham. Essa geração começa a ter filhos nos anos 1960 e 1970 […] Então, essa geração que sofreu muita injunção e, ao mesmo tempo, foi educada nesse monte de desenhos e séries, e onde tudo era muito legal quando os pais não estavam perto, chegou à infeliz conclusão ‘os meus filhos não vão passar por isso’. Porque foi exatamente passando pelo que nós passamos que nós nos tornamos quem nos tornamos. E exatamente por não fazer os filhos passarem pelo que nós passamos, criamos gerações altamente vulneráveis”, afirma Rossandro Klinjey, psicólogo, professor e consultor em educação e desenvolvimento humano.

Essas pessoas nascidas no pós-guerra cresceram com muitas dificuldades para enfrentar os novos cenários emocionais que nortearam seus pais e, mesmo tendo vivenciado experiências tão amplas em todos os sentidos, passaram do papel de filhos infelizes e inseguros ao de pais – e agora avós e já até bisavós – de gerações cada vez mais fragilizadas, que hoje estão encarregadas de mover o mundo.

Quando decidiram “os meus filhos não vão passar por isso”, os baby boomers deram início ao fenômeno devastador da “infantocracia”, o modelo de família onde os adultos giram em torno de crianças-ditadoras que não podem ser contrariadas. Um legado problemático onde foram acomodando filhos, netos e bisnetos cada vez mais deslocados da realidade.

Neste 2024 os caçulas daquela geração chegam finalmente à tal terceira idade. Como faz em qualquer período, o marketing de consumo vem cumprindo seu papel de antecipar o futuro para manter os negócios, inclusive inventando novos nichos – os “doutores” garantem que tudo é resultado de análises comportamentais e identificação de padrões.

Neste caso, a antecipação do futuro vem ocorrendo há pelo menos duas décadas por meio de subdivisões geracionais cada vez mais curtas e incompreensíveis. Gerações que se caracterizam pelo conformismo à desqualificação instrucional e de valores tradicionais, exaltação exacerbada do consumo e desinteresse por obter relevância histórica.

Desde 2000 estamos sob um tal “consenso mundial” que nos faz coexistir divididos em quatro gerações devidamente nomeadas: baby boomers (1945 a 1964), geração X (1965 a 1984), geração Y/millennials (1985 a 1996) e geração Z/centennials (1997 a 2009). De repente, surgiu uma quinta patota, a geração alfa (2010 em diante).

Não se preocupe se encontrar outras datas para determinar cada geração. Na verdade, não há consenso algum nessa barafunda de nomes e períodos. Nem critérios convincentes. Daí parece emergir somente uma certeza: quem nasceu até 1945, e permanece por aqui, foi enfiado no balaio dos velhos e ponto final, como se viver muito fosse uma sentença punitiva ou bilhete para a fila do descarte. E os agora idosos baby boomers já estão começando a ocupar seus lugares nesse “banco dos réus” etário – com a devida licença dos dicionaristas, porque “etarismo” e “idadismo” são termos da hora.

A geração Z está neste momento sob os holofotes principais, provocando certa gastura no resto da humanidade por suas características mais evidentes: fragilidades emocional, intelectual e profissional, vitimismo, falta de empatia e dificuldade de socialização. Seus membros vão construindo uma imagem de quem oferece pouco e exige muito, posturas relapsas nas obrigações e ênfase exacerbada ao que julgam seus direitos, algo que vem incomodando quem mantém relações de trabalho com eles. Tocam uma música experimental, cuja letra fala em trabalhar pouco, ganhar bem e ter qualidade de vida antes de tudo.

Essa geração vem estabelecendo novas prioridades no mercado de trabalho, onde alcançar postos de liderança tem pouca importância e o mais relevante é conciliar vida pessoal e profissional. Sim, é preciso dar um nome imponente, de preferência em inglês. Assim, estamos falando de um tal quiet ambition (ambição tranquila em tradução livre do inglês). “Agora, a carreira é vista como parte de um conjunto de valores e de prioridades da vida. É uma geração que está priorizando as experiências, viagens e o tempo com a família”, explica Bruno Martins, CEO da Trilha Carreira Interativa.

