Por Heraldo Palmeira
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23 de novembro de 2024

Luto impresso

Divulgação/Livraria Cultura

Luto impresso

  • Heraldo Palmeira

Não só o mundo livreiro, mas a cultura e arte receberam a notícia da morte de Pedro Herz, aos 83 anos, com a tristeza de quem perde um protagonista. O sujeito que encarnava a Livraria Cultura, dono de uma vida que caberia em muitos livros além do biográfico O Livreiro (escrito em parceria com a jornalista Laura Greenhalgh e lançado pela editora Planeta em 2017).

Sua paixão pelos livros foi adquirida por feliz contaminação materna de dona Eva Herz. Foi ela quem fundou a Livraria Cultura em 1969 tendo o filho Pedro como sócio, a metamorfose de uma biblioteca caseira numa grande rede de livrarias que mexeu com o modelo vigente, se tornou uma das melhores do país, esteve presente em diversas cidades brasileiras e deixou um rastro de saudade.

No meio desse caminho entre casa e loja, corria 1958 quando a cosmopolita Eva despachou o filho Pedro para a Europa. Ele deveria buscar formação no ambiente dos livreiros e atuou em diversos segmentos, sempre mantendo os livros na rota. Esteve atrás do balcão de uma livraria de Basileia e de um botequim em Paris. Aprimorou o inglês em Londres e foi locutor da BBC. Depois de dois anos voltou ao Brasil, onde trabalhou em diversos lugares. Na editora Abril participou da elaboração do Guia Quatro Rodas. Em 2001 assumiu os negócios da família em razão da morte da mãe.

Sob seu comando, a Cultura apostou num atendimento inovador e especializado, recrutando funcionários – grande parte formada por estudantes de letras – com conhecimento profundo dos itens comercializados. Ser cliente significava ter um lugar especial aonde ir, se sentar confortavelmente, ler à vontade, ouvir discos, tomar um bom café com guloseimas deliciosas e encontrar pessoas capazes de entabular uma conversa animadora. Sem contar a grande presença de crianças e jovens animando o futuro como novos leitores. Com esse mix original a empresa não demorou a ocupar um espaço de grande destaque no ambiente cultural.

A Livraria Cultura alcançou um raro nível de reconhecimento. “A última imagem que levamos do Brasil é a de uma bonita livraria, uma catedral de livros, moderna, eficaz, bela. Uma livraria para comprar livros, claro, mas também para desfrutar do espetáculo impressionante de tantos títulos organizados de uma forma tão atrativa, como se não fosse um armazém, como se de uma obra de arte se tratasse. A Livraria Cultura é uma obra de arte”, derramou-se o escritor português José Saramago em seu livro O Caderno.

Pedro era presença carimbada nas principais feiras literárias mundiais e se tornou referência no mercado livreiro internacional. Sempre presente e acessível dentro das suas lojas, também foi incansável na defesa dos interesses do mercado nacional de livros perante os governos de plantão. Amante dos vinhos e de almoços com amigos, morava há muitos anos na região central da cidade num amplo apartamento no último andar do icônico edifício Copan, um dos símbolos da arquitetura moderna brasileira e cartão-postal paulistano, concebido por Oscar Niemeyer e erguido na avenida Ipiranga.

Em 2017, já dividindo a direção da empresa com o filho Sergio, partiu para passos arrojados como adquirir a operação brasileira da concorrente francesa Fnac, o marketplace Estante Virtual e expandir os negócios para diversos pontos do país. A rede chegou a ter 17 lojas próprias em Brasília, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.

No ano seguinte os problemas começaram a empurrar a empresa para uma situação caótica, um quadro que o fez perder o ânimo, se afastar das lojas e certamente contribuiu para encher de tristeza seus últimos anos. A queda foi decorrência de erros administrativos registrados num momento de grande complexidade em que o comércio tradicional batia cabeça para encontrar saídas diante da evolução avassaladora do comércio digital.

Hoje a empresa agoniza, uma espécie de fotografia contundente da nossa indigência cultural. Afinal, não estamos perdendo apenas mais uma grande livraria além das outras tantas que já se foram, mas um verdadeiro ambiente de ebulição cultural que havia dentro das lojas. Não bastasse a tristeza imposta aos últimos anos da vida de Pedro Herz, resta a orfandade coletiva dos que amam a arte em geral. Não bastasse a situação falimentar da empresa, a saída definitiva de cena de Pedro soa como a pá de cal naquele mundo mágico.