Talvez seja necessário combinar essa visão de mundo com as corporações empregadoras que pagam bons salários e esperam o devido retorno produtivo. Também soa meio confuso esse conceito de “tempo com a família” numa geração reconhecida pelo individualismo e vida solitária. E uma boa passadinha nos dicionários vai mostrar que ambição pode ser tudo, menos um conceito de tranquilidade.

Está lá no Dicionário Houaiss a definição para o verbete “ambição”: “Forte desejo de poder ou riquezas, honras ou glórias; cobiça; cupidez | Anseio veemente de alcançar determinado objetivo, de obter sucesso; aspiração, pretensão”.

Esses “teóricos” de ocasião revelam o próprio nível instrucional na hora de criar suas ondas de bobagens e inundar as redes sociais com suas “descobertas”. Mas é compreensível, o outro lado é feito de discípulos fervorosos que adotam posições e discursos tão confusos quanto suas visões de mundo. Tanto que são capazes de largar tudo para viver períodos sabáticos antes de completar cinco anos de vida profissional.

É essa geração Z que começa a inventar mais uma moda, algo inerente a quem busca fugas usando bússolas particulares sem agulha apontando para o Norte. A onda da hora é gente com vinte e poucos anos se vestir como os avós. Roupas de alfaiataria, coletes de tricô, mocassins com meias, boinas… Tudo que ajude a mostrar um perfil de pessoa mais velha, de outra geração. Não, não é um saudável mergulho vintage, trata-se de mais uma distorção da realidade espalhada nas redes sociais de forma viral.

Para gerar todo o lucro possível, essa apropriação foi processada pela indústria da moda e tem até nome: grandpa style (estilo de avô). Em linhas gerais, o estilo combina peças antigas (produzidas com a estética comum a avôs e avós) e modernas (retiradas da moda urbana). “É uma mistura de alfaiataria em tons neutros, blazer oversized, colete de tricô e sapato mocassim com meia. O toque final está em contrastar esse universo tradicional com o moderno, misturando essas peças com outras como bonés e tênis esportivos”, esclarece a consultora de estilo Nathalia Pacheco. Ela também informa que, mesmo o estilo tendo nome masculino, a estética também tem versão para o universo feminino.

É por essa porta afetiva mal resolvida e escancarada que entram os vícios de todas as naturezas, inclusive a dependência doentia de redes sociais, além do afastamento de familiares e amigos. O preâmbulo de doenças que lotam consultórios cada vez mais cedo.

Está posta a tragédia social resultante de filhos inseguros educados – se é que se pode dizer isso – por pais inseguros. “O problema é a vulnerabilidade impressionante de uma geração extremamente frágil, educada sob o estigma de que não pode sofrer, criando uma absurda dependência de pais que vão sempre resolver, e que não vão estar aqui sempre. E quando não estão presentes, e finalmente eles (os filhos) têm que resolver, se matam pelo fim de um namoro”, alerta o professor Klinjey.

Não causa estranheza que cerca de 20% desses jovens levem os pais a tiracolo nas entrevistas de emprego nos EUA – dados de pesquisa realizada pela revista on-line Intelligent, realizada em dezembro de 2023 ouvindo 800 gestores, diretores e executivos da área de contratações.

O mesmo levantamento apontou que esses jovens vestem roupas inadequadas, não têm habilidade de comunicação falada e escrita, demonstram dificuldade de cumprir horários, rotinas, participar de reuniões, gerenciar carga de trabalho e se ofendem facilmente.

Quem já viveu quatro décadas (ou mais) e manteve pés e cabeça na realidade, viu muita coisa surgir e sumir na poeira da estrada. À primeira vista, parece que a geração Z é a antítese dos workaholics (viciados em trabalho) – aquelas figuras surgidas nos anos 1980 movidas a ambição, dinheiro, luxo, hedonismo e cocaína. Fenômeno glamorizado pelo cinema e exaltado na literatura administrativa, sofreu adaptações, mas permanece presente no ambiente corporativo.

Cada um a seu tempo, a geração Z e os workaholics dominaram a cena como referências de modelo social predominante. Há grandes diferenças entre os dois grupos, mas uma quantidade inquietante de semelhanças: vícios, fantasias, desajuste familiar, fragilidades emocionais, dissociação da realidade, individualismo, solidão, depressão, síndromes, consultórios de psicoterapia e outras especialidades, tarja preta…

Os mais pragmáticos não duvidam que, como toda onda, a atual (da geração Z) também deverá ter vida curta. Será interessante acompanhar como essa turma vai se comportar quando chegarem contas fixas, filhos e a casa dos 30 anos for rompida – uma idade em que começa a cair muito bem ter independência, boa moradia, assistência médica, carro para transportar a família, bons colégios, poupança para as horas incertas, capacidade de ler os primeiros sinais da velhice no horizonte e muitos outros itens que vão surgindo indispensáveis.

Como já ocorreu com outras gerações que vieram depois dos baby boomers, talvez boa parte da geração Z jamais encontre cara a cara uma dúvida existencial de verdade. Provavelmente, ou seguirá estridente em solavancos descolados da realidade ou escapará agindo com a maturidade que o tempo, as experiências e as necessidades cotidianas trazem sem fazer alarde e não permitindo digressões.

Nas palavras de um amigo do Giramundo, “estamos vivendo tempos bélicos, medievais e hostis”. São mesmo tempos estranhos onde coerência não é exatamente um artigo consagrado. Pouco importa, porque, seja qual for o cenário e o nível das fraquezas e firmezas humanas do momento, o mundo dos grandes negócios, o “senhor mercado” sabiamente esmaecido em seus diversos segmentos de atuação, seguirá tratando pessoas como simples consumidores. E despejará sobre eles campanhas avassaladoras, uma espécie de “Compre Baton” (*) infinito que, além dos veículos tradicionais, agora também usa a força hipnótica das redes sociais.

Não adianta reclamar desse vale-tudo que está instalado. Fomos nós que facilitamos as coisas quando evitamos dizer “não”, nos tornamos cúmplices da desinformação ao trocar fatos por narrativas, aceitamos o menos sem exigir pelo menos o médio… Chegamos ao ponto de inundar nossas conversas de botequim com filosofias baratas como aquela do “ter” e “ser”. Quantas noites estufamos nosso peito acadêmico-etílico em favor do ser, e na manhã seguinte saímos comprando coisas para compensar nossas frustrações com o ter?

Sim, estamos numa encruzilhada que nós mesmos construímos sem pudor desde o fim da Segunda Guerra. Apostamos numa pressa sem sentido, cada vez maior e cheia de caminhos levando a labirintos insondáveis. E agora reclamamos que somos infelizes, que o mundo está incompreensível? Talvez esteja na hora de uma disrupção, abrir picadas para uma vida mais simples. Hora de ensinar o “senhor mercado” a pedir licença. E não cair em depressão pela abstinência.

(*) Nota da redação: “Compre Baton” era o mote de uma campanha da Garoto para vender um de seus chocolates mais populares. O filme (link abaixo), mais um momento criativo da agência W/Brasil, foi produzido em 1992.

Trecho incidental Pais e Filhos (Marcelo Bonfá-Dado Villa-Lobos-Renato Russo)

Veja aqui Compre Baton   https://www.youtube.com/watch?v=fzKKpUwJ2Fw

Ouça aqui Pais e Filhos   https://open.spotify.com/intl-pt/track/46s6p0tsgRBfzWriIg3w9o?si=8abfd327c793477e

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