Uma dose extra de tristeza é perceber que mudamos de patamar comportamental, as livrarias saíram da lista dos destinos preferidos, não há mais lugar para grandes lojas aqui e ali, apenas uma ou outra segue respirando. Um sopro de boa notícia são as estatísticas apontando que o comércio digital conseguiu manter os livros na vida das pessoas e o próprio negócio editorial firme no mercado. Pelo menos isso!

História A imigrante judia alemã Eva Herz, filha de um banqueiro berlinense, chegou ao Brasil com o marido Kurt Herz em 1939 fugindo do nazismo. Desembarcou em São Paulo depois de um curto período em Buenos Aires.

Para complementar a renda familiar ela criou em 1947 a Biblioteca Circulante, instalada na casa onde a família – agora o casal com dois filhos brasileiros – morava na alameda Lorena, nos Jardins. Importou as versões em alemão de dez títulos conhecidos, que incluíam Doutor Jivago e O Diário de Anne Frank, e começou a alugá-los aos compatriotas. Cobrava preços módicos, já que os leitores eram imigrantes enfrentando os mesmos desafios para recomeçar a vida. Ampliou a clientela oferecendo autores nacionais como Erico Verissimo, Jorge Amado, Machado de Assis e Rachel de Queiroz.

A evolução do negócio terminou expulsando os Herz da casa em que viviam quando começou a faltar espaço para acomodar os moradores e uma infinidade de livros. Ficou a empresa e eles foram viver em outro local. Ali foi moldada a vocação comercial que daria origem à famosa Livraria Cultura, fundada em 1969, tendo Eva e o filho Pedro como sócios e ocupando uma das lojas do Conjunto Nacional, na avenida Paulista.

Nos anos 1990 o espaço se tornou referência cultural de uma forma prosaica. Tudo começou quando Pedro colocou umas mesinhas na porta da loja e o jurista Ives Gandra Martins comprou umas coxinhas no boteco em frente. Na semana seguinte cada um trouxe seu uísque, o livreiro passou a guardar em seu escritório as garrafas etiquetadas com os nomes dos donos e todos começaram a comprar livros no esquema de “pendura” devidamente controlado num caderninho para pagamento no fim do mês. O resto é uma história que juntava habitués do porte de Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Angelo, Ives Gandra Martins, Lygia Fagundes Telles, Marcos Rey e Mário Chamie.

Para reforçar a imagem referencial, as famosas noites de autógrafos organizadas pela Cultura colocaram diante de multidões de leitores autores como David Lynch, Fernando Gabeira, Jô Soares, José Saramago e Rita Lee. O lançamento de O que É Isso, Companheiro?, de Gabeira, em 1979, provocou um dos maiores engarrafamentos humanos registrados no saguão do Conjunto Nacional.

A Livraria Cultura deu um grande passo quando ocupou sua nova sede, a enorme área do Conjunto Nacional onde funcionou o Cine Astor. Virou a maior livraria do país (4.300 m²), uma verdadeira atração turística paulistana. Além do enorme estoque de livros (parte de um catálogo fabuloso), oferecia álbuns de música, filmes e shows em vinil, CD, DVD e Blu-ray. Tudo isso complementado por duas cerejas no bolo: uma ampla cafeteria criada pela rede Viena especialmente para a loja e o teatro Eva Herz.

Não havia sonho de consumo similar para qualquer amante dos prazeres relacionados à cultura. Nos tempos de glória maior, outras lojas do mesmo Conjunto Nacional abrigavam espaços menores e complementares dedicados a temas específicos ou vendas exclusivas dos catálogos de editoras parceiras como Cia. das Letras e Record. Na verdade, a Livraria Cultura marcou época levando requinte ao negócio dos livros.

Em 2018 a situação começou a ficar caótica e a empresa fechou lojas, demitiu funcionários, encerrou as atividades da Fnac e entrou com pedido de recuperação judicial. Nem mesmo o desconto de 70% das dívidas e o prazo de 12 anos concedido pelos credores em 2019 foi suficiente para salvar o negócio, então reduzido a cinco lojas físicas, além da virtual.

O processo de fechamento das lojas restantes teve início em 2022. Em fevereiro de 2024 a Justiça negou um recurso da empresa e autorizou a ordem de despejo da última unidade ainda em funcionamento, exatamente a icônica e gigantesca loja do Conjunto Nacional.

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